Em seu artigo de hoje o historiador Luiz Antonio Simas inicia uma série de colunas sobre o samba de enredo e sua história.

Sambas de Enredo – Introdução ao Tema

Quando falamos em desfiles de escolas de samba, há alguns aspectos fundamentais para se caracterizar o evento: as escolas possuem baterias, alegorias, mestre-sala e porta bandeira, baianas, passistas e, evidentemente, cantam um sambam de enredo. Assista a qualquer desfile sem um desses elementos e desconfie. Você, provavelmente, errou de data e local e acabou presenciando uma parada militar em comemoração ao dia da pátria.

É importante ressaltar, entretanto, que as escolas de samba não surgiram prontas, com a estrutura que tem hoje. Várias das características das agremiações foram sendo moldadas ao longo dos anos – e o samba de enredo é prova disso.

Quando as escolas surgiram – no início da década de 1930 – não havia nenhuma obrigação de se cantar sambas com temáticas adequadas ao enredo apresentado. Uma escola podia, por exemplo, apresentar um enredo sobre os índios brasileiros, colocar todo mundo de cocar e tanga no desfile e cantar dois sambas (sim, no princípio não havia a obrigatoriedade de um samba só) sobre temas como desilusões amorosas e as belezas da ilha de Paquetá.

Aos poucos, porém, os sambas apresentados foram ganhando a característica de cantar o que as agremiações apresentavam visualmente – e quatro escolas, pelo menos, reivindicam a primazia de ter composto o primeiro samba de enredo: a Unidos da Tijuca, em 1933; a Mangueira, em 1934; a Portela, em 1939; e o Prazer da Serrinha, em 1946.

Essa polêmica sobre quem teria composto o samba pioneiro é daquelas destinadas ao fracasso. Rendem, no máximo, boas conversas em mesas de bar, com cada um puxando a brasa para sua sardinha.

É mais correto considerar que o samba de enredo foi se estruturando como um gênero peculiar ao longo das décadas de quarenta e cinqüenta. Podemos dizer que a partir daí as escolas – obrigadas inclusive pelos regulamentos que disciplinavam os cortejos – passam a desfilar adequando definitivamente o discurso visual (o enredo proposto) ao hino musical defendido por seus componentes.

As décadas de 1940 e 1950 são marcadas por sambas que retratam enredos de temáticas nacionalistas. É a época das grandes efemérides, da exaltação a vultos da história oficial e às riquezas da natureza exuberante do Brasil. Cantavam-se temas como a batalha naval do Riachuelo, o vale do rio São Francisco, os feitos do Duque de Caxias, a capacidade intelectual de Rui Barbosa, as peripécias de Oswaldo Cruz, a proclamação da República, os bigodes de D. Pedro I, e coisas do gênero.

É curioso ressaltar isso porque, em larga medida, existe certo saudosismo entre alguns fãs das escolas de samba. Essa nostalgia do passado se manifesta, dentre outros pontos, no discurso de que, atualmente, os enredos são pouco carnavalescos. A rigor, há que se admitir, os enredos também não eram exatamente carnavalescos em antanho. Ou alguém acha que o Duque de Caxias foi um tremendo folião e a Guerra do Paraguai foi um belo balacobaco?

Aos poucos, os enredos vão se transformando. Exemplo disso é a propalada revolução salgueirense da década de 1960, com uma série de desfiles exaltando a história, os personagens e a cultura dos negros brasileiros – como Quilombo dos Palmares (1960), Aleijadinho (1961), Xica da Silva (1963) e Chico Rei (1964). Djalma Sabiá, Geraldo Babão, Anescar e Noel Rosa de Oliveira foram os principais compositores dessa espécie de idade de ouro da escola vermelha e branca.

Não foi o Salgueiro que inovou levando originalmente temas negros para a avenida (outras escolas já tinham feito isso, mas não de forma sistemática), mas sem dúvidas a agremiação tijucana cristalizou uma tendência que, desde então, é das mais fortes no universo das escolas de samba: colocou a história do negro definitivamente no samba e – sobretudo – destacou essa trajetória sob o viés da resistência.

Outras transformações ocorreram de lá pra cá. Foi marcante, por exemplo, o samba de enredo de 1961 da pequena Tupi de Brás de Pina, rompendo com a tradição de se ressaltar as maravilhas da natureza brasileira e retratando o drama da seca que abalou o Ceará no final do século XIX. A composição, de Gilberto Andrade e Waldir de Oliveira, é do nível de Os Sertões (Em Cima da Hora, 1976), samba de enredo de Edeor de Paula, considerado por muitos como o melhor de todos os tempos. Seca do Nordeste, eis o nome do clássico da Tupi, era considerado por Jamelão como o maior samba de enredo de todos os tempos.

Há, desde então, sambas que louvaram a ditadura militar (foram muitos), que ilustram enredos sobre o cotidiano, mergulham nas ideias delirantes dos carnavalescos – sobretudo após o choque de imaginação que Joãosinho Trinta trouxe aos temas nos anos setenta, chegando a colocar no Brasil as lendárias minas do Rei Salomão e enfiar o rei da França em São Luís do Maranhão, em uma temporada de férias – e retratam enredos encomendados e de gosto duvidoso, como companhias de aviação, laticínios, cidades turísticas e personagens que, a exemplo dos heróis da pátria nas décadas de 1940 e 1950, não têm procedência exatamente carnavalesca (Ronaldo Fenômeno, Silvio Santos, Roberto Carlos, Xuxa, Ivo Pitangui e Romero Brito foram devidamente homenageados na Marquês de Sapucaí).

Como todo gênero musical vivo, o samba de enredo continua se transformando. Dos magníficos lençóis de Silas de Oliveira (sambas que abordavam o enredo todo, com letras extensas e cadência, que fizeram de Silas o maior compositor do gênero e do Império Serrano a escola com, para o gosto deste escriba, o maior número de grandes sambas de enredo em todos os tempos) aos dias menos gloriosos dos sambas que mais parecem marchinhas – de qualidade estética duvidosa e apelo fácil.

Há nisso tudo, apenas um fato que não pode ser questionado por quem quer que seja: goste-se ou não de sambas de enredo, é impossível se contar a história da música, do carnaval e, por que não, da cultura brasileira sem se destacar a importância do gênero – e isso já é muita coisa.

Este panorama geral pretende marcar o início de uma série de textos para o Ouro de Tolo que, até o tríduo de Momo, tratarão do samba de enredo ao longo da História das escolas de samba.

Evoé!

One Reply to “Histórias Brasileiras: “Sambas de Enredo – Introdução ao Tema””

  1. Muito bom o post do brilhante Simas! Acho importante resgatar os fatos e mostrar que o samba enredo, como todo fenômeno cultural de grande porte, não “brotou do chão” mas ganhou força se adaptando as influências das décadas.
    Canso de ver gente sendo radical e brigando por uma volta as origens que, na prática, não existiram como imaginadas.

    Parabéns !

Comments are closed.