Imagem 144(Foto: Fabrício Gomes)

Neste sábado mais uma edição da coluna de contos sambistas do compositor Aloisio Villar, a “Enredo do Meu Samba”.

Presidente em Maus Lençóis

Confesso que me comovi com a história do casal. Depois que Manolo me relatou fiquei olhando a foto e comentei “é… até que é possível ser feliz no amor”. Manolo me respondeu “Claro que dá. Não só no amor, mas em tudo”. 

Pensando naquelas palavras e na história contada vi a hora e que estava tarde. Desci e chamei meu pai para ir embora. Despedimo-nos de Benito, Tobias e Carlinhos e deixei meu pai em casa. 

Chegando em casa abri uma cerveja, liguei a televisão e fiquei pensando em Alzair e Leila. Pensando se era possível realmente alguém ser feliz no amor e se reencontrar tantos anos depois. Pensei se minha história com Bia poderia ser assim. Bebi mais um gole de cerveja, fiquei olhando para a televisão, pensei e arrumei coragem. Peguei o celular para ligar pra Bia. 

Sentia falta de minha família perto de mim. Dela e de Julia. Lembrava os bons momentos em casa, as refeições, os três abraçados vendo televisão ou contando como foi o dia de cada um. As brigas acabaram nos afastando e levando à separação, mas o coração estava perto. 

E agora eu estava perdendo minha família para um “Zé”. 

Tenso telefonei e depois de alguns segundos ela atendeu. Balbuciei um “oi” e ela perguntou se tinha acontecido algo, se eu liguei pra dizer que atrasaria a pensão de novo. Respondi que não, conseguira pagar minhas dívidas e daria pra pagar em dia. 

Bia suspirou aliviada e perguntei se estava tudo bem. Ela respondeu que sim, nossa filha tinha ido dormir, mas chamaria se eu quisesse. Falei que não precisava e perguntei se ela estava bem. 

Bia estranhou a pergunta e respondeu que sim, estava bem. Emendou perguntando o que eu queria com aquele papo, se eu estava dando rodeios para não ir a reunião de pais no dia seguinte. Perguntei que reunião de pais era aquela e Bia irritada falou “Não disse? Irresponsável demais. Contei faz tempo que amanhã tem reunião na escola da Julia”. 

Botei a mão na testa e soltei um “é mesmo” que irritou mais ainda minha ex, que contou que precisava desligar e assim nossa conversa se encerrou. 

Falei sozinho “pelo menos me chamou e não o Zé. Pegaria mal a Julia ir ao colégio com duas mamães”. Nisso voltei a prestar atenção na tv e passava o noticiário. 

O noticiário falava da prisão do ex-presidente da Acadêmicos de Gericinó, o Rabiola, acusado de receptação. O homem foi encontrado com um caminhão de salmão que ninguém sabia a procedência, dentro de um barracão. A polícia levava o Rabiola com a imprensa tentando entrevistá-lo e tirar suas fotos, enquanto o homem passava com a cabeça baixa. Eu olhei bem e falei “acho que conheço esse caboclo”. 

Ao comentar, meu telefone toca. Era meu pai perguntando se estava vendo o noticiário. Respondi que sim e ele me lembrou de onde lhe conhecia. Antes de ser presidente da Acadêmicos de Gericinó ele foi diretor de bateria da Lins Imperial na época em que nós frequentávamos a escola. 

Respondi “é mesmo” e meu pai perguntou se eu queria ouvir uma história boa sobre ele. Preparei o celular pra gravar e pedi pro meu velho “mandar ver”. 

Rabiola não chegara a ser mestre de bateria, mas era um diretor de respeito. Rodou por escolas como Lins Imperial, Paraíso do Tuiuti e Flor da Mina do Andaraí. Diretor de bastante conhecimento era muito querido e com isso conseguiu inúmeros ritmistas pra lhe seguirem pelas escolas que percorria. 

Morava no morro de Gericinó, cria da comunidade e foi lá que ganhou o apelido de Rabiola por amar pipas. Quando estava de folga curtia soltar pipas do terraço de casa e se dava bem “cortando” várias, se dizia o “rei da pipa”. 

Gericinó não tinha escolas de samba. Eu disse “tinha”, no passado mesmo, porque decidiram criar uma. Na verdade quem decidiu criar foi a “rapaziada”. 

O termo “rapaziada” muitas vezes é usado para denominar os traficantes locais e como boa parte das comunidades do Rio de Janeiro, Gericinó era comandada por uma “rapaziada”. O nome ou apelido do dono do pedaço era “Free Willy” em homenagem mesmo à baleia e ele adorava música. 

O traficante era um dos comandantes do movimentado baile funk que tomava conta da comunidade todas as sextas e um dia sentiu falta de samba. Queria porque queria uma escola de samba no local. 

Decidiu chamar Rabiola e perguntar como se montava uma escola de samba. Rabiola passou todo o procedimento e Free Willy comentou “beleza, vou montar a escola de samba, nossa comunidade merece uma escola. Você vai ser o mestre de bateria e o Beto Perneta o presidente”. 

Montou a escola e ela cresceu como um meteoro. Graças a muito dinheiro do tráfico investido ganhou todos os grupos de acesso com extrema facilidade, até chegar ao grupo B do carnaval carioca, o que equivalia na época à terceira divisão. Apenas a dois passos do grupo especial – e já na Marquês de Sapucaí. 

Apesar de ser uma escola pequena a Acadêmicos de Gericinó “bombava”. Com muito dinheiro ela pagava os melhores salários possíveis para cantores, mestre e diretores de bateria, casal de mestre sala e porta bandeira, harmonia e direção de carnaval. As pessoas brigavam para poder fazer parte da escola. 

Os ensaios realizados na rua ficavam lotados e playboys e patricinhas se misturavam a bandidos com fuzis na mão na roda de samba. 

E a escola fez uma grande festa quando venceu o grupo C com 10 em tudo – até em quesito que não existia. Bebida e pó liberados. Um famoso cantor se atracou com uma garrafa enorme de uísque e doidão cantava diversos sambas de sua escola no palco nem percebendo que sua noiva era levada pelos traficantes para conhecer Free Willy de modo mais íntimo. 

Quem se dava bem com tudo aquilo era Rabiola que finalmente realizava o sonho de ser mestre de bateria e ganhava um excelente dinheiro, reformando a casa. Algumas semanas depois da conquista do grupo C a escola começou a se planejar para o desfile seguinte – e a estreia na Sapucaí – e Free Willy chamou Rabiola pra conversar na boca. 

Rabiola no local perguntou se tinha ocorrido alguma coisa e consternado o traficante contou que Beto Perneta morrera. Assustado Rabiola perguntou o motivo e Free Willy contou “uma fatalidade, bala perdida: trinta balas perdidas na verdade”.

Rabiola lamentou e perguntou quem assumiria a escola. Free Willy deu um sorriso desdentado e comentou “pra isso que te trouxe aqui, você é o novo presidente”. 

Rabiola contou que se sentia lisonjeado, mas não estava preparado para o cargo quando os traficantes engatilharam as armas e ele mudou de ideia, agradecendo e aceitando o convite. 

Conversaram sobre o carnaval seguinte e Rabiola sugeriu que fizessem carnaval com enredo afro, que se gastava menos e sempre saíam ótimos desfiles. Free Willy recusou alegando ser evangélico e não gostar de macumba. 

O tempo passou e Free Willy liberou um milhão para a escola fazer o carnaval. Separou mais duzentos mil e disse a Rabiola “isso aqui é pra garantir a vitória: dá pros homens da liga”. 

O carnaval ia ficando suntuoso, lindo e Rabiola teve uma “brilhante idéia”. Não precisava daquele dinheiro todo para ganhar o carnaval: então desviou não só trezentos mil do milhão para fazer o desfile como não subornou ninguém e pegou pra si os duzentos mil. 

Com quinhentos mil transformou a casa em mansão e comprou um carro novo. 

Free Willy achou estranha àquela súbita riqueza de Rabiola, mas ‘deixou quieto’. No dia do desfile encontrou um diretor amigo da liga e perguntou “e aí chefia? Ta tudo certo?”. O homem respondeu que não, pois não recebera nada. 

Free Willy, que era um negão, ficou branco e perguntou “Como assim? Mandei a grana pelo Rabiola!!”. O homem respondeu que nada chegara nele e que aquele ano “seria à vera, ganharia quem desfilasse melhor”. 

O negão que ficara branco depois ficou verde, azul, amarelo e voltou correndo pro morro. Encontrou Rabiola descendo a comunidade e mandou que retornasse. Rabiola alegou que tinha que botar a escola na avenida quando todos os traficantes engatilharam seus fuzis e Free Willy disse: “volta, seu filho da puta!” 

Voltaram com o presidente da escola e foram para a boca de fumo. Rabiola apanhou mais que boneco de Judas em sábado de aleluia e deixaram o homem apenas de cueca. No fim da surra Free Willy perguntou “sabe rezar safado?”. Rabiola respondeu que não e o traficante completou “então aprenda porque se a escola não ganhar tu tá morto”. 

A escola desfilou bem e todos aguardavam ansiosos pela apuração, ainda mais Rabiola que estava preso na boca de fumo e só sairia dali depois do resultado. Vivo ou morto. Na hora da apuração todos os traficantes se reuniram com Rabiola em volta de um radinho para acompanhar os resultados. Rabiola rezava ajoelhado com doze fuzis apontados para sua cabeça. 

No penúltimo quesito a Acadêmicos tomou 9.9 em samba-enredo o que lhe fez ficar atrás do Arranco de Engenho de Dentro. A tensão tomou conta da boca, Rabiola se borrou e Free Willy disse “tá fodido, negão”. 

Chegaram ao último quesito, bateria e as duas escolas levaram 10 dos três primeiros julgadores. Chegou a hora do último julgador e a Arranco vencia por um décimo. Na hora da nota da Acadêmicos ela recebeu 10, faltava a nota do Arranco. 

Engatilharam as armas prontos pra atirar e o locutor anunciou “Arranco de Engenho de Dentro 9,9”. Rabiola começou a pular feito um louco e gritar “Campeão!! Campeão!!”. Ninguém entendeu nada e Rabiola abraçou Free Willy dizendo “Campeão!! O quesito desempate era bateria!!” 

Os traficantes começaram a comemorar. Pulavam como loucos, chegaram na janela e começaram a atirar comemorando mais um campeonato da Acadêmicos. Emocionado Free Willy mandou que pegassem champanhe na geladeira e no meio de tanta comemoração nem perceberam que Rabiola se mandou. 

Rabiola, de cueca apenas, desceu o morro a cento e vinte por hora e já estava bem longe quando Free Willy percebeu que fora enganado. O quesito desempate era samba-enredo e a Acadêmicos de Gericinó tinha perdido o campeonato. 

E dessa forma Rabiola escapou do cerol.

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