Quando eu nasci, já haviam se passado quatro anos, quatro meses e 21 dias daquele fatídico 1º de maio de 1994 em que Ayrton Senna perdeu o controle de seu carro e se chocou contra o muro da Curva Tamburello, na sexta volta do Grande Prêmio de San Marino. O acidente, como se sabe, foi fatal.

Apesar de não ter vivido o tempo do Ayrton, consigo, até hoje, perceber as marcas que ele deixou em nossa sociedade. Ao mesmo tempo em que crescia a saudade das tais manhãs de domingo que terminavam ao som do Tema da Vitória, crescia um jejum de vitórias brasileiras na Fórmula 1, que terminaria apenas em 2000.

Ayrton Senna é o maior ídolo da história do esporte nacional e isso pouco tem a ver com sua competência dentro das pistas. Evidentemente, Senna foi um dos maiores pilotos que o automobilismo já viu, mas com toda a certeza não foi dez vezes melhor que Nelson Piquet para ser dez vezes mais ídolo que o compatriota como é até hoje.

Senna, não sei se intencional ou acidentalmente, conseguiu como ninguém entender o que separa um grande profissional de um ídolo. E foi além: se transformou em herói. Poucas vezes no esporte mundial houve alguém que conseguisse chamar tanto a atenção de um país. O heroísmo de Senna tem muito mais a ver com sua personalidade que com sua competência.

É óbvio que Senna não seria nada se fosse um piloto ruim. É claro que só as vitórias podem transformar um esportista em herói. Mas também é claro que, em termos estatísticos, ele não fez nada que outros pilotos não tivessem feito – inclusive Piquet. Schumacher, Fangio, Prost e até Vettel fizeram mais. Então qual foi a grande jogada de Senna? Qual foi o “pulo do gato” para que ele fosse um esportista de tanto sucesso?

Tenho uma tese, que, aliás, é a de muitas outras pessoas: Senna se aproveitou de um momento complicado no país. Senna era o Brasil que dava certo quando tudo dava errado. Senna era o cara que, após mais uma semana de inflação, aumento da dívida externa e crise política, chegava no domingo, fazia o impossível nas pistas e colocava o Brasil no topo do pódio. Mais do que isso: fazia questão de pegar a bandeira do Brasil e levantar ainda dentro do carro, para o mundo inteiro ver.

senna1991Foi aí que se criou uma imagem patriota de Ayrton que tenho minhas dúvidas se eram verdadeiras. Fato é, todavia, que Senna era o que o Brasil precisava para ter um pouco de orgulho. Diga-se de passagem, ainda temos de lembrar que a Seleção de futebol não vivia seus melhores momentos. Tanto que chegou na Copa de 1994, meses depois da morte de Ayrton, sob muita desconfiança.

Havia todo um marketing em Senna que foi muito bem explorado pela Rede Globo que, como se sabe, influi e muito no pensamento dos brasileiros. Galvão Bueno, por exemplo, foi o porta-voz das grandes vitórias de Senna. Amigo do piloto, se emocionou e, automaticamente, emocionou o público.

Não me sinto à vontade para avaliar Senna enquanto piloto. Acho apenas que foi um dos maiores da história, mas, por não ter visto nenhum deles, não consigo dizer quem foi melhor entre ele e Piquet, por exemplo. Tenho certeza, todavia que, sob o ponto de vista de ser ídolo, ele foi mais esperto. Não sei se Nelson queria ser um herói, acho até que não, mas é óbvio que perderia a queda de braço com Ayrton. E isso chega até a ser um pouco contraditório.

Nelson me parece muito mais com o brasileiro típico que o Ayrton. Nelson não se dizia patriota, como nós de fato não somos. Nelson tinha uma arrogância típica desse povo. Nos achamos os melhores, sim. Os mais cordiais, os mais receptivos, os mais agradáveis. Ele se achava o melhor dentro da pista. Tinha um orgulho próprio brasileiríssimo. Então por que o brasileiro “adotou” Senna? Porque nunca gostamos de ser quem somos e Piquet escancarava todos os nossos defeitos. Senna, o contrário. Era o Brasil que o Brasil queria ser. Competente, humilde, com um orgulho nada arrogante. Produto que a mídia e o povo gostam.

Em uma dessas ironias da vida, Senna “parou de dar certo” em 1994, justamente no ano em que o Brasil começou a entrar no eixo com o Plano Real. Mal sabia Senna que esse seu jeito de ser seria um dos grandes responsáveis pela crise atual no automobilismo brasileiro, que não ganha um título desde o próprio Senna e está há cinco anos sem vencer uma corrida.

É claro que há uma boa dose incompetência dos nossos dirigentes, mas Senna criou uma geração de “viúvas” que ajuda a explicar porque temos apenas um piloto na principal categoria de automobilismo no mundo. No começo desse texto, disse que, apesar de ter nascido mais de quatro anos depois de sua morte, consigo perceber até hoje as marcas que ele deixou. Vamos tentar explicar isso melhor.

Quando Senna morreu, o Brasil ficou órfão na Fórmula 1. Ainda tínhamos Rubens Barrichello e Cristian Fittipaldi, mas nenhum dos dois tinha condição de brigar por títulos ou mesmo vitórias. E passamos a não mais perdoar os derrotados. Até aí, tudo bem. País nenhum costuma perdoar derrotados. O problema é que nunca entendemos bem o conceito de derrota.

barrichello2002Somos, por natureza, um povo que não quer saber se o cara chegou em décimo lugar tendo o pior carro do grid. Se chegou em décimo, é ruim. Ayrton jamais chegaria em décimo! Isso se acentuou ainda mais quando Barrichello foi para uma equipe de ponta, a Ferrari, para ser segundo piloto. Brasileiro nenhum entendeu que nem o próprio Senna, que era um gênio, poderia bater de frente com Schumacher naquela situação. Rubens, que é um piloto competente, mas apenas isso, então, não teve nem como pensar em brigar com o alemão.

E então veio aquele GP da Áustria em 2002, quando Barrichello deixou Schumacher passar na última reta e virou o maior traidor da história do Brasil. O país inteiro ficou indignado por ele ter tomado a única decisão que poderia ter tomado. “Senna jamais faria isso”. Mentira, mentira, mentira. Faria, como o próprio Schumacher faria se os papéis fossem inversos. Piloto nenhum peitaria a maior equipe da Fórmula 1 por quatro pontos a mais no campeonato e o sorriso de alguns milhões de brasileiros que não sabem a diferença de pneu duro e pneu intermediário.

massa2008A partir daí, a vida de Rubens virou um inferno aqui no Brasil. Foi colado na testa dele o rótulo de perdedor, de derrotado, mesmo ele conseguindo o máximo que poderia em sua situação: o segundo lugar. Anos depois, veio Felipe Massa e, já com o peso de, além de “ser um novo Senna”, “não ser um novo Rubinho”, a história se repetiu. Dessa vez, ele deu azar. Foi campeão mundial por alguns segundos, mas Glock não se segurou, Hamilton levou e ele nunca mais fez um campeonato tão brilhante. Teve um acidente sério e nunca mais foi o mesmo piloto. Outro “perdedor”.

É por isso, então, que temos tão poucos pilotos de ponta. Somos um país que entende que automobilismo é só Fórmula 1. É difícil conseguir chegar à F-1 porque é difícil conseguir condições de correr nas categorias que dão acesso a ela. Porque ninguém liga. Porque se chegar em terceiro na Fórmula 3 inglesa é ruim, é perdedor. Isso o próprio Senna já dizia em entrevista para o Roda Viva em 1986, reprisada recentemente. Com sua morte, piorou consideravelmente.

Hoje o Brasil é um país que continua dando errado, mas bem menos que na época de Ayrton. Paralelamente, ficamos exigentes. Continuamos querendo ser, no esporte, o que não somos na vida real. Colocamos em uma pessoa o peso de 190 milhões de derrotados moralmente pelas mazelas enfrentadas no dia a dia. E, acima de tudo, queremos ter, no esporte, a personalidade, ainda que falsa, de admitir que não merecemos o lugar mais alto do pódio.

15 Replies to “Filho Pródigo: “Semana Senna – O fantasma de Ayrton em um país que quer dar certo””

  1. Discordo em um ponto. Quem acompanhou a carreira do adenda sabe que ele não deixaria Schumacher passar. Era mais fácil parar o carro e abandonar a prova que passar pelo que passou o Rubinho.

    1. Com toda certeza. O cara sempre bateu de frente com todos que correu. Não existe embasamento nenhum pra isso. Nada que o Senna tenha feito em vida justifica essa opinião.

  2. Queria saber baseado em que afirma que “Senna faria o mesmo que Rubinho”… qual foi o episódio da vida dele que permite chegar a essa conclusão?

    Acho que o blog, por não gostar do piloto, usou a semana pra promover umas visitinhas a mais com polêmica boba. Falam em “deixa o Senna em paz”, mas falando mal dele gratuitamente e esperando não ter réplica. Aí é complicado.

    1. TODOS os textos da Semana Senna ressaltam que o cara foi um grande piloto. Mesmo porque para escrever aqui não se pode brigar com fatos. Alguns textos, aliás, idolatram o piloto – veja os do Rodrigo Salomão e Allexandre Valle, por exemplo. A ideia da Semana Senna não era, de fato, babar ovo em Senna, mas sim apresentar diferentes versões sobre o piloto de quem viu a quem não viu – como eu. Quanto a história do Senna faria o mesmo que o Rubinho… Bem…

        1. Peraí, né? Senna deu a vitória pq ELE quis, e não pq foi obrigado. Ele já tinha sido campeão, inclusive. Uma homenagem ao fiel escudeiro. Completamente outro contexto!

          1. Se vocês estão falando do Japão em 1991, acho uma das maiores humilhações da história da F-1. Embora saiba que foi sem querer rs

          2. Dizem que o Senna fez a contragosto. Mas, por vontade própria ou não, não é nenhum princípio de esportividade deixar o amiguinho passar, né? Acho que quem foi lá no autódromo não esperava isso. Enfim…

      1. Fui injusto sim. Reli aqui e realmente o fui. Desculpas. Tem uns textos exaltando-o. É que realmente me incomoda ver essa ânsia dos defensores do Piquet em querer mostrar o quanto não veneram Senna que me chateia muito. Mas de fato fui injusto, foi mal.

        1. Dudu, ninguém aqui quis mostrar que “não venera Senna”. O que ocorreu é que alguns colunistas – e eu também – optamos por tentar analisar de forma fria alguns aspectos da construção do ídolo Senna. Mas todos os textos, sem exceção, ressaltam o grande piloto que ele foi. Isto é indiscutível.

          Daí a achar o melhor de todos vai da opinião de cada um. Abraço forte

  3. Os fãs de Ayrton Senna espalhados nos quatro cantos do mundo jamais deixará de lembrá-lo para as novas gerações os 20 mil fãs em Ímola no último 01 de maio mostrou isso, Senna é um patrimônio mundial, pilotos jovens campeões como Hamiltom, Alonso, Vettel o tem como ídolo e exemplo de vencedor, Senna é eterno e os fãs do Piquet jamais se conformarão com isso.

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