(Foto: PortelaWeb)

Estamos na semana em que as escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro começaram a definir seus sambas para 2012. Sábado passado foram a Renascer e a Mangueira, ontem o Salgueiro, as demais até a próxima segunda feira – prazo máximo determinado pelos prazos de gravação do cd.Não irei falar aqui dos sambas escolhidos, que serão alvo de análise posterior. Mas sim do verdadeiro monstro que estão se tornando as disputas de samba, onde a qualidade do mesmo virou fator irrelevante na hora de sua escolha – quando deveria ser o contrário. Temos uma série de distorções e histórias fantásticas perpassando este processo de “escolha” e tornando totalmente anômalo o processo.

O colunista Aloísio Villar em brilhante texto mostrou bastante da mecânica atual do processo. Mas quero aqui traçar algumas considerações mais voltadas para os lados da gestão.

O primeiro disco de escolas de samba de que se tem notícia foi gravado em 1968, em iniciativa do Museu da Imagem e do Som. Era uma iniciativa que visava a perpetuar os sambas daquele carnaval. Em 1971 saiu o primeiro LP oficial, da gravadora Top Tape, que ficaria até 1987. Com o advento da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) em 1984, os valores pagos às escolas e aos compositores aumentaram substancialmente e a vitória em um samba de Grupo Especial passou a ser uma fonte substancial de renda para os compositores.

Para que o leitor tenha uma idéia, o prêmio aos compositores do grande “Círio de Nazaré”, apresentado pela Unidos de São Carlos – hoje Estácio de Sá – no hoje Grupo Especial em 1975 foi uma singela caixa de cerveja. Em 2004, quando o samba foi reeditado pela Unidos do Viradouro, os direitos oriundos tiraram da miséria Nilo Mendes, um dos autores.

Com este aumento dos valores referentes aos direitos, a disputa de samba em si passou a ser uma grande superprodução. Formaram-se “escritórios”, com grupos de compositores que fazem sambas para várias escolas, com estrutura forte, poder financeiro e que dada a proibição de assinar em mais de uma escola por grupo se utiliza de “laranjas” para assinar os sambas – com estes recebendo parte dos direitos. Os mais conhecidos são os dos compositores André Diniz (oriundo da Vila Isabel) e Cláudio Russo (portelense, mas que se notabilizou na Beija Flor), mas há outros bastante importantes.

Estas firmas – mas não somente estas, que fique claro – inflacionaram bastante as disputas e tornaram a qualidade do samba absolutamente secundária na definição da música que embalará a agremiação durante o desfile. E gerou uma fonte de renda interessante para as escolas: o gasto com receita de ingressos durante a disputa, com bebida, comida e outras pirotecnias passou a ser uma nascente de recursos para as agremiações. Vale lembrar que muitas destas torcidas de sambas concorrentes são “profissionais” de disputas, não pisando mais na quadra depois do samba escolhido.

Além disso, há todo um mercado, inflacionado, de puxadores, cavaquinistas e outros profissionais. Hoje até “coreógrafo de torcida” existe em certos concorrentes. Também tem o cara que arruma os ônibus de torcida, tem o que traz a mesma, tem o cara da política, o que tem poder financeiro, tem os adereços utilizados na apresentação na quadra…

Com isso os gastos foram à estratosfera: com um investimento menor que R$ 40 a R$ 50 mil é quase impossível hoje disputar de forma competitiva um concurso de Grupo Especial. Há casos de sambas vencedores – e derrotados – que gastaram a bagatela de R$ 150, 200 mil durante a série de apresentações.

Lembro que um samba vencedor no mesmo Grupo Especial rende algo em torno de R$ 250 mil em direitos, em média – há escolas que chegam a alcançar R$ 350 mil. Deste valor a própria agremiação retém uma percentagem que varia de 30 a 40% do valor, e muitas vezes mais uma percentagem é dividida entre a Ala de Compositores ou os sambas derrotados na grande final. Fazendo uma conta rasteira, uma parceria com cinco integrantes levaria líquido para casa cerca de R$ 150 mil no total – 30 mil para cada um. Isso quando não há mecenas externos e que também levam o seu quinhão.

Vendo os valores o leitor começa a entender como está esquizofrênico o processo, não é mesmo ?

As escolas, entretanto, incentivam este processo. É casa cheia no período de disputa, receita de ingressos e de bar garantida. Além disso, há muitas vezes anormalidades nestas escolhas: por exemplo, em uma grande escola do Especial um dos finalistas possui um grande apoio de pessoas ligadas à Prefeitura, com não se sabe quais contrapartidas existentes ou ameaças de cortes de recursos explicitadas ou insinuadas. E possivelmente este apoio – melhor seria dizer pressão – deverá tornar esta composição a possível “vencedora”. Esta mesma escola, em ano anterior e sob outra administração negociou apoio financeiro com uma das parcerias em troca de levar o samba para a avenida – onde, aliás, teve rendimento pífio.

Em agremiações menores já soube de casos onde a parceria pagou contas de luz atrasadas da escola e ganhou o samba por conta disso. Ou bancou carros alegóricos e roupas de destaque a fim de conquistar o “título”.

Mas estes casos não são nosso escopo hoje. E sim mostrar como as escolas e os compositores alimentam este verdadeiro “ovo da serpente”.

Para o presidente da agremiação é uma fonte de receita garantida, o que mascara muitas das deficiências de gestão. É mais fácil explorar parcerias ávidas por ter o orgulho de verem seus nomes entoados na avenida (além dos recursos financeiros) que ter um trabalho de marketing decente que traga novas fontes de grana ou melhorar e profissionalizar efetivamente a gestão – como já escrevi aqui repetidas vezes, o potencial é praticamente infinito. Sempre o caminho do menor esforço e transparência.

Por outro lado, o sonho de ser campeão em sua escola eleva os compositores a um patamar absolutamente irracional. Gasta-se muitas vezes o que se tem e o que não se tem na busca de acompanhar as parcerias fortes financeiramente e as oriundas de “escritórios”. Quando se tenta algum tipo de união a fim de dar um basta nesta escalada de custos e diminuir a influência da política interna da escola no processo de escolha sempre há algum que se julga mais esperto e insiste no processo a fim de ter algum tipo de “vantagem’ com as pessoas que decidem. São verdadeiros “pelegos do samba”.

Como o leitor está percebendo, normalmente as parcerias mais endinheiradas e as que possuem maior entrada política dentro da agremiação acabam tendo uma percentagem de sucesso muito maior nas disputas. A qualidade da composição, que deveria ser o fator mais importante nesta disputa, acaba se tornando absolutamente secundária. Contribui para isso também o péssimo julgamento, onde um samba bom leva 10 e um muito ruim, 9,9 ou, no máximo, 9,8.

Temos também outra anomalia, que são as “sinopses musicadas” e o engessamento dos sambas no padrão “10+4+10+4”: primeira parte com dez versos, refrão com quatro, segunda parte com também dez e refrão final de “explosão” com outros quatro – normalmente citando o nome da escola. Depois não entendem porque a qualidade dos sambas de enredo caiu tanto.

Outra distorção são compositores “multicampeões” em suas escolas que não sabem nem onde ficam o papel e a caneta, ou seja, não escrevem uma mísera linha. Mas tiram uma marra…

Em resumo, a disputa dos sambas se tornou um monstro absolutamente desvirtuado: o que deveria ser um concurso de melhor composição se tornou um páreo de “quem gasta mais” ou “quem tem mais influência na diretoria”. Contribui para isso também o modelo muito pouco transparente das escolhas, normalmente enfeixada nas mãos do presidente ou de um staff muito reduzido e que não consulta os segmentos da escola – que, ao fim e ao cabo, são quem vai cantar esta obra na Marquês de Sapucaí.

Este modelo precisa ser mudado de forma urgente, mas é algo que passa pelos interesses de escolas, dirigentes e compositores. Pelos motivos que exponho acima, isso não parece muito realista de acontecer em um futuro próximo, infelizmente. É muita grana e poder em jogo. Talvez um julgamento do quesito “Samba Enredo” mais rigoroso, com “bombas” levando merecidas notas baixas, possa mudar este quadro – ainda assim é difícil.

Aguardemos os resultados. Mas saibam que a escolha de bons sambas é mera coincidência.

One Reply to “Disputas de Samba, o "Ovo da Serpente"”

  1. Migão sou da época que do lado de fora da quadra, sentando em uma barraca, com a galera da batera tomando uma, os compositorres chegavam e prometiam um churrasco para a gente não morcegar.
    Hoje ate no grupo B eles não falam mas com a gente,

Comments are closed.