Nesta sexta feira “imprensada” – mas para mim, de trabalho – temos mais uma edição da coluna “Cinecasulofilia”, do cineasta, professor e crítico Marcelo Ikeda. Como sempre, publicada em parceria com o blog de mesmo nome.

Mãe e Filha – Do luto ao luto

Quis o destino que a primeira exibição pública do segundo longa de Petrus Cariry aqui no Ceará acontecesse no Dia dos Namorados. Uma espécie de ironia, pois os festejos de uma data cuja principal razão de ser é o comércio (os presentes, os restaurantes, etc) se afastam do espírito do filme, uma sóbria elegia fúnebre.

Já falamos aqui sobre o notável longa de estreia de Petrus – O Grão – e a condição singular do realizador no cenário do cinema de Fortaleza. Em Mãe e Filha não consigo deixar de refletir sobre essa mesma situação, pensando em que medidas esse segundo filme é um aprofundamento, uma radicalização do anterior, apontando para um caminho de cinema muito coerente e comovente. Entre herdeiro de uma tradição familiar e integrante do “novíssimo cinema fortalezense”, Petrus parece fazer uma declaração de princípios em defesa de um caminho próprio, negando sua filiação a um ou outro extremo.

Mãe e Filha é uma enorme ilha dentro do cinema brasileiro, afastando-se seja de um cinema mais narrativo, ligado ao grande público, seja de afastando dos fetiches do jovem cinema contemporâneo. Em contraste com o clima geral de exaltação dos feitos sociais da Era Lula e diante das perspectivas de um Ceará em desenvolvimento, Petrus realiza um dos filmes mais sombrios do cinema brasileiro recente. É como se Petrus fosse assombrado por fantasmas que ele próprio não viveu. Seu destino: a opção pela solidão e pelo luto. Do luto ao luto.

Mas o que é o filme? Mãe e Filha possui um fiapo de narrativa: uma mulher que volta ao interior do Ceará para visitar sua mãe e enterrar seu filho (neto desta). Com isso, o filme é um longo e doloroso cortejo fúnebre, travessia de difícil pertencimento. A avó vive absorta pelos fantasmas de um passado, como um espelho da própria condição da cidade – Cococi, uma “cidade fantasma”, que Petrus já havia filmado no curta Dos Restos e Das Solidões. Na cidade não parece haver perspectiva de futuro além da morte: os enquadramentos são centrípetas, claustrofóbicos, a luz sombria, fora da luminosidade tradicional das representações do sertão.

De fato, esse é um dos elementos que afasta Mãe e Filha de O Grão: enquanto este ainda era voltado para uma representação mais tradicional do universo do interior nordestino, em Mãe e Filha o sertão surge a partir de uma iconografia peculiar e de um olhar que foge ao realismo. Momentos de câmera lenta tal qual a videoarte mineira, vaqueiros que se sentam à mesa como se fossem os parentes de Tio Boonmee, cortes abruptos de imagem e som, vagalumes que iluminam o breu, grandes planos gerais filmados com lentes grandes angulares, uma referência pictórica sofisticada, lembrando os quadros do barroco ou do renascimento do Norte.

Um momento especial se destaca nessa relação entre a construção de uma iconografia plástica e as novas representações do sertão: é quando Petrus corta para um quadro de Ofélia, uma pintura pré-rafaelita, de John Millais. É como se Ofélia fosse uma espécie de alter ego da posição do diretor. Em meados do século XIX, os pré-rafaelitas se opunham aos avanços dos pós-impressionistas e optavam por uma arte falsamente acadêmica, por um sensualismo de suspensão do tempo e do espaço, numa opção consciente por um comovente anacronismo. Uma religiosidade sensual, luminosa. Ofélia morre na dor e na loucura mergulhando num lago, mas sua morte não é como Mouchette de Bresson. Há uma “suntuosidade simples” mas nada franciscana e uma iluminação. De qualquer forma, o que quero dizer é que os pré-rafaelitas eram uma ilha.

Tudo é filmado com grande delicadeza, como um cumprimento respeitoso em acompanhamento a esse ritual fúnebre, observando a passagem do tempo e a reinstalação do espectador e da protagonista nesse lugar-nenhum. Petrus observa de maneira respeitosa sua herança mas se interessa muito mais em perscrutar a estada dessa mulher nessa casa a que ela não pertence mais do que sua saída para outro mundo. Sabe que aquele mundo não tem mais como continuar mas não sabe o que fazer sem ele. Mãe e Filha é fatalista mas nesse entremeio Petrus parece encantado com as possibilidades da linguagem do cinema, um longo gesto de adeus, em ritmo de adagio. É admirável que Petrus o realize em Fortaleza em 2011.

A autoconsciência desse pomposo anacronismo torna Mãe e Filha um adagio fúnebre que nos faz lembrar que o cinema pode ser a arte do encontro, da amizade ou mesmo do embate, da luta, mas também pode ser simplesmente um gesto de luto, silêncio, sombras… e solidão.