Nesta sexta feira, após interregno temos a volta da coluna Cinecasulofilia, assinada pelo crítico, cineasta e professor Marcelo Ikeda. Como sempre, coluna publicada em conjunto com o blog de mesmo nome.
O Som ao Redor
Gostaria de escrever com mais cuidado sobre O SOM AO REDOR, mas o tempo foi passando, as urgências foram me corroendo, e só será possível fazer alguns apontamentos para tocar em alguns pontos sobre a importância desse filme para o cenário do cinema brasileiro contemporâneo.
A principal contribuição de O SOM AO REDOR é ser um filme brasileiro, buscar dialogar com questões caras ao Brasil e ao cinema brasileiro, fazer um painel social/político amplo de sua cidade, ser uma radiografia do atual estado de coisas, não querer dar as costas ao mundo para fazer cinema.
Ainda assim, O SOM AO REDOR tem feito ampla carreira internacional, mostrando que não é preciso se trancafiar em referências a cineastas da grife do cinema de arte para ter seu filme incluído no “panteão dos novos talentos do world cinema”. O tratamento estético dado ao filme não vem ex ante do que se quer falar, mas se articula de forma orgânica.
Me parece que o objetivo primeiro do filme é falar sobre o que está acontecendo HOJE no BRASIL, e enquanto se desenvolve isso, faz-se cinema. E não o contrário: “quero fazer cinema que dialogue com xpto, vou procurar algo que se encaixe a isso”. O filme não adere imediatamente aos cacoetes do cinema de arte tão em voga nos grandes festivais, e que parece ser o principal fetiche (objeto de desejo) dos cineastas estreantes do país.
Sua preocupação parece ser, acima de tudo, um filme brasileiro, feito por brasileiros, que dialoga com questões brasileiras, feito para ser visto primeiramente por uma plateia brasileira, inteiramente tomado pelas questões de sua cidade, mais do que dialogar com influências ou referências de uma gramática cinematográfica ou de certos trejeitos dos principais autores em moda no cinema mundial no momento. Não é que ele não o faça, mas não parece ser a sua ambição primeira, o seu ponto de partida. Claro, é isso, não deixando de pretender fazer um cinema sofisticado.
O SOM AO REDOR é um painel ambicioso das relações sociais/políticas em Recife, mas podemos, sem muitas distorções, extrapolar para o Brasil de hoje.
O filme se passa numa rua, “nessa avenida chamada Brasil” (aqui sim cabe a expressão “Avenida Brasil”…). Ali há um microcosmos de situações, personagens e contextos que, para além de seu tom inusitado, suas tiradas de humor, são uma análise complexa do que vivemos.
Me parece que o ponto central do filme é falar que essa “política da conciliação”, esse “jeitinho brasileiro” de ir empurrando as tensões e as contradições do nosso estado de ser para debaixo do tapete, algum dia vai explodir. O filme também mostra que continuamos comprometidos até a medula, ainda que indiretamente, com as heranças do coronelismo. Um dos resultados disso é a “política do medo”.

É um filme ambicioso, pela sua duração, pela sua ambição de ser um painel amplo de um estado de coisas. Por sua narrativa episódica, por seu desejo de falar de forma sutil do que está acontecendo, pelo papel dúbio de seu protagonista, O SOM AO REDOR é o A DOCE VIDA do cinema brasileiro do século XXI.
Mas como Kleber faz isso? Através de uma narrativa fragmentada, com um mosaico de personagens, com um filme essencialmente narrativo mas que ao mesmo tempo é composto de fragmentos que não se encaixam perfeitamente. Ou seja, uma narrativa moderna. Vejo que algumas pessoas comentam que o roteiro é composto por algumas “peças desnecessárias”, já que, caso tiremos algumas de suas partes, não se altera a essência do todo. Falácia!
Esse é o jogo dúbio dessas narrativas fragmentadas. É exatamente disso é que é feito o filme. De peças que não necessariamente se encaixam. Há algo fora de lugar. Por outro lado, Kleber não faz “multiplot” ou coisa do tipo. Por isso, é muito saudável que as coisas não se encaixem perfeitamente, mas ao mesmo tempo esses “episódios aparentemente soltos” nos revelam muito da natureza daquele lugar e daquelas pessoas.
Há ao mesmo tempo profundo tom de observação sobre as contradições de uma classe média. Mas Kleber faz com generosidade. Uma das grandes lições de O SOM AO REDOR é procurar fazer uma radiografia profunda de um estado de coisas mas sem ao mesmo tempo querer julgar os personagens, ou tratá-los como meras caricaturas. Há vida ali. O coronel não é totalmente mau; o vigilante não é um brutamontes. Os personagens têm vida para além de ser meros estereótipos, ou “representantes de tipos”.
O maior trunfo do filme é seu profundo humanismo para com seus personagens um tanto patéticos, um tanto desesperados, um tanto oportunistas. Tenta observar suas limitações, entendendo o estado de coisas, mas ao mesmo tempo não é um humanismo frouxo. Tudo ali vai acumulando uma tensão que a qualquer momento vai explodir!
Talvez a posição do realizador seja o ponto de vista daquele que no fundo é seu personagem principal: João, representado por Gustavo Jahn, também realizador. (Se não é a do realizador, pelo menos é de boa parte do público de classe média brasileiro que irá assistir ao filme, tipicamente representado pelos jovens eleitores de Freixo/Roseno). João é o boa-praça, o bem-intencionado que consegue vislumbrar a situação mas que pouco consegue agir para modificá-la.
É um corretor de imóveis, neto do “coronel” da “Avenida Brasil”. Exemplo típico é de uma reunião de condomínio, onde ele reclama, mas no fundo não impede a demissão do porteiro. O coitado do João no fundo é um fraco, mal consegue uma mulher para si! Ele vê a situação, é bem intencionado mas é impotente para modificá-la. Na verdade, não sabemos até que ponto ele quer transformá-la, já que também está comprometido com ela. E por aí vai.
É impressionante a maturidade da direção de Kleber Mendonça Filho, tendo em vista ser o seu primeiro longa metragem. Um filme de direção: além de um olhar indiscutível, é um filme que conjuga roteiro, fotografia, montagem (excelente o árduo trabalho de montagem de João Maria…), direção de atores (uma lacuna do atual cinema brasileiro que é dominado no filme, e com atores pouco conhecidos do público, que não estão na grande mídia – com exceção de Irandhir), etc, etc. É curioso também como é possível identificar algumas peças de seus curtas-metragens ali, como um certo tributo ao caminho que o levou ao seu primeiro longa, mas sem que isso seja meramente uma diluição ou afogue o filme no passado.
É difícil pensar para onde se vai depois desse primeiro longa. É um trabalho que se propõe grande e que consegue realizar suas ambições, seja como proposta de cinema seja como realização em si. Se quisermos entender o que é o Brasil de hoje a partir do cinema, talvez esse seja o filme pelo qual devemos começar!