Neste domingo seguinte ao Dia de Finados, o compositor Aloísio Villar nos faz refletir sobre os motivos de a morte ocupar tanto o imaginário das pessoas e como morremos todos os dias.

A morte de todos os dias

Ontem foi o Dia de Finados. Tema mórbido, não? Mas acho interessante de tocar até porque a única certeza que temos na vida é de que vamos morrer.

Dizem que o ser humano é o único que sofre por saber que um dia morrerá. É um assunto que tentamos evitar. Não gostamos de pensar, mas é verdade é essa. Um dia iremos, sim, morrer.

O dia de ontem é um dia do ano que nos permitimos pensar no assunto. Tem países em que a data é até celebrada, fazem festa. Aqui não chega a tanto, mas as pessoas saem de suas casas, compram flores e levam até os túmulos de seus entes queridos ou celebridades que gostavam.

É dia de visitar túmulos de Carmem Miranda, Clara Nunes, Ayrton Senna, Elis Regina, Cazuza… Todos os anos reportagens mostram a peregrinação a esses túmulos.

Uma pessoa que sempre esteve presente nessas ocasiões não estará. Morreu o famoso “papagaio de pirata” dos enterros cariocas. Um cara baixinho, cara de “Paraíba” que usava terno e gravata sempre aparecendo atrás das celebridades nos enterros importantes.

É estranho pensar que um “papa enterro” morreu. Será que teve “papagaio de pirata” em seu enterro?

A morte é a única coisa de nossa existência que une a todos. Rico, pobre, famoso, desconhecido, todo mundo passa por isso e não há distinção de cor, credo, grana ou opção sexual. Morte de celebridade sempre chama nossa atenção. Faz com que a gente lhe veja como um igual. Um mortal realmente.

Nesses últimos dias tivemos as mortes de Paulinho Tapajós, Mauricio Azêdo e Lou Reed. Esse ano tivemos mortes como de Emílio Santiago, Fernando Pamplona e Cláudio Cavalcanti. Pessoas que quando sabemos das mortes ficamos um pouco chocados.

Algumas me chocaram profundamente, como as do presidente Tancredo Neves, do jogador Dener, do esportista Pepê, dos Mamonas Assassinas, Tim Maia, Michael Jackson e claro, Ayrton Senna. A morte que parou um país.

Mas o que é a morte pra mim? Como eu vejo a morte afinal?

Acho que começamos a morrer no dia em que nascemos. Meio depressivo pensar nisso, mas, a cada dia que passamos, nos aproximamos dela e em alguns momentos mais tristes ou desesperadores até pedimos por ela. Mas é tudo da boca pra fora. Todo mundo quer viver muito, bem e feliz.

E acho que não morremos apenas uma vez. O ex-jogador de futebol Falcão disse que o jogador de futebol morre duas vezes. Na morte em si e quando para de jogar. Pela importância do ato, deve ser verdade.

Mas seja a morte real ou morte metafórica, acho que morremos muitas vezes durante a vida. Eu mesmo morri muitas vezes já.

Morri com uma semana de vida quando me engasguei e parei em hospital já roxo. Morri quando do terraço da minha casa jogaram um cano e esse acertou minha cabeça. Morri em acidente de carro quando pequeno ou quando uma vez apareceu uma mancha em exame meu do pulmão e acharam que fosse câncer.

Morri muito, meu amigo. Morri todas às vezes em que uma mulher me atraiu. Todas em que eu não fui correspondido ou quando fui e beijei a mulher que fiquei afim. Morri a cada amizade que fiz, cada gargalhada que dei com amigos, cada zoação, farra ou simplesmente no silêncio cúmplice de quando um de nós está mal e o outro está ali só pela presença mesmo. Pra dizer “estou aqui, meu parceiro”.

Morri toda vez que conheci um lugar novo. A cada livro que abri, cada filme a que assisti ou música que ouvi. A arte me comove, a arte é bela e me emociona. Quando vejo algo engraçado, rio, emocionante, choro. Não tenho vergonha disso, de me encantar pela arte. É minha morte poética.

Morro cada vez que escrevo. Gosto de escrever porque assim dentro dessa minha morte, me torno imortal. Meus restos mortais estão ali em cada frase, cada verso. Todas as histórias já foram escritas, mas nem todas foram ouvidas. Por isso escrevo, para renascer e morrer sempre.

Morro cada vez que encontro parceiros pra compor um samba-enredo. Cada vez que um nasce e fica bonito. Morro a cada apresentação, na estreia, na final. Morri quando subi a um palco para minha primeira final. Minha alma deixou meu corpo e ganhou o universo quando ganhei meu primeiro samba e esse foi Estandarte de Ouro.

Tem morte mais bonita que morrer de amor? Morri quando amei. Quando tive o corpo da mulher que amei colado ao meu. Quando choramos ao fazer amor e no momento tocar nossa música. A cada bobeira nossa dita, a cada momento ao seu lado por mais irrelevante que ele pudesse ser naquele instante. Morri quando perdi esse amor. Morri, definhei, virei um cadáver sepulto em um cemitério de lembranças e saudades.

Morro cada vez que ouço por telefone a voz de minha avó em Curitiba. A minha velhinha com seus oitenta anos. Tive uma morte dolorida demais em 4 de abril de 2005 quando perdi minha mãe. Uma morte insuportável muitas vezes, que me fez perambular por um umbral só meu e achei que nunca mais conseguisse sair. A cada dia morro um pouco com essa saudade.

Mas morri de alegria dia 16 de maio de 2009 quando ganhei Ana Beatriz de Jesus Villar e dia 9 de agosto de 2013, dia do meu aniversário, quando ganhei Gabriel Ataíde de Jesus Villar. Atravessei um túnel brilhante, luminoso e no outro lado encontrei um campo florido, dois anjos e os dois me disseram “saia do umbral que vamos te levar ao céu”.

E me levaram. A pequena Bia me levou transformando a minha morte em vida. O pequeníssimo, mas vitorioso Gabriel mostrou o quanto sou babaca e fraco quando internado em um hospital, com suas veias furadas, soro entrando por seu corpo me olhou e sem saber falar me disse: “Morte? Eu vou é viver!”.

Viveu e me deu vida. Fez oitenta dias essa semana e é o ser vivo mais vitorioso que convivo.

A cada dia morro. A cada dia morremos. De tristeza, de alegria, mas a cada morte aprendemos.

Aprendemos que viver é bom. A morte é só uma pequena viagem e o mais importante dela é que depois sempre renascemos.

Dia de Finados? Dia da vida. Entre vivos e mortos todos vivemos. Todos existimos.

Porque enquanto houver amor, não tem fim.

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