Nesta segunda feira a coluna do advogado Gustavo Cardoso nos joga luzes sobre o recente imbróglio envolvendo a fuga do político boliviano Roger Molina (foto) para o Brasil.

Confusão Diplomática

Em 28 de maio de 2012 o senador boliviano Roger Pinto Molina entrou na sede da embaixada brasileira em La Paz e pediu asilo diplomático, alegando perseguição política. O Brasil concedeu o asilo onze dias depois, mas a Bolívia não concedeu o salvo-conduto, a autorização para que o senador deixasse o prédio da embaixada e saísse do país.

Pinto viveu mais de um ano na representação brasileira, proibido de dar entrevistas à imprensa, e, dizia-se, nos últimos meses enfrentava uma depressão. Sua saúde teria se deteriorado ao ponto que, na ausência do embaixador, o encarregado interino Eduardo Saboia assumiu a decisão de facilitar uma rocambolesca fuga, em veículo diplomático, para o Brasil.

A ação inusitada colocou o Brasil em situação constrangedora, enfureceu a presidenta Dilma Rousseff, causou a demissão do ministro Antonio Patriota e transformou Saboia numa espécie de ‘Edward Snowden’ brasileiro: corajoso herói para uns, traidor da nação para outros. A divergência de opiniões seguiu a lógica habitual: governistas entendem que ele exorbitou de suas funções e prejudicou a relação do Brasil com um de seus vizinhos, enquanto a oposição aproveitou para criticar a política externa de Dilma, que seria submissa ao “bolivarianismo”.

Quem acompanhou o caso pela imprensa recebeu o pacote de sempre: informações incompletas, opiniões enviesadas, descrição confusa do contexto e erros crassos na explicação das questões técnicas e jurídicas. Vamos para mais uma inglória tentativa de contribuir…

Registre-se que, ao longo do tempo que o senador Pinto passou na embaixada, a relação do Brasil com a Bolívia sofreu uma série de pequenos abalos – prisão dos torcedores do Corinthians, linchamento de dois brasileiros por uma turba de bolivianos em um povoado da fronteira, notícia de que o avião do então chanceler Celso Amorim havia sido revistado, e assim por diante.

Recorde-se, ainda, que Pinto era um proeminente líder da oposição no país, e não tinha pejo de denunciar o governo Morales, enquanto ele próprio era acusado de envolvimento no Massacre de Pando, uma tentativa de Golpe de Estado que resultou em assassinatos em massa. Respondia a mais de vinte processos judiciais, seis destes por desacato, os quais foram extintos quando a Suprema Corte declarou ser esta previsão de crime inconstitucional.

As demais acusações tratam principalmente de casos de corrupção, vários da época em que Molina era governador do Departamento de Pando. Entre as pérolas, desvios de dinheiro público, contratações milionárias sem licitação, venda de terrenos do Estado a particulares sem autorização legislativa e a preço vil, corrupção para aprovação de uma lei que beneficiaria casas de jogo, y otras cositas más.

Passemos para a questão jurídica. A primeira tarefa é distinguir asilo territorial de asilo diplomático. O primeiro é concedido ao estrangeiro que se encontra no país asilante. O segundo é concedido em representações diplomáticas e militares no exterior. É instituto característico do direito internacional latinoamericano, regido pela Convenção de Caracas (1954). A partir daí, surgem as dúvidas.

1) O Brasil estava obrigado a conceder o asilo? Não, a concessão de asilo é um direito, não um dever dos Estados, embora o Brasil tenha uma tradição de liberalidade nesta matéria.

2) O Brasil poderia ter concedido asilo a Pinto, já que o tratado prevê que “não é lícito conceder asilo a pessoas que, na ocasião em que o solicitem, tenham sido acusadas de delitos comuns, processadas ou condenadas por esse motivo pelos tribunais ordinários competentes, sem haverem cumprido as penas respectivas”? Sim, porque compete ao Estado asilante avaliar se o indivíduo é perseguido, e isso não necessariamente implica afirmar que a perseguição é promovida pelo governo boliviano – o asilo pode ser concedido não apenas a indivíduos perseguidos pelas autoridades, mas também por pessoas que as autoridades não possam conter. Molina sustenta, entre outras coisas, que estava sendo ameaçado de morte por adversários políticos.

3) A Bolívia era obrigada a conceder o salvo-conduto? Não. A convenção prevê que o salvo-conduto será concedido imediatamente, mas a Bolívia não é parte do tratado. Só doze países o ratificaram, entre eles o Brasil.

4) Se a Bolívia não ratificou a convenção, o Brasil mesmo assim poderia conceder asilo a um nacional daquele país? Sim, porque o asilo não está sujeito a reciprocidade. O Equador concedeu ao australiano Julian Assange, em território britânico.

5) Proibir Pinto de dar entrevistas violou seus direitos humanos? Não, porque o tratado prevê que “a autoridade asilante não permitirá aos asilados praticar atos contrários à tranquilidade pública, nem intervir na política interna do Estado territorial.”

6) O diplomata Eduardo Saboia poderia ter auxiliado na fuga do senador? A rigor, não, porque quebrou a hierarquia, e como encarregado da embaixada, o Brasil responde por seus atos. Mas Saboia alega que seguiu sua consciência, e que agiu em conformidade com os princípios humanitários e do direito internacional. Diz também que ouviu a “voz de Deus”.

7) O Brasil é obrigado a manter o asilo a Pinto, agora que ele está no Brasil? Não, mas também não pode devolvê-lo à Bolívia. Se optar por não conceder o asilo territorial, tem de expulsá-lo para outro país que o aceite.

Ninguém sabe quais serão as consequências políticas do imbróglio, mas quem é dado a teorias da conspiração pode especular o seguinte: o impasse causado pela permanência do boliviano na embaixada brasileira era incômodo para ambos os países. Evo Morales não podia recuar da sua posição de não concessão do salvo-conduto, mas, da forma como tudo aconteceu, ficou com imagem, não de um presidente pusilânime, mas de alguém traído em sua confiança.

Dilma queria se livrar de Antonio Patriota há algum tempo. Ele sai, afinal, sem que a desarmonia suba à superfície, e por um episódio que, todos entenderam, não foi causado por sua culpa pessoal. Vai direto para a representação brasileira na ONU, um dos cargos mais ambicionados no Itamaraty. Além disso, sua mulher é americana – e funcionária da ONU.

O voluntarismo de Saboia foi conveniente demais para muita gente. Se essa gente estiver seguindo um script, os papéis são previsíveis: Dilma distribui broncas, Morales reclama, pede a extradição, mas acaba se conformando. No fundo, livrou-se da presença de um de seus maiores adversários políticos. Daqui a alguns meses, claro, ninguém mais se lembrará de nada.

Vale lembrar ainda o que disse Jules Assange sobre suas negociações com o governo britânico, depois de um ano na embaixada do Equador em Londres: “Acho que a posição do Reino Unido está suavizando. Mas é claro que eles nunca me darão passagem de uma maneira que não pareça forçada.” Quem sabe ele não é o próximo a fugir?

3 Replies to “Pitaco – “Confusão Diplomática””

  1. O advogado Gustavo Cardoso geralmente lança luzes sobre questões dificeis, só que desta vez ficou em cima do muro.
    Afinal, não esclareceu quem está errado nesta situação, a presidente,que agiu seguindo a orientação do partido em apoio ao chamado bolivarianismo ou o embaixador que agiu movido pela sua consciência.

  2. Caro Felipe, isso não tem resposta. Dilma agiu de acordo com o direito internacional e com a tradição da diplomacia brasileira. O diplomata (que não era o embaixador) seguiu a própria consciência. É de cada um colocar ou não a consciência acima dos deveres profissionais. Pessoalmente, acho que SE a “voz de Deus” disse mesmo para o Saboia ajudar na fuga do senador, ele agiu certo. Mas a cada um de nós só cabe especular se Deus se manifestou realmente.

  3. Sr. Cardoso,
    gosto de sua coluna porque se percebe que o senhor não mete os pés pelas mãos, como se diz popularmente.
    Mas, para quem acredita, não é difícil ouvir a voz de Deus, para quem não acredita, traduz-se como ouvir a voz do coração, ou da consciência.
    O diplomata que trouxe o senador boliviano respondia pela embaixada do Brasil interinamente, portanto pode e deve ser chamado de embaixador.
    Dilma Rousseff não tem porque se envergonhar perante a comunidade internacional pelo ato praticado por seu representante, a calça justa se dá quando ela se curva perante um governo desmoralizado, como é o da Bolívia, e como já fez algumas vezes.
    Não existe similaridade entre o caso de Julian Assange, que é australiano, se encontra na embaixada do Equador, em Londres, e foi acusado de abuso sexual, e o caso de Molina, que é senador da República da Bolívia, em oposição ao governo de Morales, além de perseguido político.

Comments are closed.