O terceiro artigo da série do antropólogo Ricardo Delezcluze sobre o carnaval de Manaus aborda os problemas deste desfile, em especial dos grupos de acesso.

Os Problemas do Carnaval de Manaus e do Brasil

Depois de traçar um panorama otimista nos dois artigos anteriores, chegou a hora de encarar os problemas enfrentados pelos foliões e sambistas de Manaus. Interessante notar que os problemas enfrentados por aqui acabam sendo comuns também a outros carnavais Brasil afora e até mesmo pelas escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro.

O primeiro obstáculo e que talvez englobe todos os restantes é a questão política. Ela desemboca em julgamentos de valor muitas vezes controversos. A questão valorativa é antiga e há quem remonte a mesma lá nos princípios da história do carnaval pela oposição entre “popular” e “erudito” com todas as idiossincrasias que os conceitos carregam.

Pois saibam que ainda hoje existem bancadas e lobbies parlamentares que fazem de tudo para obstruir subvenções. Existem mandatos que por populismo sensacionalista, fundamentalismo religioso ou até interesses escusos sabotam a realização dos desfiles. Assim, desfiles de escolas de samba são considerados algo menor por tecnocratas. Investimentos em cultura popular sugam o dinheiro que seria melhor utilizado em bibliotecas, escolas e postos de saúde. Ignoram que o direito ao lazer faz parte do direito à cidade que podem usufruir todos seus habitantes. Ignoram ainda que não são as elites e sim o próprio povo que deve escolher que tipo de lazer quer usufruir.

Talvez exista nisso uma visão torpe de que cultura deve gerar lucro, uma confusão exportada do Rio de Janeiro onde a cultura tornou-se atrativo turístico e consequentemente oportunidade financeira para alguns.

Daí provém a segunda perigosa associação relacionada às distorções dos conceitos de identidade e autenticidade. Escolas de samba de estados como Pernambuco, Maranhão e Bahia definham diante do abandono do poder público em nome de formas consideradas autênticas da região como o frevo, bumba-meu-boi e axé.

Em Manaus parece que a oposição colocada é em relação ao Boi de Parintins. Dirigentes das escolas de samba acusam os bois de tomar o espaço das escolas com suas toadas no carnaval. É que no mesmo sambódromo em que elas desfilam acontece uma espécie de ‘carnaval de trio’ com músicos de toadas de Parintins. Por um momento, envolvidos nesse embate, foliões esquecem sua condição de brincantes de boi no mês de junho e brincantes de boi da fantasia que vestem para brincar carnaval.

Como consequência dos obstáculos anteriores aparece uma terceira grande pedra no sapato daquele que já foi considerado o segundo maior carnaval do país: o descaso. Parte dele é estimulada pelos mesmos agentes dos obstáculos anteriores. Outra parte é fruto de certa ingerência dos próprios dirigentes de escolas de samba. Assim as escolas dos grupos de acesso de Manaus tem que enfrentar as piores condições para preparar suas alegorias, tal como vemos acontecer com as escolas que estão fora da Cidade do Samba no Rio de Janeiro (foto do início do post).

Chega a ser incrível ver escolas desfilando com alegorias que foram construídas no tempo, sem dinheiro, em condições insalubres em um espaço contíguo ao sambódromo. Disso decorrem o desinteresse absoluto pelas escolas de samba que desfilam magistralmente na quinta (grupo de acesso C) e sexta (grupos de acesso A e B) de carnaval por boa parte da população. É raro ler comentários ou coberturas na grande mídia sobre essas escolas nos dias que antecedem os desfiles. Por outro lado é difícil buscar informações sobre os mesmos como ordens de desfiles, regulamentos e até mesmo sambas e enredos.IMG_4360

Não parece muito diferente do que vemos acontecer com as escolas da Intendente Magalhães (no Rio de Janeiro) onde mesmo o guia oficial do carnaval da cidade muitas vezes ignora a existência destes desfiles. A solução para alguns não é muito diferente da carioca: “que essas escolas acabem! Elas não servem mais.”

Assim repetem os que odeiam ter que lidar com o que já foi chamado “mambembe” por respeitados pesquisadores; aquilo que não tem como dar lucro, nunca será espetáculo, mas gera extrema satisfação a quem constrói ou participa.

É bonito ver 26 escolas resistindo bravamente a todas essas adversidades em Manaus. Não é pouco se você considerar as milhares de mentes brilhantes que se dedicam com afinco para manter o carnaval vivo. Pessoas que não estão nem aí para holofotes. Pouco ligam para dinheiro. A satisfação vem do samba puro e inocente que seduz aos fascinados como eu.

Por isso faço questão de dedicar essas linhas aos lutadores das 8 agremiações do Grupo Especial de Manaus, para que o esplendor em cenário nacional tenha lugar outra vez. E dedico principalmente aos guerreiros, aos artistas, aos sambistas de fé das 18 escolas dos grupos de acesso A, B e C de Manaus, por melhores dias com reconhecimento de sua beleza, sua importância na cidade para além dos minutos deliciosos de desfile. Que sigam resistindo como nos versos de Chico Buarque:

” Mendigo, malandro, muleque, mulambo bem ou mal
Escravo fugido, um louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Dormindo na estrada, no nada, no nada
E esse mundo é todo meu”