Na última semana, talvez o maior destaque do noticiário político tenha sido a tentativa por parte de setores reacionários de se repetir as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” ocorridas em 1964 como apoio ao movimento que terminaria por depor o Presidente João Goulart. Felizmente, apesar do alarido verificado na internet – com apoio de colunistas e órgãos de imprensa mais conservadores – as manifestações não lograram grandes movimentações de pessoas.

As reivindicações destes grupos são simples: uma intervenção militar a fim de depor o governo e prender todos os políticos e militantes do PT, com a volta aos “tempos dourados” dos militares. Tais grupos advogam que o PT é “comunista” e “antidemocrático”, e por isso os militares precisam ‘salvar’ o Brasil do comunismo, da corrupção e das garras da União Soviética.

Acessoriamente, combatem o projeto do marco civil da internet prestes a ser votado no Congresso Nacional. Inclusive com algumas pérolas surreais:

-“Opinião com liberdade só aqui. Imprensa 95% comprometida com o comunismo.”

“- Se comunismo fosse BOM mesmo a URSS estaria viva! Alemanha Nazista idem!” (este, pelo visto, faltou às aulas de História no ginásio)

“- Censurar a internet é uma ameaça terrível ao capitalismo!”

“-Atenção. PT é a favor do Brasil ser anexado à Rússia.”

Estas são algumas das ideias recolhidas em uma pesquisa rápida pelo Twitter – pela qual agradeço ao leitor Fábio Pavão. O mais incrível é que há colunistas adorados pelos reacionários – como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino – que propagam este tipo de comentário como se verdade fosse. E com espaço na chamada “grande mídia”.2014032200530Cabe a estes segmentos a seguinte pergunta: realmente há noção do que significou a ditadura?

Para lembrar a quem se esqueceu, só de início estas manifestações contra o governo estariam proibidas. Opinar contra o governo era proibido: dava censura e cadeia – isso quando não ocorria coisa pior. Tortura, arbítrio, privilégios a grupos econômicos e falta de liberdade eram regra.

Outra ideia difundida por estes grupos é a de que não havia corrupção na ditadura, porque os militares teriam moral “inatacável”. Óbvio que não adianta nada generalizar, mas o período entre 1964 e 1985 é pródigo em casos deste tipo. Inclusive com um governador biônico (ou seja, indicado pelo governo central) do Paraná, Haroldo León Perez, forçado a renunciar ao cargo em 1971 por ter sido flagrado negociando propinas com empreiteiro. Casos como as construções da Transamazônica e da Ponte Rio Niterói ou o escândalo da Capemi (caixa de previdência dos militares) também são bons exemplos desta falácia. E olha que nem cito aqui o ex-Ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki e o escândalo das mordomias ministeriais…

A única diferença é que a imprensa, naquele momento, não podia denunciar estes casos: estava sob censura. Com todas as críticas que se faz ao governo atual, os órgãos de mídia podem falar e publicar o que quiser, mesmo colocando a notícia, muitas vezes, subordinada a interesses político-partidários. A ditadura torturava e matava jornalistas, ainda que sequer tivessem denunciado o que quer que seja no governo – haja visto o caso Vladimir Herzog.

Na economia, a inflação elevou-se ano a ano, a dívida externa explodiu e a política de compressão salarial aumentou a desigualdade social. O Brasil chegou em 2002 (ou seja, 17 anos após o final da ditadura) com 32 milhões de pessoas passando fome cotidianamente ou em condição de miséria absoluta. Como já escrevi em algumas ocasiões aqui, o trabalho de diminuição da desigualdade social realizado de 2002 para cá obteve resultados excelentes e está moldando um outro Brasil.

22mar2014---manifestantes-fazem-cartazes-na-praca-da-republicapara-a-marcha-da-familia-com-deus-pela-liberdade-no-centro-de-sao-paulo-outras-duas-marchas-uma-pro-e-uma-contra-a-intervencao-militar-no-1395511112891_956x500Isso, aliás, talvez seja um dos motes destes protestos implorando por um novo golpe militar. Afinal de contas, o senso comum é que os militares “colocavam as pessoas em seus devidos lugares”. Ordem e progresso, né? Podia-se pagar pouco e ao mesmo tempo ter a sensação de exclusividade da qual a classe média gosta muito de “usufruir”. Infelizmente não achei nenhuma foto, mas nas manifestações recentes haviam alguns cartazes reclamando que os aeroportos “estavam parecendo rodoviárias”. Revelador.

Vale lembrar que nem a oposição congressual brasileira embarcou nesta aventura. Seria mentira dizer que não se aventou, pelo menos, a possibilidade de um golpe “à Paraguai” – ou seja, via Judiciário – mas neste momento parece que perceberam que não há condições políticas para tal desrespeito à democracia brasileira. Nos meios militares, tirando aqueles generais de pijama de sempre, também não parece haver descontentamento com o regime democrático brasileiro.

O momento atual repete em um aspecto o malfadado 1964: um alarido oposicionista muito estridente, mas um governo com apoio popular. Dados divulgados recentemente indicam que João Goulart possuía amplo apoio popular às vésperas do golpe de estado, como reproduzido abaixo de matéria da “Folha de São Paulo”:

“Duas pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do movimento militar de 31 de março de 1964, e nunca divulgadas, mostram que o presidente João Goulart contava com amplo apoio popular ao ser deposto, apesar da polarização ideológica que o país enfrentava.

Uma das pesquisas, feita pelo Ibope em três cidades paulistas, apontava que 15% dos ouvidos consideravam o governo Jango ótimo, 30% bom e 24% regular. Para 16%, a administração Goulart era má ou péssima.

A outra pesquisa do acervo do Ibope, que entrevistou eleitores de oito capitais entre os dias 9 e 26 de março de 64, mostra que 49,8% dos pesquisados admitiam votar em Jango caso ele pudesse se candidatar à reeleição, contra 41,8% que rejeitavam a possibilidade.

(…) Outra pesquisa feita pelo Ibope no período revela que 59% dos ouvidos eram a favor das medidas anunciadas por Jango no histórico comício da Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março de 64. As propostas incluíam a desapropriação de terras às margens de rodovias e ferrovias e o encampamento das refinarias estrangeiras.”

É um quadro que se repete no Brasil de hoje: pesquisa do mesmo Ibope divulgada na última semana indica que a atual Presidenta Dilma Rousseff teria 43% dos votos totais se a eleição presidencial fosse hoje, quase o dobro de seus possíveis adversários. Se há uma semelhança entre os dois cenários é o fato da oposição ao governo partir de setores da elite com controle sobre as vozes empresariais e os órgãos de imprensa, mas sem voto. Uma espécie de UDN revisitada.

intervenção militarObviamente, o governo atual tem problemas. Mas a percepção do eleitorado é de que não somente o Brasil avançou em termos de emprego e renda como as opções políticas constitucionais tem problemas ainda piores. Por isso, talvez, o alarido e a busca de soluções extra-constitucionais por parte desta minoria, por mais que haja alegação de que o artigo 142 da Constituição permitiria isso:

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Como o leitor pode verificar, não há qualquer menção no artigo a golpes militares. Ao contrário: deixa claro que estão subordinadas à “autoridade suprema” do Presidente da República. Não sou advogado nem especialista em Direito Constitucional, mas para mim parece claro que este pedido de “intervenção militar constitucional” que alguns destes grupos pregam é uma grande mentira: não há nada na Constituição que permita que ela própria seja rasgada.

marcha_pela_familiaNa verdade, o que vemos aqui é a repetição daquela absolutamente verdadeira máxima do grande economista e filósofo Karl Marx: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. É exatamente isso a que estamos assistindo hoje com esta tentativa de repetir 50 anos depois as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” ocorridas em 1964. Farsa.

Temos de nos lembrar dos 50 anos do Golpe, que se completam semana que vem. Para que jamais se repita.

Imagens: Globo e Uol