O leitor do Ouro de Tolo deve ter percebido que andei meio alheio do noticiário neste início de ano. O carnaval andou tomando grande parte do meu tempo livre, fora meus afazeres normais. Mas foi com espanto que vi – e vejo – o crescimento de uma onda de protestos políticos que, além de antidemocráticos, representam uma volta ao passado absolutamente preocupante.

O cenário é mais ou menos o mesmo: minorias sem voto, com apoio velado ou explícito dos Estados Unidos, em movimentos de interrupção da normalidade democrática liderados em sua maioria por políticos conservadores. Como a cereja no bolo, países com recursos energéticos são alvos preferenciais.

O primeiro caso, embora mais complicado que a receita do parágrafo anterior, é o ucraniano. Não farei digressões sobre a situação pré-golpe (outros analistas fizeram ótimos artigos sobre o tema), mas é inegável que foi bastante audacioso por parte da diplomacia americana patrocinar um golpe de Estado em um dos quintais russos em um momento onde o mandatário Vladimir Putin vem paulatinamente ampliando sua influência.

tn_620_600_Russia_crise_energetica_Ucrania_Turquia_07-01Além disso, a questão dos recursos energéticos está em pauta: a Ucrânia depende fortemente da produção de gás natural russa – que chega a atender 70% das necessidades diárias do país – e é rota de passagem para as exportações do mesmo recurso aos países da União Europeia. A Rússia fornece 30% do gás natural consumido por estes países, e deste total a metade passa pela Ucrânia.

Obviamente, a corrupção do governo anterior ajudou bastante nos movimentos que levaram ao golpe de Estado, mas é inegável que se encontram as digitais da CIA, a agência de inteligência norte americana, no processo. Contudo a emenda pode sair pior que o soneto: há neonazistas declarados no novo gabinete formado – e não se sabe ainda o que a Rússia irá fazer para conter a influência americana a poucas léguas de Moscou.

Outro caso semelhante, ainda sem ruptura, é o da Venezuela. Protestos de oposição exigindo a saída do presidente Nicolas Maduro e a entrega do poder à oposição vem se acentuando nas últimas semanas, insuflados também por uma grande imprensa absolutamente alinhada a estes políticos conservadores. O governo de Caracas acusa a diplomacia norte americana de estar por trás dos protestos golpistas, o que, dado o “modus operandi”, é bastante provável.

Vale lembrar que a Venezuela é um dos principais fornecedores de petróleo aos Estados Unidos, em condições logísticas bem melhores que os tradicionais fornecedores do Oriente Médio. O governo de Maduro vem cometendo alguns erros na condução da economia, em parte por erros de avaliação, em parte por locautes, mas após um ano de mandato a radicalização da política venezuelana é visível. Existe uma recusa mútua das partes para se sentar à mesa de negociações.

12fev2014---pessoa-carrega-extintor-de-incendio-proximo-a-veiculo-incendiado-nesta-quarta-feira-12-durante-protesto-convocado-pela-oposicao-em-caracas-na-venezuela-um-militante-governista-morreu-1392243689960_956x500Contudo, as manifestações convocadas pelo chavismo em resposta mostraram que o modelo implantado pelo falecido presidente Hugo Chávez ainda dispõe de amplo apoio popular, e isso provocou um refluxo das manifestações golpistas nos últimos dias – até quando, não se sabe. Note o leitor que Maduro está no poder após eleições reconhecidas como limpas até pelo governo americano e que, ao contrário do que apregoa a mídia brasileira, não há censura à imprensa local.

Em menor grau, observamos um quadro semelhante aqui no Brasil, com políticos e integrantes extremistas convocando protestos para derrubar o poder e defendendo soluções extra-constitucionais. Faltando poucos dias para a passagem dos 50 anos do golpe civil militar de 1964, veem-se convocações de novas “Marchas da Família com Deus Pela Liberdade”, tal qual em 1964. Inclusive com apoio de âncoras de televisão.

Políticos e jornalistas não alinhados afirmam que há dinheiro e recursos norte americanos nos recentes protestos de rua, o que pessoalmente acho bem provável. O Brasil é dono da última grande fronteira petrolífera mundial, e as empresas americanas ficaram com acesso apenas bastante marginal a esta jazida – algumas pequenas áreas resquícios ainda das concessões do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. A campanha implacável que a grande mídia vem movendo contra a Petrobras também está inserida neste conceito: há que se desmoralizar a companhia a fim de enfraquecê-la e forçar algum tipo de mudança no modelo de exploração do pré-sal.

Note-se que chegou a haver balões de ensaio para se repetir aqui no Brasil algo semelhante ao ocorrido em Honduras e no Paraguai, ou seja, golpes de Estado com um verniz rasteiro de “legalidade” via manobras do Poder Judiciário. Aqui e ali se ouviam declarações de políticos da oposição e juízes neste sentido a partir do julgamento da AP 470, mas parece que houve a percepção que não haveria condições políticas para tal. Gilmar Mendes, juiz de notórias ligações com a oposição, chegou a declarar nos autos que o PT deveria “ser posto na ilegalidade”.

O que une isso tudo que escrevi em linhas gerais acima?

A velha receita de soluções fora do caminho democrático empregada em larga escala nas décadas de 60 e 70 do século passado está de volta com força total. Em comum, o fato de terem governos não alinhados automaticamente com os Estados Unidos, serem produtores de petróleo ou gás natural, terem feito alguma distribuição de renda nos últimos anos (neste caso, a Ucrânia nem tanto) e uma elite local que não está disposta a ceder um único milímetro de seus privilégios.

O sucesso do caso ucraniano – apesar das imprevisíveis implicações geopolíticas envolvendo as relações com a Rússia – certamente irá encorajar a diplomacia americana a buscar o mesmo tipo de solução em outros países, com resultados ainda a determinar. Especialmente em países onde a elite local e a mídia oligopólica estão insatisfeitas com seus governos – Brasil, Venezuela e, em menos grau, a Argentina – um eventual apoio americano pode fornecer o caldo de cultura necessário a golpes de Estado e soluções correlatas, ainda que com outro nome ou vernizes de “legalidade”. A conferir.

Em suma, um museu de velhas novidades.

One Reply to “Museu de Velhas Novidades”

  1. Belo texto, Migão. Só acho válido registrar que, apesar do enfraquecimento da Rússia (em comparação aos anos da Guerra Fria), os Estados Unidos já perceberam que não será nada fácil manter a sua hegemonia mundial. As manobras operadas na Venezuela, no Brasil e em outros países estratégicos está revertendo mais em desconforto e desgaste para os americanos do que em perspectivas de vitórias. Deu para perceber que estes países não são o Paraguai. Por outro lado, mesmo conseguindo uma vitória inicial na Ucrânia, o custo está ficando alto: terão que lidar com neonazistas no poder, além de terem reforçado o alinhamento entre Rússia e China, que estão de namoro no portão e promessas de amor eterno. O mundo fica mais interessante a cada dia.

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