Hoje a coluna vem com um samba que nem é um dos maiores da história de Padre Miguel, mas que representa um desfile histórico – e, por que não dizer, revolucionário.
Atendendo à sugestão do leitor Emerson Braz, o tema de hoje é o fantástico “Tupinicópolis”, apresentado pela Mocidade Independente de Padre Miguel no carnaval de 1987.
Revelado no Império Serrano  – trazido pelo também carnavalesco e diretor de carnaval Ernesto do Nascimento – o carnavalesco Fernando Pinto (abaixo) era considerado um dos talentos mais revolucionários do carnaval carioca.
Campeão em 1972 na escola da Serrinha, com “Alo alo, Taí Carmem Miranda”, o artista era considerado uma estrela em ascenção. Trabalhou na escola de Madureira de 1971 a 1976 e em 1978.
Foi contratado pela Mocidade Independente para o carnaval de 1980 e deu uma nova cara à escola, com enredos delirantes, criativos e absolutamente geniais. Originalmente tropicalista, em 1985 chega ao ápice da carreira em um carnaval ao mesmo tempo tropicalista, futurista e extremamente “clean”: “Ziriguidum 2001”. Garoto que eu era, jamais me esquecerei da comissão de frente daquele ano formada por astronautas empunhando a bandeira do Brasil.
Fica afastado em 1986 devido a desentendimentos com a direção da escola de Padre Miguel, e a escola não obtém um bom resultado com um enredo sobre asssombrações, crendices e coisas correlatas.
Então para o carnaval de 1987 o carnavalesco retorna à escola e propõe um enredo alegórico, onde os índios “ganham” uma cidade própria, um país independente. Estava criada “Tupinicópolis”.
Fernando Pinto imaginou uma cidade voltada ao imaginário indígena, a uma nova cultura inspirada nos povos da floresta, a um novo tropicalismo. Como podemos ver na sinopse do enredo:
Sinopse:
“O enredo Tupinicópolis tem no reaproveitamento da cultura da civilização indígena brasileira seu principal objetivo e conteúdo. Utiliza o termo tupiniquim não somente para designar uma tribo, mas também como um coletivo indígena e principalmente para traduzir uma filosofia típica nacional; o Tupiniquismo: De tudo que é ou passa a ser tupiniquim. Do ato de Tupiniquizar. Tupinicopolizar.

Tupinicópolis, o carnaval, é a visualização de uma grande metrópole indígena. Tupinicópolis, a taba de pedra. É um carnaval de ficção científica tupiniquim, retro-futurista, pós indígena. O New Eldorado.

Tupinicópolis tem sua pseudo-origem baseada na justa e real demarcação das terras indígenas. Nessas terras, ricas terras, foram descobertas riquezas naturais infinitas, que foram comercializadas e industrializadas pelos próprios índios. E as ocas se multiplicaram e as tabas se agigantaram e assim nasceu Tupinicópolis; a lendária cidade índia do Terceiro Milênio.

O desfile segue o cotidiano da cidade. Dia, noite e dia, enfocando o dever, o lazer, o prazer dos tupinicopolitanos. E o lixo.

O carnaval utiliza a forma e linguagem da própria literatura indígena, onde os índios convivem e se relacionam com os animais, conduzindo, assim, o carnaval para uma empostação fabulista que dá mais tropicalismo e brasilidade ao espetáculo.

A arte indígena brasileira é revisitada e revivida na estética pós-Marajoara Tupinicopolitana. A moda é o Tupi Look. É a Era do Tupi Power. É a cultura Tupiniquim falando para o mundo via Tupinicópolis.”

Perceba o leitor que, ao contrário dos imensos textos a que vemos hoje em dia, a sinopse do enredo era curta e permitia aos compositores criar em cima do enredo, sem seguir aquela receita de “musicar a sinopse” ou ter a sua liberdade criativa engessada.
Notem também que havia a preocupação com a questão da demarcação das terras indígenas. No enredo, as riquezas naturais nas terras demarcadas e preservadas permitem à Tupinicópolis crecer economicamente e desenvolver-se.
O samba escolhido, de autoria de Gibi, Chico Cabeleira, Nino Batera e J. Muinhos e defendido pelo saudoso Ney Vianna, optou pelo caminho de comparar o que seria uma cidade indígena às modernidades da vida citadina de então. Ainda faz uma blague com o cacique Raoni, líder indígena em voga no noticiário àqueles tempos.
A Mocidade Independente seria a oitava e última escola a desfilar naquela segunda feira de carnaval, na verdade manhã de terça feira, 03 de março.
Aquela fora uma noite bastante forte de desifles, com grandes apresentações do Império Serrano, da Unidos de Vila Isabel – com o único samba sem rimas da história dos desfiles de escolas de samba – e da Portela, outra que apresentara um samba extraordinário – Estandarte de Ouro daquele ano.
Mas o carnavalesco da escola da Zona Oeste mostrava que não estava para brincadeira. Sua cidade indígena tinha tudo o que um país precisava: moeda, indústria, comércio, entretenimento.
A escola ia passando e se via algo absolutamente novo, revolucionário, ápice de uma trajetória iniciada em 1980 na escola. Criatividade em estado puro, inovação, inteligência e ousadia. Isto era Fernando Pinto, esta era a marca da Mocidade Independente naqueles tempos: liderança e vanguarda.
Nas fotos que trago aqui podemos ver sacadas geniais como o tanque em formato de tatu (acima) e a citação à Zona Franca de Manaus e suas motocicletas (abaixo). No carro em que aparece a moeda (segunda deste post) há uma brincadeira mencionando que “1 guarani” (a moeda indígena), valia mais que 500 cruzados, com a efígie de Villa Lobos. Trocadilho óbvio com a ópera de mesmo nome, de autoria de Carlos Gomes.
Seu desfile apresentaria dois grandes senões: o samba, inferior a de outras concorrentes, e o segundo casal de mestre sala e porta bandeira, que desfilou sem chapéu. No vídeo que abre este texto podemos ver a revolta do comentarista Fernando Pamplona com o fato.
Em um ano de desfiles de altíssimo nível, a Mocidade Independente saiu da Marquês de Sapucaí como uma das grandes favoritas ao título, ao lado das já citadas Portela, Vila Isabel e Império Serrano. Também eram apontadas, com menores chances, o Estácio de Sá e o Salgueiro.
Pois é. Em um resultado contestadíssimo – e, dizem os mais antigos, “de cartas marcadas” – a Mangueira conquistou o campeonato, um ponto à frente da Mocidade Independente de Padre Miguel e três acima de Portela e Império. A Vila Isabel parou apenas em um inacreditável sétimo lugar, empatado com o Salgueiro.
O resultado foi tão escandaloso que a Mangueira foi campeã com um samba sobre o poeta Carlos Drummond de Andrade que em seu refrão rimava “achei” com “imaginei”, de uma pobreza poética indigna do homenageado. Foi tão injusto quanto 1999 e 2003, outros resultados absurdos e inexplicáveis que tivemos recentemente.
O que ninguém imaginava naquela tumultuada Quarta Feira de Cinzas é que Tupinicópolis seria o “canto do cisne” de Fernando Pinto. O genial artista faleceria precocemente aos 42 anos em um acidente de carro em novembro daquele 1987, após um ensaio da escola.
O carnaval de 1988 ainda foi executado de acordo com as instruções deixadas pelo carnavalesco, mas sem o mesmo brilho. Era o fim de uma era brilhante, que deixou muitas saudades em quem gosta dos desfiles.

Vamos à letra do samba, que pode ser ouvido em sua versão de estúdio acima e, aqui baixado em uma versão ao vivo. É uma samba de estrutura diferente, curto e com nada menos que quatro refrões – bem diferente da pasteurização de “refrão, dez linhas, refrão, dez linhas” dos sambas atuais.

“Vejam
Quanta alegria vem aí
É uma cidade a sorrir
Parece que estou sonhando
Com tanta felicidade
Vendo a Mocidade desfilando
Contagiando a cidade

E a oca virou taba
A taba virou metrópole
Eis aqui a grande Tupinicópolis

Boate Saci
Shopping Boitatá
Chá do Raoni
Pó de guaraná

No comércio e na indústria
No trabalho e na diversão

É Tupi amando este chão

Até o lixo é um luxo
Quando é real
Tupi Cacique
Poder geral
Minha cidade
Minha vida
Minha canção
Faz mais verde meu coração

Laiá, laiá, laiá, laiá
Lá, lá laiá, lá, laia, lá

Este ano, a Renascer de Jacarepaguá trouxe um carnaval inspirado neste enredo da Mocidade, chamado “Aquaticópolis” – de autoria de Paulo Barros e Wagner Gonçalves. Embora muitos discordem, em minha opinião foi um desfile que lembrou Fernando Pinto, com referências adequadas e muito criativas.

O leitor poderá tirar as suas próprias conclusões nesta coluna: este desfile da Renascer será o próximo samba enfocado nesta série.

3 Replies to “Samba de Terça – "Tupinicópolis"”

  1. Muito show, Migão!

    Na próxima terça, quando vc postar sobre o desfile e o samba da Renascer em 2010, postarei aqui a letra do samba que fizemos para aquele ano. Chegamos na final, mas a escola optou por uma outra linha, já que nosso samba descrevia bastante o enredo proposto.

    Sobre Fernando Pinto, qualquer coisa que a gente tente falar por aqui será minúsculo perto do talento desse cara genial, que nos deixou tão cedo.

    Abraço!

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