Neste sábado, mais uma edição da coluna de contos do compositor Aloisio Villar.

Marcas do Passado

Jurandir já estava na casa dos setenta anos de idade. Boa praça morava há pouco mais de trinta anos em Copacabana e era muito querido pelos vizinhos. Viúvo, com os filhos morando longe, o homem morava sozinho e era síndico do prédio cuidando com muito zelo e austeridade da residência de todos. Isso fazia com que as pessoas achassem que era Deus no céu e Jurandir na Terra.

Gostava de acordar cedo e caminhar na praia: mesmo já setentão mantinha a boa forma e a saúde de um garoto. Depois da caminhada gostava de sentar na praça próxima ao prédio e dava alimento aos pombos, depois jogava damas e cartas com outras pessoas de sua idade e ia para casa descansar e praticar seus afazeres.

Mas a vida de Jurandir não era apenas essa tranqüilidade. Fazia um churrasco maravilhoso que aprendeu quando morava no Rio Grande do Sul e de vez em quando fazia na churrasqueira do prédio para os vizinhos. Também era um excelente dançarino e gostava de ir todos os sábados em bailes da terceira idade que ocorriam lá mesmo em Copacabana. Tinha uma velhice feliz depois de uma vida conturbada.

Sempre sorridente, o que tirava o sorriso do rosto de Jurandir e lhe fazia ficar sério e desconversar era quando perguntavam sobre seu passado. E realmente ele não tinha nenhum motivo para ficar querendo lembrar o passado.

Jurandir foi agente do DOPS.

O DOPS era um órgão subordinado ao governo que existiu entre 1924 e 1983 que foi utilizado principalmente nas ditaduras do estado novo e a militar para reprimir e controlar movimentos políticos e sociais contrários ao regime vigente.

Era um órgão temido e cruel que perseguia, torturava e matava. Jurandir não só fazia parte do DOPS como era um dos piores. Conhecido nos anos sessenta e setenta como “Senhor da Morte” Jurandir em nada lembrava aquele velhinho querido e boa praça.

Era cruel, perverso, era mal. Sentia prazer em ferir e humilhar as pessoas. Perseguiu muitas pessoas acusadas de “traição com a pátria”, gente que tinha pensamentos contra a ditadura e foi atrás delas por todos os cantos do país – em especial no Araguaia.

Nunca teve pudor em usar a tortura para conseguir as informações que queria, seja contra homem, mulher, velhos, jovens… O senhor da morte sempre era chamado quando o inimigo era especial, algum chefe de movimento ou gente que sabia demais.

Praticava afogamento, colocava em pau de arara, dava choques, estuprava e matava se preciso. Jurandir não se importava com a vida humana e se defendia com os dizeres “apenas cumpro ordens”, mesmo com todas as atrocidades que cometia depois colocava a cabeça tranqüilamente no travesseiro e dormia.

A ditadura foi perdendo forças e Jurandir acabou se beneficiando da lei de anistia. Pediu sua aposentadoria e comprou apartamento em Copacabana para viver sua velhice.

Para virar aquele velhinho querido e boa praça, considerado ótima pessoa pelos vizinhos que nem suspeitavam de seu passado e daquele ditado que os canalhas também envelhecem. Assim como os ex nazistas os ex torturadores da época da ditadura militar viviam e vivem no meio das pessoas comuns como se não tivessem um passado manchado de sangue.

E foi dessa forma que Jurandir conheceu Neusa.

Neusa, ao contrário de Jurandir, sempre teve uma vida de bem. Mulher de um único homem conheceu seu marido ainda mocinha no Instituto de Educação na Tijuca, seu marido na época era estudante do Colégio Militar e era irmão do namorado da irmã de Neusa.

Neusa e Diana, sua irmã, engataram namoro com os dois rapazes e casaram-se no fim dos anos cinqüenta. O marido de Neusa seguiu a carreira militar enquanto o de Diana virou jornalista.

Os dois casais construíram família. Neusa teve três filhos e Diana dois, mas só até aí as duas vidas andaram em paralelo. No começo dos anos setenta Diana ficou viúva com a morte do marido e desolada com a perda decidiu ir embora pra França. Nunca mais se casou: virou escritora e dedicou sua vida aos filhos e os livros.

Neusa prosseguiu sua vida. Virou professora e dava aulas de matemática em colégios públicos e particulares do Rio de Janeiro enquanto seu marido prosseguia na carreira militar, mas sem se envolver em política como Jurandir. O casal era exemplo de amor e relação que deu certo, se amavam muito e tiveram uma vida feliz criando os filhos com carinho e festejando a chegada dos netos.

A vida ia bem, com o marido já aposentado curtiam viajar e namorar, mas o homem em exames de rotina descobriu câncer na próstata. Tratou-se, operou, fez quimioterapia, mas o câncer rapidamente se espalhou e o homem morreu numa manhã de setembro.

Neusa ficou desolada com a morte: era o amor da sua vida, o único homem que teve, que perdia com aquela doença e decidiu pelo luto. Depressiva, mal saía de casa e não queria ver ninguém.

Mas era jovem ainda, bonita e os filhos não aceitavam aquela entrega e falavam à mãe que nem o pai deles aceitaria. De tanto encher convenceram Neusa que a vida continuava e ela tinha que aproveitar.

Foi daquela forma que Neusa parou no baile da terceira idade e assim conheceu Jurandir.

Jurandir viu a senhora tímida sentada em um canto do salão e perguntou se gostaria de dançar. Ela envergonhada aceitou e Jurandir cavalheiro conduziu a dama até o meio do salão. Neusa, assim como Jurandir, era uma exímia dançarina e dançaram de tudo. Bolero, tango, gafieira o casal deu um show no baile sendo aplaudido por todos.

Jurandir e Neusa foram pegar ponche e o homem elogiou a desenvoltura de sua acompanhante dançando e perguntou quem lhe ensinou. Neusa respondeu que seu marido e Jurandir se afastou pedindo desculpas por não saber que ela era casada. Neusa riu e pediu que ele não se preocupasse porque infelizmente era viúva e Jurandir sorriu pedindo desculpas pela reação, pedindo para recomeçar o assunto.

Os dois emendaram bate papo com Neusa falando muito mais de sua vida que Jurandir e no fim o homem perguntou se ela poderia dar o número do telefone. Neusa já encantada por aquele senhor tão cavalheiro repassou. Jurandir perguntou se Neusa gostava de cinema e a senhora respondeu que sim. O homem então guardou o número no bolso do paletó e disse que ligaria no dia seguinte.

E ligou. Na noite seguinte lá estava Jurandir com o carro esperando Neusa na porta de casa parecendo um casal de adolescentes. No lado de dentro Neusa ansiosa com seu primeiro encontro era vestida pela filha que caprichou no visual da mãe. Diante do espelho deu um beijo em seu rosto dizendo que estava linda.

Jurandir em pé ao lado do carro quando viu Neusa sair da casa concordou e falou que estava linda, deixando a mulher ruborizada.

Foram ver um filme romântico comendo pipoca e tomando refrigerante e depois o homem a levou para jantar em um bom restaurante de Copacabana. Papo vai, papo vem Jurandir levou Neusa em casa e de lá surgiu o primeiro beijo. Neusa subiu radiante se sentindo com treze anos de idade, Jurandir foi embora cantando pneus e gritando sua felicidade. Estavam apaixonados.

O casal se via todos os dias e parecia que um era luz na vida do outro. Viajaram juntos para Argentina em uma espécie de lua de mel dançando tango, passeando pela zona boêmia; era uma espécie de renascimento para eles.

Jurandir já pensava à frente e queria juntar os trapinhos com Neusa enquanto a mulher queria que ele conhecesse sua família antes, contou que sua irmã Diana vinha da Europa e faria uma festa para recebê-la. Aproveitaria para apresentar Jurandir a todos. Jurandir chegou à festa e Neusa apresentou o namorado a toda família sendo bem recebido. Jurandir articulado e cavalheiro cativou a todos e foi aprovado, mas faltava chegar Diana.

Diana chegou e logo Neusa puxou a irmã para apresentar Jurandir. Diana apertou a mão de Jurandir e olhou bem nos olhos dizendo “oi”, Jurandir respondeu e Diana ainda olhou por mais um tempo e chamou Neusa para ir ao quarto porque tinha presentes pra ela.

As duas voltaram e Neusa foi até Jurandir beijá-lo e oferecer uma bebida enquanto Diana de longe não parava de olhar o homem. Jurandir bebia, conversava e notava que Diana não parava de olhar, se constrangia e tentava desviar seu olhar, mas não conseguia e também encarava a mulher.

Em determinado momento Jurandir foi ao banheiro e ao sair encontrou Diana na porta. A mulher em seu ouvido falou “me procure” e colocou um bilhete em seu bolso saindo de perto. Jurandir olhou e ali estava seu endereço e telefone. Jurandir voltou surpreso para a sala, como podia? A irmã de sua namorada, a qual ela tanto amava dando descaradamente em cima dele.

Jurandir se incomodou com aquela situação, mas também reparou o quanto Diana era bela, a mulher era uma tentação e ele não sabia como agir.

Chegou a hora de se despedir e Diana deu um beijo no rosto do cunhado dizendo em seu ouvido “me procure”. Neusa levou o namorado até a porta e vendo que Jurandir estava estranho perguntou se estava bem. O homem deu um beijo em sua testa alegando estar apenas cansado e foi embora.

Jurandir não conseguia parar de pensar naquela história. Amava Neusa, mas Diana era uma linda. Sabia que podia ser uma roubada, mas arriscaria e ligou para Diana.

Marcou um encontro com a mulher e foi ao seu apartamento.

Diana abriu a porta e encontrou Jurandir. Estava linda em um sexy vestido vermelho e convidou o homem a entrar. Jurandir entrou e Diana convidou que sentasse e não ficasse tão tenso.

Jurandir sentou e Diana perguntou se ele bebia, o homem respondeu que sim e ela voltou com um copo de uísque. Jurandir bebeu um pouco e Diana perguntou se estava bom, ele tenso disse que era uma delícia.

Até que Diana novamente perguntou se estava bom, mas em outro tom:

“- Está bom mesmo senhor da morte?”.

Jurandir tomou um susto: há anos que não ouvia aquela expressão e Diana começou o desabafo.

– O senhor não deve lembrar-se de mim, eu era apenas uma menina inocente que foi tirada de casa com o marido pelo DOPS e mais uma que o senhor torturou e estuprou enquanto matava meu marido e colocava uma corda em seu pescoço para passar à opinião pública que ele se matou.

Jurandir assustado começou a tossir e Diana continuou.

– O senhor está bem? Ah ta, essa tosse é normal, vem do remedinho que coloquei em sua bebida, depois vem a falta de ar e o desmaio que te levará a morte… Senhor da Morte filho da puta.

Jurandir, sufocado, abria os braços em vão pedindo ajuda até que caiu morto no chão. Diana começou a chorar e Neusa apareceu de um quarto, abraçando a irmã e contando que estava tudo bem.

Não tem jeito: o passado sempre volta à tona.