Na segunda parte da série sobre a Rússia, o advogado Gustavo Cardoso disseca a questão da homofobia na Rússia e suas relações com a geopolítica global.

As Olimpíadas de Putin – Parte II

Quando analisamos a questão da homofobia na Rússia, devemos abordar separadamente três aspectos: as leis, o governo e a sociedade. Devemos, também, comparar o quadro russo com o internacional. Comecemos pelas leis.

As relações entre indivíduos do mesmo sexo foram legalizadas no país em 1917, com a Revolução Russa, e proibidas novamente com a ascensão de Stalin ao poder, em 1930. Só foram novamente permitidas com o fim do regime comunista, em 1993. A idade de consentimento é a mesma para as relações heterossexuais. Não é permitido casamento gay, nem união civil. Como não é possível formalizar união, um casal gay não pode adotar uma criança; mas um indivíduo gay solteiro, sim. É permitido mudar de sexo desde 1997. Não há lei que proíba um homossexual de servir nas forças armadas, mas há muita discriminação.

É uma legislação mais liberal que a da maioria dos países do mundo, e muito parecida com a dos países da Europa Ocidental de poucos anos atrás. Acontece que – e isso é muito recente – a maior parte da Europa e boa parte da América têm feito avanços notáveis na proteção aos direitos da comunidade LGBT. Na Rússia, ao contrário, as leis não têm avançado, o que é um claro reflexo de uma onda conservadora que se percebe na sociedade – uma pesquisa de 2013 apurou que 74% da população não aceita a homossexualidade (contra 60% em 2002).

1_patinadoras__sochi_afp__5_-75576Então, houve um retrocesso. Uma lei federal baniu a “propaganda gay para menores” em junho de 2013, após normas semelhantes terem entrado em vigor em dez regiões do país entre 2006 e 2013. Aqui, é fácil bater em Putin, mas difícil dizer o quanto ele e o resto da classe política influenciam, e o quanto são influenciados pelo clima geral da nação. Certamente é central o papel da Igreja Ortodoxa, mas dependemos de estudos sociológicos aprofundados para amadurecer uma opinião.

A lei “anti-propaganda gay”, que Putin garante ser apenas “simbólica”, gerou uma forte reação no ocidente ao ser sancionada, às vésperas do Campeonato Mundial de Atletismo, disputado na Rússia no ano passado, e motivou ameaças de boicote aos Jogos de Inverno, por países e atletas, que afinal não se consumaram.

Entendo que a homofobia – no mundo inteiro, não apenas na Rússia – é um problema real e grave. Também reconheço que o quadro russo é preocupante, dado que a tendência não parece ser de avanço, mas de recuo. Dito isso, a reação de atletas, políticos, personalidades, mídia e opinião pública ocidental foi exagerada e teve muito de hipocrisia e de arrogância eurocêntrica em sentido lato (para incluir os demais países do chamado “ocidente”).

Afirmo isto porque o processo de emancipação dos homossexuais ainda está no início, mesmo entre os povos de cultura mais liberal; porque nenhum país está realmente livre de homofobia; e porque a Rússia não é o inferno que tentaram mostrar, principalmente se comparada a alguns amigos do ocidente (na Arábia Saudita, a pena mínima para o homossexualismo é a prisão perpétua).

Pode ser que, em breve, o casamento gay seja reconhecido no mundo inteiro. Por enquanto, é muito raro. Dos 28 países da União Europeia, só é válido em 7 – e outros 7 expressamente o vedam em suas constituições. O primeiro a legalizá-lo foi a pequena Bélgica, há meros 10 anos. O último foi a França, no ano passado, sob pesados protestos homofóbicos nas ruas do país. A adoção por casais gays é permitida em 9 países. Nos EUA, só em 2009 o primeiro estado legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo; hoje, entre os 50 estados, 16 o permitem e 30 o vedam em suas constituições.

Parece pouco para que o “ocidente” se conceda o direito de promover uma campanha de bullying contra os “bárbaros homofóbicos” de outras plagas. E quando atentamente observado, o quadro é ainda mais suspeito. Um dos principais países da UE, a Itália é notoriamente um ‘shangri-la’ da homofobia, que pouco difere da Rússia. O quadro legal do país é praticamente o mesmo da terra de Putin. Mas ninguém cogitou de boicotar os Jogos de Inverno de Turim, em 2006.Putin3

Os ocidentais foram desinformados que casais gays podiam ser presos na Rússia por aplicação da lei anti-propaganda. Era mentira. Manter uma relação homoafetiva é tão permitido naquele país quanto manter uma relação heterossexual – vale para qualquer pessoa maior de 16 anos.

O mesmo não se podia dizer de Salt Lake City quando aquela cidade americana sediou os Jogos Olímpicos de Inverno de 2002 – na época, qualquer atividade homossexual era ilegal no estado do Utah, punível com 6 meses de cadeia e multa de US$ 1,000. Você ouviu falar de alguma ameaça de boicote? Eu também não.

Parêntese: até 2003, o homossexualismo era crime em 14 estados americanos, entre eles o Utah. A proibição só foi derrubada por um julgamento da Suprema Corte. O Utah nunca revogou formalmente a sua ridícula Sodomy Law, que proibia não apenas atos homossexuais, mas até o coito anal e a felação entre casais legalmente constituídos; os atletas olímpicos de 2002 correram o risco de serem presos por isso.

Isso não ficou no passado. O Utah, o Texas, o Arizona (onde será realizado o próximo Super Bowl – mais uma vez, chance zero de boicote ou de histeria midiática) e outros cinco estados americanos mantêm até hoje leis que proíbem a “promoção da homossexualidade”, nos mesmos moldes da lei russa de 2013. A bancada evangélica do nosso Congresso se inspira nesse tipo de lei para emplacar uma dessas no Brasil.

Falando em Brasil, graças ao STF nós temos hoje um dos regulamentos jurídicos mais progressistas do mundo sobre o assunto. E daí? Alguém diria que não há homofobia no Brasil? Alguns de fato diriam que não, e que até vivemos numa espécie de “ditadura gay”, já que um tal de Félix beijou não-sei-quem numa novela… O que a Folha de S.Paulo diz, em reportagem de destaque de domingo 09/02, é que têm aumentado os atentados homofóbicos – inclusive com morte das vítimas.

E estivemos tratando o tempo todo da parte mais cosmopolita do mundo. Se nos aventurarmos por Oriente Médio, África, sul da Ásia e até por alguns países do Caribe, nos depararemos com leis medievais, penas escabrosas e discursos inacreditáveis. Para ficar em um exemplo, temos uma Copa do Mundo marcada para acontecer em um país, o Catar, onde a pena para o homossexualismo masculino é de 5 anos de prisão (o lesbianismo é legal, já que o Alcorão silencia a respeito).

Fica claro que a homofobia não é exclusividade de nenhum país, e que o jogo da mídia ocidental, no que diz respeito à Rússia, é criar um espantalho, tentando associá-lo a Vladimir Putin. Na primeira parte do artigo, publicada ontem, tentei mostrar que isto está ligado a interesses geopolíticos. A função do discurso anti-homofobia é tornar a retórica compreensível e atraente a jovens europeus e americanos de mente progressista.

jackie-chamoun-14Mas a tática é pouco convincente quando o leitor se dá ao trabalho de atentar para o número de vezes que a mesma mídia tenta estabelecer relações forçadas, ao mesmo tempo em que evita outras. Digamos, com qual das seguintes associações está mais acostumado: “Putin=Homofobia” ou “Igreja Ortodoxa Russa=Homofobia”?

Agora, compare a frequência com que surgem estas duas associações: “Rei Abdullah da Arábia Saudita=Homofobia” e “Islamismo=Homofobia”. A segunda é frequente na mídia: agora sim, a religião é que surge como a explicação suficiente do mal. Já a primeira é virtualmente ignorada; o indivíduo parece não ter nenhum vínculo com o acontece à sua volta. Será?

[N.do.E.: para o leitor que está estranhando a última foto deste post – todas com competidoras de Sochi, não necessariamente homossexuais – é de uma esquiadora libanesa que causou escândalo em seu país com a divulgação de tais fotos nestes trajes.]

2 Replies to “Pitaco: “As Olimpíadas de Putin – Parte II””

  1. O problema do vídeo da Jackie Chamoun (o nome da esquiadora libanesa) não foi o bikini, já aceito no relativamente liberal Líbano, mas 3 ou 4 trechos do making of vazado no qual ela aparece de topless (e um deles frontal).

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