Em mais uma edição de nossa série, hoje a escola enfocada é a Estácio de Sá (antiga Unidos de São Carlos), sucessora da Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba da história. A autora do texto é a administradora Michele Bragança, torcedora da escola e que tem raízes no morro de São Carlos – além de ser esposa do gigante compositor portelense Wanderley Monteiro.

O curioso é que hoje trabalho a poucos metros da quadra da escola, que fica na Rua Salvador de Sá, bairro do Estácio. Vamos ao texto.

Tu és o Pavilhão do Amor

Escrever requer emoção correndo nas veias. Fecho os olhos. Quantas lembranças, boas e más. Quantas histórias, tristes e felizes. Falar da Estácio de Sá é falar de mim, dos meus pais, dos meus antepassados.

A nossa história é cruzada com a da Escola de samba. Passistas, Diretores, bateria, baianas ou simplesmente amantes. De todas as lembranças, a maioria passa pelas ruas, ruelas, becos e favela do “velho Estácio de Sá”.

Se um dia fizessem uma biografia de nossas vidas poderia ser chamada de Vidas Cruzadas, nosso sangue vermelho faz explodir (*). Se um dia fizessem a minha biografia poderia ter um capitulo chamado “A menina que odiava o samba”, odiava Samba ou pelo menos acreditava que odiava. Sempre odiou samba. Samba é coisa de vagabundo. Se o samba fosse a julgamento seria culpado e condenado.escadaMorroSaoCarlos

Em toda sua existência sempre desejou acreditar; afinal foi ele, o samba, responsável por sua miséria e de sua família. Quantos pratos de comida, sapatos, livros ou brinquedos não foram perdidos junto às disputas de sambas de enredo. Quantas lágrimas foram derramadas, quantas vezes sentiu a falta do pai, quantas brigas e discussões, quantas dores causadas pelo sumiço do pai… Sim, ele era o culpado. O samba era único culpado.

Só que tinha o sangue, lembra? O que faz explodir? Torcia por sua vermelho e branco, escondida, na surdina, no canto e calada. Mantinha certa distancia, mas não deixava de assistir a um desfile, de ouvir os comentários e até mesmo para os não conhecidos defender de possíveis injustiças.

Acontece que em 1992 não segurou, viu sua escola cantar a Paulicéia Desvairada e ser campeã. Ouviu e viu na televisão gente chorando, pés sagrando e seu coração explodiu, lembrou da família, do pai. Chorou e sorriu juntinho, no compasso do modernismo. Cantou “Na Paulicéia desvairada lá vou eu…” E pela primeira vez na vida entendeu que aquilo fazia parte dela e se deixou levar. O amor sentido naquele momento fez brotar a sementinha Estaciana, mas não foi suficiente. A dor causada não tinha desaparecido…

Carnaval de 2005, a convite de amigos, resolveu desfilar na Estácio de Sá, assim mesmo, de longe. Estácio de Sá, não a tão familiar São Carlos. Manteve-se distante ou pelo menos tentou (acima, o áudio do samba, ao vivo).

Surdo, chocalho, tamborim, cuíca, reco-reco, pandeiro… É a bateria tocando, pés sambando aquela que sempre teve no coração. Chegou a hora. Pela segunda vez sentiu aquela emoção. Não brigou mais, somente aceitou. Cantou, se encantou e se deixou levar. As lágrimas escorreram num misto de alegria e tristeza, ela tinha voltado. Hino explodindo dentro do corpo, como um vulcão em erupção. Os sentimentos todos transbordando e as lágrimas como ajudantes esvaziam o coração repleto de emoções.

E sambou, cantou, chorou, sorriu como jamais havia feito antes: se lembrou da Avó, da roupa de baiana pendurada no varal. Lembrou das baianas descendo a Rua São Carlos, ela menina assistindo aquele balé encantando. Lembrou das tias e primas passistas, do corre-corre no carnaval. Lembrou das tias emprestadas que carregavam os mesmos sentimentos em suas almas. Lembrou do passista que tem o samba no corpo apelidado de lacraia.

Lembrou de quando eram crianças. Dos sonhos. Lembrou da tia (avó) onde era ponto de encontro de todos os dias, ali pertinho do sambódromo na Rua São Carlos. Lembrou da Mãe e principalmente do pai. O Pai e seus batuques na caixinha de fósforo, do samba sendo construído. O Pai e a sua história com a São Carlos e o São Carlos. A Família do Pai, os Braganças, viviam a Escola e o bairro.  Seu irmão Nelson Galinha (**) é considerado para muitos uma das personalidades da Escola, mas esta é outra  história. Fez as pazes com o seu sentimento, com o seu lugar e com a sua história.

Cantou: A saudade apertou voltei, e eu voltei / Pra ficar ao teu lado (oba, oba) / Dá um nó na garganta / Meu peito se zanga / É sentido calado (pois é, pois é)/ Mas corre nas veias / Esse sangue vermelho/  Que me faz explodir / Seu branco é encanto / Eu visto esse manto / E vou por aí. A esperança continua / Amor, amor, amor Sou seu poeta pelas ruas / O meu coração se abriu em flor, Tu és o pavilhão do amor. Seu pavilhão de Amor.

(*) Pavilhão do Amor, samba de exaltação da Estácio de Sá

(**) Nelson Galinha. Falar desse cara na integra levaria centenas de paginas, querido por todas as esquinas e turmas de futebol do Estácio, o vizinho sacana e brincalhão que era apaixonado pela bateria; um excelente tocador de repique. Nelson Galinha no auge de seu envolvimento na bateria, em certo momento quando chegava ao palanque causava alegria para uns e medo para outros; de um ouvido fantástico para o ritmo adorava tacar baquetas na cabeça daqueles que ‘davam um mole’.

Apesar de seu jeito arrojado Nelson Galinha era ídolo para todos. Infelizmente, partiu precocemente deixando sua marca não somente em termos rítmicos como, também, deixou saudades do malandro que virou lenda.