A coluna do advogado Gustavo Cardoso parte do aplicativo que analisa o “desempenho” masculino para traçar digressões a respeito da vida em sociedade.

O Lulu

A novidade nas redes sociais na semana que passou foi a chegada ao Brasil de um aplicativo para o Facebook chamado “Lulu” (https://onlulu.com/). Trata-se de um sistema de avaliação de homens, pelas mulheres, e só elas podem acessar as informações. Os “garotos” (é assim que o aplicativo se refere aos homens) que não gostarem da brincadeira podem pedir para sair, mas não interferir nos ratings.

Curioso, pedi a uma amiga que me franqueasse uma excursão, pelo login dela, a essa nova geringonça virtual. Procuramos meu nome, e o Lulu informou: “Gustavo ainda não foi avaliado. Faça um favor a ele e comece com isso!” O Lulu sabe que sou ingrato a quem me faz favores, pois jura à minha amiga: “Fica tranquila! Ele nunca vai saber que foi você!”

Uma digressão: O Lulu pode realmente garantir isso? E se eu abrir um processo judicial pedindo que o site seja obrigado a revelar as usuárias que me “avaliaram”? Eles têm certeza de que vencerão todas as ações que podem ser movidas? Ou pretendem descumprir as ordens judiciais que receberem neste sentido?

A criadora do programa, Alexandra Chong, esteve no Brasil para divulgar a novidade. Ela alega que o sistema contribui para a segurança das mulheres, pois fornece informações mínimas sobre homens com quem elas pretendam sair. Nos Estados Unidos, críticos notaram que, se fosse sincera essa preocupação, o aplicativo ofereceria a possibilidade de as usuárias registrarem que um homem “tentou me estuprar” ou “me passou uma DST” (http://www.slate.com/blogs/xx_factor/2013/02/07/lulu_app_for_rating_men_it_s_just_as_creepy_as_rating_women.html). Ao invés disso, o que abundam são classificações do tipo #CarroDoAno, #PagaConta e #DaPresentinhos. O “rei do camarote” Alexandre Almeida faria a festa se não tivesse sido obrigado a cancelar sua conta no Facebook.

Chong diz que o maior público é formado por universitárias, mas é difícil entender como mulheres que tenham passado da adolescência possam se interessar por isso. Funciona assim: A senhorita escolhe um de seus amigos no Facebook e informa seu grau de relação: “ex-namorado”, “estou a fim”, “juntos”, “já fiquei”, “amigo” e “parente”. A partir daí, responde a perguntas simples, de múltipla escolha, que visam a avaliar o sujeito nos seguintes fundamentos: “humor”, “educação”, “ambição”, “compromisso”, “primeiro beijo” e “sexo”.

Tanto as perguntas quanto as alternativas de respostas são pretensamente engraçadinhas e decididamente infantis. Exemplo de pergunta para avaliar humor: “Suas melhores piadas são melhores que…” A pior alternativa é “Tratamento de canal. Talvez.” A ambição do avaliado é medida de acordo com o que ele coleciona: de latas de cerveja a dinheiro, passando por diplomas e lápis de cor. A aparência do menino pode ser “a razão de ficarmos em casa”, “o Brad Pitt (depois de cair do 10º andar)”, e pode até justificar o seguinte: “a família diz que ele foi adotado”.

Ainda fica pior. Depois do primeiro beijo a avaliadora pode ter precisado “daquele feitiço do Harry Potter que apaga a memória” (a resposta que renderia a nota mais alta seria: “Ele. Em mim.”) O rapaz pode ser “tão fiel quanto o Mr. Catra”; fidelidade para ele pode ser “uma piada mal contada” ou “história para pegar mulher”. E o que avaliadora quer quando faz sexo com o avaliado? Talvez “que ele me acorde quando terminar”.

Após a moça responder a todas as perguntas, usando estas e outras espirituosas alternativas, o Lulu calcula automaticamente uma nota para o garoto. Mas antes disso a garota ainda pode atribuir hashtags que resumam o objeto de análise em uma frase. As hashtags de conotação sexual geralmente são de gosto discutível: #CaiDeBoca, #TresPernas, #NaoFazNemCocegas, e assim por diante. Há outras piores, relacionadas a hábitos de higiene, além de bobagens como #FofoComAMae, #AlegriaDaFesta, #CurteRomeroBritto, #FriendZone, #AiSeEuTePego e #MaisBaratoQuePaoNaChapa.

Fica claro que o Lulu é uma brincadeirinha de meninas. Não há razão para uma mulher adulta normal considerar, ao marcar um encontro, a “nota” de um homem no app, nem para a fúria amedrontada que traiu muitos homens que souberam da novidade. O que parece garantir a popularidade não é a “informação” que se colhe, mas a sensação de poder que se experimenta em avaliar alguém, principalmente porque esta avaliação se torna pública. As mulheres não ignoram que pouca coisa constrange mais os homens do que expor suas fraquezas sexuais (e também seu poder de atração e sua capacidade como provedores). Poder dá prazer.

Claro que a alegria vai durar pouquíssimo tempo. Ninguém que tenha ouvido a notícia duvidou que o reverso do Lulu – um aplicativo para homens classificarem mulheres – seria lançado quase imediatamente depois. Estamos em contagem regressiva. Quem tiver estômago que imagine como será.

O leitor que nos acompanhou até aqui deve estar com uma dúvida: Por que estamos perdendo tempo com essa tolice, em vez de tratarmos de algum assunto mais sério?

Creio que o Lulu, apesar de não ter, em si, a mínima importância, sinaliza uma tendência ao egoísmo e ao consumismo que ameaça fugir do controle, erodir a própria base sobre a qual caminhamos. Falo de consumismo porque o arremedo de ética associada ao programa é a de tratar tudo – até nossas relações, nossos amigos, nossa intimidade – como mercadoria. Parece absolutamente natural para as usuárias que se entusiasmaram com a ferramenta avaliar uma pessoa com a mesma frieza e objetividade com que se costuma avaliar hotéis.

Tivemos sociedades muito brutais no passado, e por milênios os homens trataram outros homens, literalmente, como mercadoria. Mas sempre houve limites a serem observados. Nossa sociedade de mercado corroeu quase todas essas barreiras, como a lealdade que se devia ao Rei e a obediência a uma autoridade religiosa. Mas, seguindo neste rumo, se o princípio é o de que podemos fazer tudo pelo que pudermos pagar, o que, afinal, ficará intacto?

Para colocar em termos teóricos: mesmo o que agora tratamos como as barbáries do passado podiam ser justificadas por um sistema ético intrinsecamente coerente. Há hoje uma variedade de paradigmas éticos aos quais um indivíduo pode aderir por reflexão ou intuição: deontologia, pragmatismo, consequencialismo, etc. Nenhum deles justifica moralmente algo como o Lulu e, no entanto, para muitas pessoas normais, do nosso próprio círculo, trata-se de uma moda como outra qualquer, que não suscita nenhuma questão moral relevante. O que parece é que nossa atual forma de conviver em sociedade não respeita mais nenhum sistema inteligível de valores.

Muitas mulheres não gostaram, viram na ferramenta uma frivolidade ridícula, mas nem essas chegaram a ficar chocadas. E a maioria dos homens que agora afetam indignação dificilmente se incomodaria se não fosse algo que os afligisse diretamente, vale dizer, se fosse um sistema de avaliação de mulheres, por homens.

O Lulu, claro, é apenas um dos sintomas de uma doença que ainda não conseguimos diagnosticar com precisão. Esta modinha vai passar logo, mas outros sinais continuarão aparecendo.