Salve São Sebastião e todos os oxossis, padroeiros da cidade do Rio de Janeiro e protetores do seu povo – uma gente que bateu tambor em fundo de quintal, jogou capoeira, fez a sua fé no bicho, botou o bloco na rua, a cadeira na calçada, o despacho na esquina, a oferenda na mata, a bola na rede e o mel de Oxum na cachoeira – já que sem um chamego acolhedor ninguém vive direito.
Excluído dos salões do poder, mas protegido pela caboclada, o carioca inventou o ano novo na praia, zuelando atabaques em louvor a Iemanjá, Janaína, Yara e Kianda. Colocou, esse povo do Rio, na Virgem da Conceição e na Senhora dos Navegantes os seios fartos de deusa africana.
Saravá para o povo que inventou a cidade [e a cidadania] que lhe foi covardemente negada e criou esse modo de ser que atropela convenções, confunde, seduz, agride e comove – é essa a maneira que o carioca encontrou, ao longo de sua história, para subverter a escuridão dos tumbeiros, a caça aos índios tamoios e a ferida aberta pelos trezentos anos de chibata. Nós somos herdeiros dos homens que bateram tambor na fresta e criaram a subversão pela festa.
Nos conceda, meu São Sebastião, o convívio urbano e as ruas pacificadas. E rua pacificada é rua cheia, não é rua vazia onde prevalece a bandidagem mais deslavada ou a ordem do choque travestida em choque de ordem.
Nos livre, Oxossi, dos homens de bem que encaram a cidade fomentando o individualismo mais tacanho, o olhar enviezado e o clima de desconfiança entre seus habitantes.
Nos afaste, caboclo Tupinambá, da política pública que, estimulada pela mídia mais reacionária e imediatista, nega nossa peculiaridade e atua pelo viés exclusivo da repressão. Peço apenas isso: que os tais homens públicos reflitam e reconheçam a dimensão profunda do que nós, os cariocas, somos e construímos no tempo e no espaço. Se não for assim, que se danem eles – com os nomes devidamente colocados na canjira de Zé Pelintra, que também cuida da nossa banda.Administrar uma cidade, falar sobre uma cidade, escrever sobre ela, propor políticas públicas, implica conhecimento, reflexão, amor e interação com os seus modos de recriação da vida e produção de cultura, função que nos faz humanos e nos redime do absurdo da morte.

Bato cabeça e louvo a civilização peculiar criada no extremo ocidente por João Candido, Donga, Pixinguinha, Paulo da Portela, Cunhambebe, Cartola, Noel Rosa, Bide, Caboclo das Sete Encruzilhadas, Tia Ciata, Meia Noite, Madame Satã, Lima Barreto, Paula Brito, Marques Rebelo, Manduca da Praia, Silas, Anescar, Dona Fia, Fio Maravilha, Leônidas da Silva e Di Cavalcanti.Saravá os  judeus da Praça Onze, os árabes da rua da Alfândega, a pomba gira cigana, a escrava Anastácia, o Cristo de Joãosinho Trinta, o Zé das Couves, o vendedor de mate, o apontador do bicho, o professor, o aluno, o gari, os líderes anarquistas da greve de 1919, a Banda do Corpo de Bombeiros, a torcida do Flamengo, o pó-de-arroz, a cachorrada, a nau do Almirante, o Bafo da Onça, o Cacique de Ramos, o Domingo de Ramos, a festa da Penha, a festa na lage e a cerveja gelada.

Com a baixaria na sétima corda e o ronco da cuíca costurando a missa, brado na zuelada do angoma grande: okê Oxossi!, meu São Sebastião de cocar de caboclo velho, padroeiro da nossa gente.

Amém.

7 Replies to “ORAÇÃO AOS CABOCLOS DO RIO”

  1. Que puta texto! Que nos livre do imediatismo, amém!

    Parabéns, Professor.

    Abraços paulistanos,

    Alemão Moura

  2. Ola, tenho 29 anos e sou do Rio. Já estou acompanhando a leitura aqui desde dezembro e estou gostando muito. Parabéns.”

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