Nesta sexta feira, a coluna do publicitário Affonso Romero traça uma comparação entre os filmes “Noé” e “As Aventuras de Pi”.

Noé e Pi, Pi e Noé

Quase sempre é ruim protelar, apesar de irresistível. Vi o filme Noé, com o Russell Crowe, pensei em comentar aqui, em coluna exclusivamente sobre ele. Como sempre, demorei. Tanto e tanto que, quando a coluna for postada, se você ainda não tiver visto o filme, talvez só vá poder conferir em vídeo.

E vale à pena conferir. Não que seja um grande filme, ficando mais para o espetáculo visual, mas porque o tema é para lá de interessante, e as críticas fundamentalistas – tanto religiosas quanto por parte de cinéfilos “fundamentalistas” – foram exageradas e injustas.

O melhor desta demora em escrever a coluna é que, no meio tempo, recebi em casa uma visita e mostrei em blue-ray a versão 3D de As Aventuras de Pi. E, só então, caiu a ficha dos paralelos possíveis entre as duas obras.

Ambas são espetáculos visuais, ambas navegam sobre metáforas, ambas podem encontrar muitos que as vejam apenas por uma ótica literal, ambas são sobre travessias pelo mar, sobre recomeços, em ambas há convívio entre animais e humanos no confinamento de um barco, em ambas há mensagens de espiritualidade.

As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012) é um filme consagrado e premiado, merecidamente incensado pela crítica. Os aspectos visuais, os truques, a computação gráfica usada maciçamente, tudo contribui para uma estória bem contada, que não necessitou de nomes de atores famosos nos cartazes para atingir seus objetivos comerciais. O filme, apesar de grandioso, é humano e tem seus momentos de contenção adequada. A princípio, é um relato improvável, previamente desconhecido pelo espectador, que vai sendo desenrolado como metáfora, possibilitando leituras sutis, luzes e sombras na alma dos personagens, principalmente Pi.

O trailer de As Aventuras de Pi
http://www.youtube.com/watch?v=TlXC2W9mvgY

Richard Parker, o tigre-de-bengala que é o antagonista do filme, é cheio de vida, é intenso, ainda que onírico. A obra foi indicada ao Oscar de melhor filme em 2013, tendo recebido a estatueta por trilha sonora, fotografia, efeitos visuais e de melhor diretor. Um merecido prêmio para um trabalho primoroso de Ang Lee.

Noé (Noah, 2014) é sério candidato à Framboesa de Ouro em várias categorias, a tomar como parâmetro a má vontade da crítica desde antes do lançamento. O diretor Darren Aronofsky, vegetariano convicto, opta por um uso abusivo da computação (cada animal retratado no filme é apenas um imagem produzida por computador). O tom é tão épico e grandiloquente, com aquele exagero e ritmo típicos do cinemão hollywoodiano, que os aspectos humanos da estória bíblica ficam ofuscados. Apesar dos esforços do roteiro em expor as dúvidas, contradições, fraquezas e crenças dos personagens, a linguagem visual cinematográfica inunda a tela e afoga o texto.

O trailer de Noé
http://www.youtube.com/watch?v=ctCGA0VVaak

Entretanto, o filme tem qualidades que passam ao largo da maioria das críticas negativas. O elenco tem atuações corretas: em um ambiente que poderia levar ao exagero e à canastrice, Russell, que eu sempre vejo como um ator de altos e baixos, cumpre bem o papel-título. Também estão bem a lindíssima Jennifer Connelly (cuja beleza consegue superar os limites da idade, da situação de época e das infindáveis semanas ao mar) e Emma Watson (a Hermione da saga Harry Potter). Mas o destaque fica para o veterano Ray Winstone, que cria um vilão interessante.

Principalmente, é digno de destaque o fato de o filme tratar respeitosamente a descrição bíblica do dilúvio, apesar das posições de muitos religiosos em contrário. É claro que tem que ser levada em conta a necessidade técnica na construção de roteiros, e o fato já mais do que conhecido de que as adaptações de Hollywood fogem da reprodução pura e simples de fatos reais.

Quando isso é aplicado a um relato bíblico, a coisa pode complicar mais ainda. Noé, a arca e o dilúvio são uma parábola. Ainda que, por razão de fé, alguém creia que a Bíblia fosse um registro histórico preciso – o que não encontra respaldo fora dos limites da religiosidade – seria razoável perceber Noé como um modelo de homem de fé de sua época, cujas circunstâncias poderiam ter levado a estes ou aqueles detalhes, já que o relato sagrado, como tantos outros, não é preciso, exato ou exaustivo.

Nada disso vale para os radicais que só conseguem enxergar literalidade nos textos bíblicos. E, ainda assim, o filme trata tudo com respeito, não contradiz a visão jucaico-cristã de Noé, reforça dogmas e lições morais. Ora, um filme que, apesar de tudo isso, é tão criticado por fanáticos, vale ao menos a minha atenção e o meu respeito.