Neste super-feriadão, nesta Sexta Feira Santa – e também da data que marca o “descobrimento oficial” do Brasil, embora pesquisas recentes indiquem que já se sabia da existência do território e o que ocorreu foi muito mais uma “tomada de posse” que o Descobrimento – temos excepcionalmente mais uma coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro.

Seu depoimento de advogado busca desmistificar certos estigmas que repousam sobre a Justiça brasileira, vista pelo lado de dentro. Confesso que discordo de alguns pontos – especialmente quando me lembro de Daniel Dantas (foto) e assemelhados – mas é uma visão interessante e necessária da questão.

Tarda e Falha, porém Cega

Outro dia o Editor Chefe externou aqui sua percepção de que o Judiciário brasileiro invariavelmente decide a favor da parte mais poderosa ou mais endinheirada. Esse sentimento, vale dizer, é corrente no senso comum, mas o que vi nessas duas décadas advogando não confirma essa impressão. Eu exerço a advocacia de maneira compulsiva e frenética, sou praticamente um viciado em litígios. Há ramos mais nobres da advocacia, gente que se dedica a contratos, tributos, planejamentos, coisas, digamos, chiques. Eu não.

Eu vivo a rotina forense, o confronto pura e simples, a luta franca de quem deposita as esperanças da vida nas mãos de um terceiro, no caso, um Juiz.

Não vou reproduzir aqui em quantas causas atuei nessa vida (ou, vá lá, fui nomeado para atuar em conjunto com outros colegas), primeiro porque não sei mesmo, segundo porque essa informação nem é tão importante assim. Mas peço que acreditem que a minha amostragem pessoal é extensa e variada, o que me dá a chance de discordar desse sentimento de que a Justiça tende a proteger os ricos e famosos.

Para começar a exemplificar, vamos logo convocar o maior litigante do país, o Poder Público em todas as suas esferas, União, Estados, Municípios, órgãos e empresas a eles vinculados. Ninguém se envolve mais em processos do que essa gente. Ninguém é mais poderoso e rico do que o Setor Público, genericamente considerado. E, obviamente, ninguém tem mais poder de exercer influência sobre a Justiça do que o Executivo (que, inclusive, nomeia a cúpula do Judiciário). 

Ora, ninguém perde mais causas do que o Poder Público! O raciocínio de que a Justiça protege os mais fortes começa a deixar a desejar já na largada [N.doE.: ressalvo que especialmente o STF, hoje, tem uma orientação política discordante da ocupante do Executivo, em muitas vezes atuando como linha auxiliar de políticos de oposição.].

Depois, vamos onde está a maior concentração de ações entre particulares, o Juizados Especiais (apelidados de “pequenas causas”). O avião que atrasou, o telefone que emudeceu, a geladeira que quebrou, o nome que foi para o SPC. Toda grande empresa atuante no Brasil e que lida com muitos consumidores certamente tem milhares de questões dessas todos os anos. Sim, milhares, ninguém leu errado. E o placar é amplamente favorável aos consumidores, muitas vezes pessoas humildes, que estão vencendo de goleada esta guerra surda e subterrânea pela melhoria da qualidade dos nossos produtos e serviços. Ter dinheiro e ser poderoso costuma não fazer diferença – e se faz, é em desfavor da parte mais aquinhoada.

Continuemos nosso passeio pela Justiça do Trabalho. Vem dali o exemplo mais antigo das surras homéricas que os desfavorecidos aplicam nos seus ex-patrões. A possibilidade estatística de uma grande empresa nunca ser condenada em uma reclamação trabalhista deve ser próxima do triunfo na Mega Sena. É possível que o empregador ganhe um ou outro processo, mas se um empregado aciona a Justiça do Trabalho em busca de algum direito, a chance de sair vitorioso é claramente maior do que a de perder [N.doE.: confesso que nunca vi banco perder ação trabalhista. Nunca].

Bom, os exemplos que escolhi devem responder por mais de 80% das causas em curso em nossa Justiça. E provam, com números consistentes, exatamente o contrário do que se acredita por aí. Ser rico e poderoso é um atributo mal visto pelo Judiciário.

É claro que nos 20% restantes, onde estão causas mais individualizadas, ter mais dinheiro pode fazer a diferença sim. Principalmente na hora da escolha do advogado. Não contem para ninguém que eu disse isso, mas tem muito advogado ruim por aí. Muitos mesmo, infelizmente. E gente com dinheiro, em processos sérios, não costuma entregar a questão para o amigo de infância ou para o vizinho.

Na área criminal essa escolha pode transformar a pessoa no jornalista Pimenta Neves (um assassino confesso e sentenciado, porém solto) ou no goleiro Bruno (um réu primário que se diz inocente, mas aguarda preso o seu julgamento). Na área cível pode realmente desequilibrar a balança para quem escolheu melhor seu defensor. Mas não necessariamente um bom advogado é caríssimo. Há muita gente boa a preços e/ou condições acessíveis até para quem não tem um tostão furado.

Ao contrário da maioria das pessoas, que cultiva uma imagem do Judiciário como uma mãe sempre disposta a passar a mão na cabeça dos meninos ricos e raramente puni-los, eu acho que nossa Justiça tem muitas, muitas falhas mesmo, mas não a parcialidade descarada que as pessoas em geral lhe atribuem.

A Justiça é como um árbitro de futebol: ela erra muito, mas normalmente para os dois lados e por mais que acerte no conjunto, o time que perdeu a partida sempre acha que seria diferente se o árbitro tivesse uma atuação mais decente – afinal, é sempre melhor botar a culpa no juiz do que nas próprias deficiências.

Honrando a estátua de Themis, nossa Justiça é cega, tristemente cega. Para meu gosto pessoal, eu até preferiria que ela enxergasse um pouquinho, para olhar além do convencional e compreender suas próprias mazelas. Dentre as quais, garanto, não está a intenção de proteger os ricos.”

(Foto: O Globo)