Neste saábdo, mais uma edição da coluna de contos de ficção do compositor Aloisio Villar.

Nas cinzas pude perceber

Acabei de ler a história com lágrimas nos olhos. Tinha muito ali de minha história com meu pai. Nosso amor e entendi porque aquela era a última história do caderno. Era como se fosse a nossa.

Sim. Era a última história do caderno, mas não seria a última do livro. Queria mais um conto para fechar com chave de ouro. Faltava apenas um para finalizar a obra, dois dias para o casamento de Bia e três para o fechamento do bar. Não estava fácil.

De noite fui com Mariana até a casa da Bia. Julinha como sempre me recebeu com um abraço, mas cumprimentou secamente Mariana. Saiu de perto e minha acompanhante comentou que ela ficara com ciúmes; respondi “normal” e Bia também nos cumprimentou e mandou que entrássemos. Ao entrarmos Mariana disse “ela também ficou com ciúmes”, rindo comentei “ela puxou a filha”.

Zé já nos esperava com drinques, me deu um abraço forte dizendo que estava feliz com minha presença. Sentamos e o homem colocou um cd para deixar nossa noite musical. Colocou Abba com “Dancing queen” e estranhamos. Mariana me perguntou se ele era gay e respondi que não, apenas curtia um jeito alternativo de ser. Bia querendo mudar o foco da atenção perguntou como nos conhecemos e Mariana contou toda a história.

Bia e Zé ficaram pasmos com a história do tráfico. Não sabiam que era ela quem eu citava na reportagem. Conversaram por alguns minutos enquanto eu e Zé apenas observávamos quando Bia lhe chamou na cozinha para ajudar e continuarem o papo. Pronto: ficaram amigas, minha ex e a atual.

Julinha jogava videogame enquanto Zé ficou me encarando. Eu tentei olhar para outro canto, constrangido assoviava até que Zé disse “você gosta dela”. Não entendi aquela afirmação e respondi que não, ainda era muito cedo para gostar de Mariana e o homem respondeu “não, falo da Bia”.

Na hora me engasguei. Tossi por um tempo e falei que não, era minha ex, uma amiga muito querida, mas queria apenas que fosse feliz.  Ele continuou afirmando que eu gostava e eu que não. Ficamos nessa um tempo até que eu irritado gritei “já falei que não gosto cacete!!” e Zé afetado disse “ai, não precisa gritar”.

Por fim perguntou se eu gostava de alguém e respondi que não. Perguntou se eu tinha certeza, olhei sério pra ele e o atual de minha ex abaixou os olhos completando “não precisa ficar bravo, só queria ter certeza”.

As mulheres voltaram da cozinha e Bia perguntou se estava tudo bem. Zé respondeu que sim e apenas conversávamos. Minha ex beijou o namorado, Mariana me beijou e enquanto eu beijava olhava para eles e me perguntava como Bia podia gostar “daquilo”. Até que reparei que Bia também me olhava.

Tivemos uma noite agradável, apesar do ciúme tomar conta de mim. Depois Mariana e eu emendamos no “casa de bamba” e Mariana comentou que eu gostava da Bia. Na hora parei de beber e perguntei “Até você?”

Minha acompanhante ficou em silêncio. Almeidinha trazia as fritas quando Manolo se aproximou. Perguntei como o homem estava e ele respondeu que bem. Disse que tinha duas pessoas em uma mesa do lado de dentro que chamaram a mim e Mariana para nos juntarmos a eles. Fui com minha acompanhante e quando vi era Dodô com um homem.

Dodô me cumprimentou e lamentou pela morte de meu pai, completando “era um grande homem”. Apresentou seu acompanhante dizendo “Esse é Nezinho, presidente da Acadêmicos do Gato Molhado”.1.546359

Fiquei surpreso e falei “Nossa, ele existe mesmo!!” Dodô pegou uma de minhas fritas e disse que não só existia como podia comprovar a história que contou. Pediu e Nezinho rindo respondeu que era tudo verdade. Até aquele dia nunca vira uma vaia e reação tão grande em um desfile das campeãs, nem no ano em que a Princesa Isabelense ganhara o carnaval com 10 em tudo mesmo desfilando sem dois carros e com a bateria apenas de cuecas. Ou nem no ano seguinte ao acontecido, quando fizeram o enredo “Urina, a seiva da vida”.

Sentei estupefato com tantas revelações quando Dodô perguntou se eu já terminara o livro e respondi que não, precisava de mais uma história. O velho riu e respondeu que eu teria a minha última história. Perguntei quem era o personagem daquela última história e Nezinho rindo respondeu: “seu pai”.

Ouvi, mas não entendi. Pedi que repetisse e Dodô falou “Quer jeito melhor de terminar que uma história de seu pai?”.

Nezinho relatou então o último conto.

Meu pai era jovem ainda. Essa história se passou trinta anos atrás, quando eu era criança e meu pai ainda caminhava como um Harmonia. As coisas não estavam bem financeiramente e meu pai recebeu proposta de emprego em Sete Mares. Como o nome já diz, cidade litorânea de São Paulo.

Foi trabalhar como motorista de uma gente chique de lá de segunda a sexta e voltava nos fins de semana para cá ficar conosco. Mas minha mãe, dona Regina, já começava a reclamar da distância, além de que os gastos de meu pai não eram poucos em vir para o Rio todos os fins de semana. Meu pai ainda propôs vir só uma vez por mês, mas minha mãe não aceitou.

Botou meu pai na parede e disse “eu e Pedrinho vamos morar em Sete Mares com você”. Meu pai ainda tentou argumentar que morava em um quartinho na casa do patrão, mas não teve jeito. Minha mãe era tinhosa e conseguiu convencer meu pai.

Dessa forma fomos para São Paulo.

Não lembro muito dessa época, eu tinha apenas cinco anos. A única coisa que lembro realmente era que me apaixonara por Manuela, filha do casal para qual meu pai trabalhava. Por algum tempo eu dizia que ela era minha namorada sem ela saber. Depois “assumimos” nosso namoro que era brincar juntos e falar que namorávamos apenas.

Eu com cinco e ela com quatro anos.

Vivíamos eu, minha mãe e meu pai naquele quartinho. Meu pai como motorista da família e minha mãe como empregada da casa. A família comandada pelo seu Ivo Figueiredo, jovem ainda (uns quarenta anos), era bacana e nos tratava muito bem. A vida não era ruim.

Um dia minha mãe fazia a comida quando a mulher de Ivo perguntou do que ela sentia mais falta aqui no Rio. Dona Regina comentou que das escolas de samba. Ela saía em escolas, meu pai trabalhava com harmonia e sentia falta do ritmo da bateria e de sambar.

Ivo entrou na cozinha naquele instante e surpreso com o que minha mãe disse, falou “Ué? Jair nunca disse que trabalhava com samba, eu sou presidente de uma escola de samba daqui”. Foi a vez de minha mãe ficar surpresa. Ela não sabia que tinha escolas de samba em Sete Mares e as escolas, que evidente não tinham mesmo luxo e qualidade das do Rio, até que eram boas.

Com aquilo meu pai assumiu a direção de harmonia da União da Ilha dos Sete Mares. A escola tinha esse nome em homenagem à União da Ilha. Faltavam poucos meses para o carnaval, mas meu pai com toda malandragem e experiência de quem nasceu no samba sabia que poderia fazer um grande trabalho. E fez. A escola foi muito bem na avenida e fez um desfile de campeã.

No fim. Ivo agradeceu ao meu pai e todo otimista seu Jair disse que venceriam o carnaval. Ivo respondeu “isso vamos saber na terça a noite”. Meu pai estranho a declaração e perguntou “ué? A apuração não é quarta?”. Ivo respondeu que sim, mas na terça saberiam.

Mais tarde, em casa, meu pai perguntou porque na terça saberiam e Ivo contou a verdade. Antes da apuração para o público os presidentes e a liga das escolas de samba se reuniam e abriam as notas já sabendo ali quem venceu e quem caiu. O que ocorria na quarta era apenas algo protocolar. Todos já sabiam o que ocorreria.

Meu pai argumentou que aquilo era errado e Ivo, conformando, disse “o sistema é assim, infelizmente”.

Na terça Ivo convidou meu pai para irem juntos e foram até a casa do presidente da Liga em algo muito secreto. O presidente indagou a presença de seu Jair e Ivo respondeu que era uma pessoa de confiança dele, não tinha problema.

Tudo muito secreto, tudo muito escondido, parecendo uma máfia.

E era.

Os dois sentaram enquanto o secretário pegou uma daquelas sacolas de mercado. Dentro tinha um envelope pardo. O presidente o pegou e disse “aqui estão as notas”. Abriu o envelope, espalhou as notas sobre a mesa e leu uma por uma dos julgadores.

No fim meu pai e Ivo constataram que não seria daquela vez que a União da Ilha seria campeã. Ficou em quinto lugar. Os representantes da escola campeã comemoravam enquanto o secretário colocava os papéis de novo no envelope e dentro da sacola.

No dia seguinte, muito contrariado, meu pai foi até a apuração oficial com Ivo e o quinto lugar foi confirmado. Seu Jair saiu aborrecido da apuração e dizendo que aquilo não poderia ficar assim; algo devia ser feito.

O ano foi passando e meus pais trabalhando para o casal Figueiredo. De novo chegou a época do carnaval e apesar de insatisfeito com o que ocorrera no carnaval anterior, meu pai aceitou continuar na harmonia. Trabalhou com afinco para que tudo desse certo, mas o desfie não foi tão bom assim. A escola teve diversos problemas na avenida e no fim Ivo se preocupava com um possível rebaixamento.

Meu pai mandava seu patrão não se preocupar e esperar terça que tudo daria certo.

Os presidentes se reuniram na casa do presidente da liga para lerem as notas quando bateram na porta. Era meu pai pedindo desculpas pelo atraso, pois estava comprando meu material escolar. Sentou ao lado de Ivo e o envelope foi aberto.

O que Ivo temia começou a ocorrer no desenrolar das notas. A União da Ilha foi muito “canetada” perdendo pontos em todos os quesitos e acabou rebaixada. Enquanto isso David Vieira, presidente de outra agremiação, perguntava ao presidente da Liga quanto ele queria para mexer nas notas e trazer a escola de penúltima para o segundo lugar – dinheiro não era problema, nem glamour. Foi dissuadido ao ser lembrado que estava ‘de castigo’ por ter dois anos antes comprado jurados “por fora” para ser campeão – título perdido por ter esquecido de tirar os carros da dispersão.

Os campeões comemoravam, uísque era servido enquanto Ivo com lágrimas nos olhos falava a meu pai para irem embora quando faltou luz na casa. Foi coisa rápida, de um minuto e quando voltou brincaram com o presidente dizendo que ele tinha que pagar a conta de luz. David Vieira reiterou a oferta, em tom de brincadeira.

Ivo pediu mais uma vez para irem embora e meu pai aceitou.

No dia seguinte estavam lá para a apuração oficial. Ivo cabisbaixo se perguntando o que fazia ali e meu pai respondendo que tinham que encarar o resultado de frente. Ivo suspirou e disse “que assim seja”. O locutor pegou a sacola e abriu o envelope. Começou a dizer as notas e anunciou 10 para a União da Ilha de Sete Mares. Ivo estranhou e falou para meu pai que não se lembrava da escola ter tirado um dez.lesga

As notas continuaram a ser divulgadas e a União tirava um 10 atrás do outro. Ivo não entendia nada, nem os outros presidentes e a direção da liga que começava a entrar em desespero – e não podia fazer nada. Todas as escolas perdiam pontos, menos a União da Ilha que com 10 em tudo acabou se consagrando campeã do carnaval.

Constrangido, o locutor anunciou o título da União da Ilha de Sete Mares e Ivo, incrédulo, perguntou “como?” Meu pai, com um sorriso no canto da boca, mandou que seu patrão fosse até o palanque receber seu troféu de campeão.

Ivo subiu ao palanque e recebeu o troféu de um assustado presidente da liga, que lhe deu parabéns. Baixinho o homem disse que depois queria explicações e Ivo, também com voz baixa, respondeu que estava tão surpreso quanto ele.

O sacana do meu pai não estava com uma sacola com material escolar, como ele dissera ao entrar na reunião. Tinha um envelope com notas adulteradas que ele aproveitou para trocar com as verdadeiras no momento que ocorreu sua sabotagem de falta de luz. Sabotagem feita por amigos seus.

E a Liga não podia fazer nada. Ia fazer o que? Ir à polícia dizer que fez algo errado e alguém lhe enganou?

Na hora que um alucinado Ivo estourava champanhe no palanque da liga comemorando o tão sonhado título meu pai se levantou, foi embora de fininho e pegou a mim e minha mãe na casa para voltar ao Rio de Janeiro.

Antes que a direção da liga descobrisse o que ele aprontou.

Antes que descobrissem que meu ídolo enganou o sistema.