(Texto originalmente escrito em 2009 e devidamente modificado – para melhor, espero. Com a licença do Seo Zé, dono do pedaço)
Outro dia um aluno me mandou de prima uma pergunta sobre o governo Juscelino Kubitschek. O mancebo queria minha opinião sobre os “anos dourados”. Respondi com franqueza, mas acho que o cabra não me levou a sério, o que é uma pena.
Foi o seguinte. Ao indagar sobre a medida mais impactante do período JK, o infante esperava certamente escutar coisas como a construção de Brasília, rodovias, indústria automobilística e outros balacobacos. Fui, porém, sincero e preciso:
– Não tenho dúvidas de que o fato mais significativo de todo o período dos 50 anos em 5 foi a inauguração, com a presença do próprio presidente, do Mercadão de Madureira, na Avenida Edgar Romero. O Mercadão é mais importante do que Brasília, uma cidade sem esquinas e, portanto, sem Exu.
O Mercadão de Madureira, em verdade, surgiu em 1914, nos tempos do Marechal Hermes da Fonseca, como uma quitanda de venda de produtos agrícolas. Mudou de endereço algumas vezes, até que em 1959, com amplo apoio do governo JK, transferiu-se para a Avenida Ministro Edgar Romero e está lá até hoje. A inauguração do Mercadão no endereço definitivo, aliás, foi marcada por uma história monumental.
Acontece que a característica mais marcante do mercado popular de Madureira é a impressionante concentração de lojas de macumba. O camarada chegado numa curimba encontra rigorosamente tudo – bodes, galinhas, patos, codornas, ervas diversas, obis, orôbos, pembas, efuns, sabões da costa trazidos da Guiné, atabaques, ibás, roupas de santo e o escambau. O Mercadão é o principal ponto do país de venda de artigos religiosos afro-brasileiros, batendo inclusive os mercados da velha Bahia. Eu diria que ali funciona uma espécie de Disneylândia da curimba e isso justifica o furdunço da inauguração com a presença da comitiva presidencial.
O presidente JK estava, como sempre, tremendamente simpático. Cumprimentava os comerciantes com o sorriso largo, já tinha sido devidamente defumado por mães de santo, até que, na porta de uma das lojas, um funcionário não segurou a peteca, deu uns tremeliques e recebeu uma entidade – um boiadeiro, para ser mais preciso. O do Orum veio que veio, aos berros, dando fortíssimos murros no peito, e fez questão de falar com Juscelino.
Impressionadíssimo com a cena, o presidente, para estupor dos seguranças, aproximou-se da entidade, recebeu um passe, tomou um gole de parati, ouviu uns conselhos, assentiu com a cabeça e seguiu adiante, acompanhado pelos jornalistas. Um deles, porém, preferiu conversar com o espírito para saber quem ele era.
A matéria com o boiadeiro que deu passes em JK foi publicada na revista Umbanda de Luz e no jornal A Luta Democrática e é um espetáculo. Acho eu que é o primeiro registro de uma entrevista feita com um habitante das bandas da Aruanda, bem antes do Exu Seu Sete da Lira virar atração televisiva no Chacrinha e no Flávio Cavalcante.
Ao ser indagado sobre sua identidade, o espírito revelou que era o boiadeiro Lourenço Madureira, o sujeito que possuía, na primeira metade do século XIX, as terras do sertão carioca que deram origem ao logradouro do mesmo nome. Estava ali para abençoar o mercado popular e, cáspite, contou um pouco da história da região.
Disse, por exemplo, que nos governos de D. Pedro I (1822-1831) e da Regência (1831-1840), o único meio de se chegar ao local – conhecido como fazenda do Campinho e pertencente a freguesia do Irajá – era mesmo na base do bom e velho cavalo. Em 1858 os trilhos da Central do Brasil chegaram perto, à estação de Cascadura. Só em 1896, nos tempos de Prudente de Moraes e um ano antes da guerra em Canudos, foi inaugurada a estação de trens que recebeu o nome de Madureira. Eu acredito – e não sou maluco de duvidar do relato da entidade que deu origem ao troço todo.
O curioso – e impressionante – de tudo isso é que parte da sede da fazenda do boiadeiro foi destruída por um incêndio no dia 15 de janeiro de 1850. Exatamente 150 anos depois, em 15 de janeiro de 2000, o Mercadão de Madureira foi semi-destruído por um incêndio de proporções catastróficas – e suspeitas, diga-se de passagem.
Eu, que conheci o velho mercado, confesso que não gostei muito do resultado da reconstrução, mas continuo recorrendo a Madureira com frequência grande. Chego de leve, peço licença a Exu, o dono de todos os mercados, faço minhas comprinhas, peço agô a Seu Zé Pilintra – que ronda os corredores pisando manso como bom malandro que foi e é – e canto pra subir.
 
Há os que dizem que a grande atração do bairro não é mais a velha Meca da curimba, mas o novo parque criado pela prefeitura. Deste meu canto eu digo o seguinte: Vou acreditar mais no caráter do parque quando por lá começarem a aparecer uns bons despachos, com o marafo devido ao homem que veio no balanço da canoa, dono e senhor de cada esquina suburbana.
 
Saravá!

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