Neste domingo, a coluna do compositor Aloisio Villar lembra um dos grandes intérpretes do nosso carnaval, que infelizmente nos deixou muito cedo: Jackson Martins.

Jackson Martins, Nós e a Beija-Flor: 10 Anos

Está se aproximando a hora de iniciarem as disputas de samba-enredo, época onde vivencio mais o carnaval e começará a temporada de 2014. Nossa, o tempo voa. Comecei em 1997 e me lembro como se fosse ontem.

Ao mesmo tempo que com parceiros escrevo o samba concorrente escrevo para o meu blog ( www.aloisiovillar.blogspot.com) uma série chamada “cinco carnavais” onde falo um pouco sobre a história da agremiação e cinco desfiles/sambas dela que me marcaram como sambista e compositor. A série é publicada todas as quartas, começou com a Portela e já escrevi sobre quatorze escolas. A próxima é a Caprichosos de Pilares.

10 Tio Juca

Escrever o samba de 2014 e pesquisar sobre a história da Caprichosos  rapidamente me remetem a um nome que faz parte da história de Pilares, do carnaval e da minha história no samba. Faz-me lembrar de Jackson Martins (acima, o samba exaltação da escola, na voz de Jackson).

Dia 8 de agosto, véspera do meu aniversário, fará 9 anos de sua morte. Lembro até hoje de estar com amigos em um trailer aqui na Ilha, comemorando meus 28 anos, quando chegou o assunto do assassinato estragando com a comemoração.

Jackson era muito querido por nós e sua morte até hoje é nebulosa. Foi assassinado com dois tiros na cabeça, na frente da família, no trevo de acesso à Rodovia Washington Luiz. Até hoje o crime não foi elucidado, os criminosos estão impunes e um boa dezena de teorias sobre o assassinato surgiu durante estes anos – algumas bem fortes.

Mas infelizmente Jackson partiu. Essa é a única certeza. Jackson Martins e sua presença como um cometa na Terra me levam ao ano de 2003, dez anos atrás.

Decidimos escrever para a Beija-Flor naquele ano graças à amizade que fizemos com Jackson Braga, um compositor da escola. A Beija-Flor era, como é hoje, uma potência do nosso carnaval, era a detentora do título e tinha uma ala de compositores poderosa. Enfim, um imenso desafio como viveremos na Portela para esse 2014.

A parceria foi formada pelo Jackson, eu, Paulo Travassos e Cadinho e pedimos ajuda ao nosso amigo e parceiro Roger Linhares na elaboração do samba. Ele não poderia cantar nem assinar porque já era um dos cantores da parceria de Wilsinho Paz, mas não deixaria de nos ajudar.

Fomos até a casa dele e fizemos a primeira do samba e refrão do meio. Ficaram muito bons. Modéstia a parte meu jeito de fazer letra se encaixou de cara com o estilo da Beija-Flor, coisa que em outras escolas não acertei até hoje e meus parceiros foram muito felizes na melodia.

A coisa ficara tão boa que o Roger mostrou o que fizemos ao Djalma Falcão, compositor consagrado da União da Ilha e a Mingau, campeoníssimo da Grande Rio e os dois se apaixonaram de cara. Não só se apaixonaram como pediram para fazer parte, queriam fazer a segunda do samba.

Deixaram nossa primeira intacta, mexeram um pouco no refrão do meio, mas mantendo nossa essência e criaram uma segunda espetacular e o refrão principal. Nos encontramos para finalizar o samba, passar em cavaco e surgiu assim o melhor samba da minha vida, sem contar o Orun Aye.

Infelizmente não tenho como colocar o áudio aqui, mas acredito que exista na internet. A letra é essa.

“Manoa, Manaus, Amazonas

Terra santa que transmite a paz

Faz bem ao corpo equilibra a alma

Santuário de riquezas naturais

Império de bravos guerreiros

A ganância do homem despertou

Vem a chuva e molha a mata

São as lágrimas dos deuses

Mãe natureza padece

Em teu seio estão rezando nova prece

Em busca do Eldorado vem de lá

A maldade navegando rio mar

O demônio ficou cego de ambição

E não viu o ouro verde pelo chão

Assim vi reluzir

O amor da mulher guerreira

A dor e o misticismo espalhando proteção

Virá, da luz virá

O fruto, a flor dos deuses, quem provar

Vai gostar, irá por certo dar valor

Ao doce sabor do guaraná

No ar o progresso e a cultura

Como vendaval vem a civilização

Manaus querem lhe transformar em Paris

Bela cidade, raiz

Sonha em ser feliz

Vai voar meu Beija-Flor, em liberdade

Planta a semente de amor e paz

Pra colher felicidade”

Alguns dias depois o Roger me liga dizendo que o Mingau conseguira um patrocínio e que com esse patrocínio contratara o Jackson Martins, cantor da Caprichosos de Pilares, para defender o samba. Ele me perguntou o que eu achava. Claro que adorei, Jackson era um dos grandes cantores da época, a maior revelação do carnaval.

Assim começava nossa história com ele. Uma história inesquecível.

Foram mais de doze horas de gravação. Jackson levou sua equipe de confiança para o estúdio. Cordas, coro, ele era minucioso no trabalho, detalhista e com ouvido com muita sensibilidade musical notava erros quase imperceptíveis para seres humanos comuns. Mantinha sempre o sorriso, a voz calma, de quem sabe que ela é seu instrumento de trabalho, na hora de corrigir seu grupo e era muito brincalhão.

Em um dos intervalos da gravação disse que já conseguia imaginar o samba na avenida e cantou o mesmo imitando uma mulher em carro alegórico segurando em uma haste do carro e mandando beijinhos para o público.

Muitas horas depois chegou sua hora de gravar e que show. Gravou quase sem ter que repetir, quase sem erros tendo domínio total sobre seu trabalho. Uma de nossas melhores gravações.

Alguns dias depois a parceria estava na Beija-Flor esperando o sorteio das chaves que se apresentariam desde aquela segunda até sexta-feira. Eram 107 sambas, muita coisa e para nossa sorte (ou azar) fomos sorteados para a apresentação já naquele dia.

Fui ao banheiro para assim sair do barulho e liguei para o Jackson dizendo “é hoje, vem logo pra cá”. Com voz mansa ele respondeu “to indo” e desligou.

A hora da apresentação se aproximava e nada de Jackson, para nosso desespero. Eu ligava e ele respondia “To chegando, to na Brasil” em referência a Avenida Brasil. Essa expressão “To na Brasil” virou uma brincadeira nossa até hoje que usamos quando alguém está atrasado.

Chegou faltando dois sambas, para nosso alívio. Sentou-se, pediu uma água quente, bebeu um pouco e foi para o palco.

Chegando lá deu um sorriso com o microfone na mão e perguntou se todos tinham prospectos na mão; meu parceiro Cadinho que era sua base no samba usa essa técnica até hoje quando pega o microfone. As pessoas mostraram as letras do samba e ele sorrindo pediu ao cavaco o tom, mandando depois “Chegou Beija-Flor!! Vem no batuque meu povo!!” .

O que se viu depois foi um show. Ele não fazia força para cantar, cantava sorrindo e conquistou a quadra. A parceria de desconhecidos chamou a atenção não só do público como da comissão de carnaval a ponto de Shangai, um dos membros da comissão, levantar e imitar um beija-flor voando no refrão.

Eram 107 sambas e fomos passando semana a semana porque o samba era bom pra cacete e no carisma do Jackson. Ele “abraçou” o samba, carregou no colo em nossa dificuldade de colocar torcida, brincava com amigos cantores como Serginho do Porto que fez descer de seu carro para ouvir nosso samba que tocava em seu cd player e cantava o samba para Serginho dizendo que iria vencer.

Continuava chegando quase na hora dizendo que estava na Brasil e nos agoniando. Com o tempo desconfiamos que ele chegava bem antes e ficava escondido dentro do carro no estacionamento para descansar e também nos sacanear.

Graças a isso tudo viramos um dos favoritos do concurso junto com o samba do Wilsinho Paz que era defendido pelo Roger e por Wander Pires. Mas continuávamos com problemas em por torcida e sabíamos que isso uma hora poderia prejudicar.

E aconteceu.

Com 8 sambas no concurso nos apresentamos e esperamos o resultado. Um samba seria cortado e ficariam apenas 7, lembrando que começou com 107. Demoraram muito para dar o resultado e um clima estranho se instaurou na quadra. Depois da longa reunião entregaram o resultado para o locutor que fez cara feia e disse ao microfone “Não gostei hein seu Gilson” se referindo a Gilson DR. O presidente da ala de compositores.

Anunciaram os 7 e não estávamos. O samba caiu.

Foi um baque. Esperávamos chegar ao menos na final e coube a mim contar ao Djalma, Mingau e Jackson que o samba caíra. Tudo na normalidade apesar da tristeza. Problema foi quando contei a minha mãe, que começou a chorar copiosamente. Nunca chorei por samba ser eliminado, só em vitórias, mas vendo o desespero dela quase não agüentei.

Fomos para casa e a vida seguiu. Mais um samba caiu e os seis que restaram foram para o barracão conversar com a comissão de carnaval e autorizados a mexer nos sambas. Cláudio Russo e parceria, que até então não eram muito cotados, foram muito felizes e com as mudanças ficaram com um sambaço.

Voltei à quadra para a final e nela vi o samba do Russo arrasar e no camarote Neguinho da Beija-Flor junto com Jackson pularem e cantarem feito doidos o samba concorrente. Tava na cara que venceria – e venceu.

O “Se Deus me deu vou preservar / Meus filhos vão se orgulhar” foi à avenida, tirou dez, a escola foi bicampeã e o samba entrou para a história da Beija-Flor. O nosso também teria entrado, tenho certeza, mas a história é contada pelos vencedores.

A última vez que vi o Jackson foi na festa da ala de compositores da União da Ilha em 2004. Fez questão de se aproximar de mim e de Cadinho e de nos dar um abraço bem apertado. Disse zoando “Vão botar mais samba na Beija-Flor não né?” devido a falta de torcida, ele zoava que tínhamos desperdiçado um grande samba.

E desperdiçamos mesmo.

Mas voltamos a botar sim, na disputa para o carnaval de 2005 estávamos lá na estréia que foi diferente. Foi com uma missa em memória a Jackson Martins. Com a escola relembrando que ele começou ali sua caminhada como cantor e citou nossos nomes pra dizer que foi o último samba que ele cantou na agremiação.

Samba que ele nos disse depois de uma eliminatória que foi o melhor que ele cantara na Beija-Flor em toda sua vida.

E você também foi um dos melhores cantores que tivemos Jackson.

Não sei como você estaria hoje, em qual escola, se teria defendido outro samba nosso ou mesmo se lembraria da gente e daquela aventura em 2003. Só sei que você faz muita falta ao mundo do samba, a seus amigos, a todos que você passou pela vida.

Como o beija-flor foi voar em liberdade. Voando pela imensidão segurando numa haste, mandando beijinhos ou mesmo com sorriso no rosto, segurando microfone e perguntando se os anjos estão com prospectos nas mãos.

Nos sambas da vida e de além vida acredito você é um dos grandes e se Deus gostar de escrever uns sambinhas tenho certeza que você é um de seus intérpretes favoritos.

Dez anos de nosso encontro, nove que partiu, passou rápido demais.

Dá até vontade de chorar…

[N.do.E.: abaixo, um vídeo com o registro da antológica interpretação de Jackson Martins no desfile da Caprichosos em 1999.]

http://www.youtube.com/watch?v=1m8hVhDc57g

5 Replies to “Orun Ayé – “Jackson Martins, Nós e a Beija-Flor: 10 Anos””

  1. Muito bacana! Você não tem mais o áudio do samba, Aloísio? E, se eu não estou enganado, o Jackson estava por acertar sua transferência para a Mocidade no Carnaval 2005.

  2. Salve Jackson!

    E que bela letra hein, Aloisio? Vc tá ficando velho hein… hehehehehe!

    Abs!

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