Nesta quarta feira, a coluna do historiador Luiz Antonio Simas comenta livro referente ao perfil das torcidas dos clubes do Rio de Janeiro.

O torcedor carioca

Nestes tempos em que o perfil do torcedor de futebol nos estádios se transforma, sob as exigências de uma visão empresarial que busca elitizar a frequência nos estádios, dou uma dica de leitura aos amigos do Ouro de Tolo interessados no jogo: a jornalista Cláudia Matos publicou, no final do século passado (minha edição é de 1997), um livro interessantíssimo sobre os clubes de futebol do Rio de Janeiro e suas torcidas.

Cem Anos de Paixão – Uma mitologia carioca do futebol, é o título da obra.

Ao analisar a imprensa esportiva e os textos de craques no assunto, como os irmãos Mário e Nelson Rodrigues, o arretado João Saldanha e o escritor José Lins do Rego, a autora descreve os perfis, eficientes no terreno do mito, dos times de futebol e de seus adeptos que foram produzidos ao longo da centenária história do futebol no Rio de Janeiro. Tento resumir o que o livro diz.

O Fluminense representa a diferença entre a vida civilizada do Rio Antigo em comparação com o caos de uma cidade que cresceu e foi sitiada pela violência urbana e pelos dilemas da vida moderna. O Flu resiste como um monumento de uma época mais cordial e guarda traços de uma elite econômica e política que dominou a Belle Époque carioca. É uma torcida com fumos de aristocracia e boa dose de arrogância.

O Flamengo é o clube da massa, com a maior torcida em todas as classes. Representa uma composição político-populista com o povão, contorna a ameaça de uma pobreza turbulenta e a torna, por meio dessa aproximação, menos intimidadora. O Flamengo, time da autora da obra, é o contrário da cidade partida e tem um papel crucial na relação entre as classes no Rio de Janeiro. Seria, e aqui digo eu, o Getúlio Vargas do futebol carioca, mediando tensões sociais e mostrando que uma união entre as classes é possível.

O Vasco tem o papel magnífico de fornecer uma certeza de integração social de um subúrbio pobre e menosprezado a uma cidade que só se reconhece sob o prisma da orla marítima. É o time do povo, com pouca presença nas classes abastadas.

Já o Botafogo é visto como o time de uma elite sem poder econômico ou político efetivo, chamada pela autora de ‘elite irresponsável’ [1]. São formadores de opinião, capazes de influenciar a sociedade com suas ideias. O problema é que essas ideias, em geral, são completamente desprovidas de argumentos sólidos. São adeptos da cultura do acaso; supersticiosos, adolescentes e fatalistas. Os alvinegros se parecem com os apostadores do jogo do bicho. O Botafogo, não custa lembrar, teve dois bicheiros como patronos. São os famosos ‘porraloucas’ das arquibancadas.

Os irmãos Rodrigues descreveram o botafoguense de formas muito curiosas. Escreve o grande Nélson:

“Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase viúva cai em frustração. Ela se sente espoliada do seu defunto e seu respectivo velório. É a mesma tristeza do alvinegro que não tem nenhum pretexto para soluçar suas mágoas clubísticas.”

Mário arremata:

“Não há clube de sensibilidade mais à flor da pele, com mais orgulho de Grande de Espanha do que o Botafogo. Eis por que ele está sempre disposto a topar paradas, a se meter em encrencas, a arriscar até a própria vida por uma coisinha. Nada que o atinja e mesmo que não o atinja, mas que ele julgue que foi para atingi-lo, é coisinha para ele. Ele devia ter nascido em outra época. É a única flor retardatária de capa-e-espada que surgiu depois de 1900.”

Enquanto o tricolor representa a empáfia dos intelectuais acadêmicos de outrora, o botafoguense emite opiniões que não nascem nas instituições e nem bebem nas teorias da academia. Falam, isso sim, de um ponto de observação empírico das ruas, distantes da esfera de dominação institucional da elite política e econômica e são, ao mesmo tempo, fascinados por uma rebeldia popular.

É por isso que, conclui a autora, “o Botafogo se opõe às regras óbvias de um padrão de comportamento esportivo-clubístico (…) e é, entre os quatro maiores clubes do Rio, o de menor e mais fanática torcida.”

O traço mais interessante do livro é perceber como criadores e criaturas podem se confundir. Todo torcedor tem um pouco do poeta de Fernando Pessoa, o fingidor que de fato sente a dor que finge. Não se sabe até que ponto Nélson, Mário Rodrigues, Saldanha, Zé Lins, Sandro Moreira e outros, descrevem o que observam no botafoguense, no vascaíno, no tricolor e no flamenguista, e até que ponto são eles que inventam esses perfis; que acabam incorporados diariamente por legiões de fiéis.

O livro da Cláudia, que acabo de reler, anda a merecer uma reedição.

[N.do.E.1 – elite esta também conhecida em outras searas por “esquerda festiva”.]

(Foto: O Globo)