A coluna do advogado Gustavo Cardoso traça uma comparação entre as elites americana e brasileira a partir da questão da filantropia cultural.

Filantropia e Estado

Vou interromper por uma semana a série sobre a ditadura brasileira e escrever sobre outro assunto – retomarei a série no próximo artigo. O tema de hoje é uma reflexão sobre o papel do Estado e da sociedade no desenvolvimento cultural de um país, partindo de uma comparação ligeira entre as elites do Brasil e dos Estados Unidos. Já planejava escrever sobre isto a qualquer momento, mas um texto de Elio Gaspari na Folha de 13 de abril, “Duas plutocracias, dois museus” (http://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2014/04/1439950-duas-plutocracias-dois-museus.shtml), me fez antecipar a abordagem.

Gaspari compara o surgimento e o desenvolvimento do Metropolitan Museum of Art de Nova York com o do nosso MASP. Diz que a plutocracia nova-iorquina do século XIX, “demófoba e racista”, resolveu, “do nada”, criar o Met. O museu manteve sua vocação elitista até que, ao abrir-se para o povo, tornou-se um grande sucesso de público, gestão e autofinanciamento. “Os nomes de seus 960 grandes benfeitores estão nas placas que ladeiam sua escadaria”.

Passamos para a plutocracia paulista, e o colunista da FSP lembra que o MASP (abaixo) “existe graças ao jornalista Assis Chateaubriand”, dono dos Diários Associados. Descreve o estado de penúria em que a instituição vive atualmente, e dá duas notícias: uma ‘boa’, o Bradesco e o Itaú têm planos de adotá-la; e uma ‘má’, os governos estadual e municipal querem participar da gestão do museu. Gaspari exorta o MASP a “blindar sua natureza privada”, mas não se esquece que a pinacoteca é sustentada com impostos estaduais. Mais ainda: “o governo de São Paulo e a prefeitura sustentam mais museus que os governos do Estado e da cidade de Nova York”.

MASP1Não é fácil entender o que Elio Gaspari quer dizer quando afirma que a elite de Nova York criou o Metropolitan “do nada”, mas o fato é que o museu surgiu do esforço conjunto de milionários que doaram peças de suas respectivas coleções privadas. Quanto ao MASP, é verdade que ele só existe graças a Chatô, e Gaspari é sucinto o bastante para omitir que o magnata das comunicações teve de chantagear os quatrocentões de São Paulo para convencê-los a aportar recursos no museu, ameaçando-os com campanhas difamatórias em seus jornais. Por não ter aparecido em nossa história outro milionário tão excêntrico, nunca mais foi fundado outro MASP.

A contribuição que a elite americana dá à sociedade da qual faz parte não se limita a generosas doações para os grandes museus do país. Os nomes dos benfeitores estão gravados em bibliotecas públicas, universidades privadas e até em monumentos históricos, como o Memorial 11 de Setembro (foto do alto do post). É fácil visitar a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e lamentar o estado em que se encontra. Também é fácil culpar a incompetência do governo. É raro lembrarmos que, se dependesse apenas de recursos públicos, a New York Public Library não seria sombra do que é.

Muitas das principais universidades americanas receberam os nomes de seus principais benfeitores, pessoas que doaram o terreno do campus, ou criaram fundos que manteriam a instituição – Harvard, Yale, Stanford, Cornell, Duke, Brown, Dartmouth… No Brasil, só se sabe de um motivo que possa levar um rico a abrir uma faculdade: lucro fácil, principalmente em razão das volumosas isenções fiscais que o Estado garante a quem vende educação de má qualidade. A elite brasileira não funda universidades: prefere estudar em instituições públicas e impedir o acesso dos pobres a estas.

Além das doações em espécie, o compromisso dos americanos com seu país pode ser medido em horas de trabalho voluntário praticado pelos cidadãos. Vários monumentos e museus só funcionam nos EUA porque alguém de boa vontade resolveu dedicar algumas horas por semana a uma atividade de interesse público, não remunerada ou muito mal remunerada. É desnecessário recordar o quanto isso é raro por aqui. Mas nos sentimos transbordando de cidadania quando reclamamos de qualquer governo que apareça pela frente, porque este não nos dá “serviços de qualidade” em troca dos impostos que não conseguimos sonegar.

20131107_125753Quando confrontamos a disposição dos norte-americanos de doar e de prestar serviço comunitário com a nossa, desfaz-se a lenda de que a sociedade deles se pauta unicamente por valores materialistas e individualistas, e fica realmente difícil sustentar mitos como os de que o brasileiro é “generoso”, “cordial” e “mais preocupado em viver bem do que em trabalhar e usufruir de bens materiais”.

Claro que boa parte dos filantropos americanos têm em vista o status, caso contrário seria difícil explicar gente como Michael Milken e Bernard Madoff, que cometiam crimes financeiros para doar (grande) parte do dinheiro que ganhavam, mas é inegável que o sistema, de uma forma ou de outra, funciona: se a generosidade é valorizada socialmente, um multimilionário fica mal visto se não faz alguma filantropia, seja “de coração”, seja por hipocrisia. E por filantropia não se entende apenas dar sopa aos miseráveis, mas financiar a cultura, projetos científicos e grandes obras.

Voltemos à coluna de Elio Gaspari. A recomendação dele ao MASP (blindar sua natureza privada) é, de formas diversas, repetida por aqueles que lamentam a excessiva intervenção do Estado na nossa economia. Geralmente toma uma forma um tanto acusatória: “o Estado precisa ‘dar liberdade’ aos empreendedores”“no Brasil as pessoas ‘não têm incentivo’ para fazer filantropia”… E assim por diante.

Claro que há um problema sério de burocracia no Brasil, mas sejamos francos: O que nossos empreendedores fizeram, ao longo de séculos, com a liberdade que tiveram, para o desenvolvimento da economia e para a sociedade em geral? O “incentivo” que as pessoas precisam para doar é mais dedução no imposto de renda? A faixa máxima de IRPF no Brasil equivale à metade da dos EUA. Que tal se dobrarmos as alíquotas como um incentivo para nossos ricos doarem mais? Alguém concebe isso acontecendo no Brasil de hoje?

Gaspari está certo quando diz que a gestão privada é, em geral, muito melhor que a pública. O drama do Brasil é que não temos escolha. Se o Estado não tomar a iniciativa, quem toma? Sim, no caso do MASP, que é um filé mignon, o Bradesco e o Itaú estão se oferecendo (certamente em troca de colar nas paredes logotipos que seriam inimagináveis no Met). Mas o próprio colunista lembra, pesaroso, que o museu é mantido com o dinheiro de impostos, e que o governo local sustenta (entenda-se: é obrigado a sustentar) mais museus que o poder público da rica Nova York.

cartaz1_protesto_brasil_mexico_getEsta é uma lembrança que convém manter na mente em ano eleitoral: há limites ao poder do Estado. Numa sociedade disfuncional, não adianta muito um governo prometer fazer de tudo, como esperam alguns; tampouco adianta prometer não fazer nada, como querem outros. O Estado brasileiro continuará fazendo (mal) muita coisa, porque a sociedade civil não age. Por mais irritante que seja, culturas não mudam por decreto nem por voluntarismo de um líder.

Muita gente hoje pensa que o oposto de ficar de braços cruzados é gritar nas ruas até que “o governo” nos “entregue” saúde e educação de qualidade. Vale alguma coisa, mas mudança mesmo seria se todos nós – não só a “plutocracia”, mas cada um que pode dar alguma contribuição – manifestasse compromisso verdadeiro com a sociedade, fazendo algum trabalho voluntário e doando parte de nossa renda para projetos sérios que possam melhorar o Brasil. Em vez de reclamar que algo não funciona, consertar.

Imagens: reprodução de internet e Arquivo Pessoal Pedro Migão

2 Replies to “Pitaco: “Filantropia e Estado””

  1. Infelizmente aqui no Brasil o voluntariado eh visto como algo idiota. Mts pensam que ajudar sem receber nada em troca, digo em termos monetários, eh algo tolo.

    1. Prezada, eu tenho formação de voluntariado por causa da religião, mas você tem total razão. Seja bem vinda.

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