Neste 26 de abril o patropi comemora o Dia do Goleiro. A data foi escolhida como homenagem ao lendário arqueiro Manga, que completa hoje 74 anos de idade. Reproduzo abaixo, com alguma modificações, um texto antigo que escrevi em homenagem aos goleiros. Uma ode, enfim, aos que ganham a vida debaixo dos paus e ao frango nosso de cada dia.
Albert Camus disse certa vez que nada o ensinou mais na vida do que a experiência de ter sido goleiro. Arrematou a reflexão com célebre sentença: O que eu finalmente mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol. Vladimir Nabokov, por sua vez, definiu o arqueiro como a águia solitária, o homem misterioso, o último defensor.
O grande Gilmar dos Santos Neves, goleiro do escrete canarinho campeão das copas do mundo de 1958 e 1962, considerava que um dos atributos para a formação de um bom goleiro era tomar pelo menos um frango inacreditável, de deixar as penosas soltas no ar por um bom tempo.
Marcos Carneiro de Mendonça, o fitinha roxa, que defendeu o Fluminense e foi o primeiro arqueiro da seleção brasileira – campeão da Copa Roca de 1914 e dos Sul-Americanos de 1919 e 1922 – se gabou durante anos de nunca ter falhado. Um dia, feito filósofo cartesiano na grande área do improvável, experimentou o frango.
Marcos acreditava numa tal de teoria da cobertura dos ângulos, receita infalível para evitar gols. Com toda a teoria a lhe garantir a segurança debaixo da baliza, foi traído pela soberba em um jogo entre o Fluminense e o Vila Isabel. Em certa altura da peleja, que ia morna, o zagueiro Chico Netto atrasou a bola; o keeper se abaixou desatento e deixou a criança passar por entre seus dedos. Foi o gol que deu a vitória ao Vila e impediu o tricolor de ganhar o título de 1918 invicto.
Waldir Peres tomou um frango de tragédia grega na Copa do Mundo de 1982, na vitória do Brasil contra a União Soviética. Um meia atacante soviético arriscou um chute da intermediária. Peteleco inofensivo. Waldir preparou-se para a defesa com a confiança de um jovem operador do mercado financeiro. Se esqueceu apenas da bola, que passou caprichosa, feito a mulher faceira e inatingível, ao lado do seu corpo. Mais do que um frango, uma granja inteira.
E o que dizer de Moacir Barbosa, o homem mais injustiçado desse país? Barbosa, o gigante, está na história como o frangueiro do frango que nem frango foi. Condenado à pena de vida, viu o mundo ignorar suas defesas milagrosas e lembrar apenas do gol de duzentos mil silêncios.
Pois eu digo que o frango é a redenção do futebol e a metáfora mais poderosa das coisas da vida. É a antítese do eu sou foda, que tantos boleiros andam a vociferar na comemoração de um gol. É a mais acabada demonstração de que o homem pode falhar sob o peso desgastante da batalha.
O frango é a prova de que debaixo das traves não está a máquina, mas o homem humano, aquele da travessia, que não sabe bem se os deuses e os diabos ouviram seu chamado solitário na noite grande. O sertão, lugar de todos os desafios, é a pequena área.
É ele – tragédia do goleiro – a mais bela demonstração estética da fraqueza humana. Certos frangaços deveriam estar expostos em fotos, vídeos e pinturas; nos museus, praças e ruas, a nos lembrar: somos falíveis, camaradas. Pedagogia de bola e gol.
Memento mori – lembra-te que és mortal. A saudação entre os trapistas cristãos deveria ser o mote maior do grande goleiro. Cada Marcos Carneiro de Mendonça, monumento ao homem infalível, deveria ter ao seu lado um zagueiro que, a cada defesa, cochicharia:
Memento mori. És apenas um mortal. Vem aí o próximo chute, e outro, e outro…
É por isso que, dado a engolir uns gols inacreditáveis de quando em vez, execro os que ficam gritando que são fodas e elevo essa prece pagã a todos os goleiros da história do futebol que tenham, entre prodígios debaixo das traves, tomado seus frangos.
É redentor que cada homem, ao menos uma vez na vida, tenha a plena consciência de sua humanidade e grite aos maracanãs lotados de paixão e mundo:
– Eu sou um fodido!
São esses que entrarão no reino dos céus, onde certamente haverá grama verde, traves, chuteiras, luvas e bolas.
Abraços

11 Replies to “BENDITOS GOLEIROS (UMA ODE AO FRANGO)”

  1. Só você e Diego para já estarem pensando no Orum, podem terem certeza lá temos grama verde, trave, chuteiras, luvas, bolas enfim muitos campos de futebol.

  2. O frango é o que separa os goleiros homens dos goleiros meninos. Quando o goleiro levanta após o frango tomado com altivez e segue fazendo suas defesas magistrais, podemos passar a confiar.

  3. Mestre,
    Cacete! Tu tiras leite (com bom teor de proteina) de pedra.
    Ri pra burro. Neste mundo de Ronaldos, Cristianos-tambem Ronaldo, Beckhams, etc. você mostrar o ser goleiro e principalmente, ligar ao ser humano. É fantástico,
    me lembrei de uma curta e excelente entrevista do Oscar, o grande arquiteto, que finalizava dizendo: Nós ( humanos ) somos uns fodidos.

    grande abraço

    Jairo

  4. O Manga da foto correu do grande João Saldanha da sede de Gal Severiano….uma frango financeiro dizem foi a razão…

  5. “São esses que entrarão no reino dos céus, onde certamente haverá grama verde, traves, chuteiras, luvas e bolas.”

    Grama, inclusive, naquela pequena parte da grande área onde os goleiros passam a maior parte do tempo!!!

  6. Muito bom como sempre Simas,mas como voce mesmo colocou nesse texto, a vida não é só sucesso nem rasgação de seda. Como um discreto, mas assíduo leitor do seu blog, estou sentindo falta de uma frequencia um pouco maior das postagens e de textos novos…mesmo que esses requentados sejam bons…

    abração,
    Pedro

  7. ANÔNIMO;

    É verdade que o Manga correu do João, entretanto o Seu Saldanha estava com um “treisoitão”, dizem que o cara pulou um muro de 3 metros.

    Abraços
    Jairo

  8. Belo texto, como sempre. Mas agora me lembrei daquele sujeito que andou vestindo a 1 do Botafogo e tomou alguns dos mais inacreditáveis frangos jamais engolidos na história da humanidade. Nem me lembro de como ele se chamava, melhor assim – acho que tinha nome duplo. Soube que anda em Portugal, parece que montou uma granja por lá.

    abs, Molica

    (e o alvinegro, já nasceu?)

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