Escrevi em novembro de 2006 um texto que – relendo hoje percebo com mais clareza – de certa forma sintetiza meu olhar sobre o Brasil e o tipo de história que me agrada estudar e contar. Retomo abaixo, com grandes modificações, o texto em questão, marcando o início do rufar dos tambores nesse espaço em homenagem ao centenário da Revolta da Chibata.  
Não sou adepto de uma história que priorize a apologia dos grandes feitos e a biografia dos heróis ungidos por essa perspectiva. Não me convence e não me seduz. Serei mais claro. O que se passou, por exemplo, durante a Primeira República na zona do Mangue, entre garrafas de cerveja , conhaques vagabundos e delírios suicidas de velhas putas, me interessa mais que as tramóias urdidas nos gabinetes presidenciais, abastecidas, diga-se, por litros de café-com-leite e cafetinas de luxo. Um samba de Noel Rosa me instiga mais como documento a respeito do Brasil dos anos 30 do que um discurso do Ministro do Trabalho. A ginga de mestre Bimba numa roda de capoeira diz mais sobre o Brasil que me interessa do que o andar marcial de um marechal de campo. 
Pauto a minha concepção de história, a minha aventura como professor da matéria e o meu olhar descaradamente parcial sobre o Brasil na velha lição de um ponto de candomblé de caboclo: Uma é maior / outra é menor / a miudinha é que nos alumeia… Pedrinha miudinha de Aruanda êh… A pedra miúda é que nos alumeia, conforme o toque da cabula. As pedras grandes estão aí, demasiadamente visíveis, mas são as miudinhas que guardam o segredo. Exemplifico abaixo.
Fiz referência no primeiro parágrafo ao Mangue para falar de um evento épico, a Revolta da Chibata de 1910, e de um personagem mais épico ainda. Não, meus caros, não me refiro ao marinheiro João Candido, o líder do movimento contra os castigos corporais na marinha de guerra do Brasil. Desse falarei em breve e em tom descaradamente apologético. Basta, por enquanto, dizer que meu time de botão chama-se Esporte Clube Marinheiro João Candido, evidente sinal do que sinto a respeito do mestre-sala dos mares.
A personagem em questão atende pela alcunha de Flor da Noite. Isso mesmo. Flor da Noite era o nome de guerra de uma das prostitutas do Mangue que aderiram à causa dos insurretos da Armada durante o furdunço de 1910.
Quando a revolta dos marinheiros explodiu e as balas dos canhões começaram a zunir pelos céus da Guanabara, as distintas famílias da elite carioca mergulharam no pânico mais profundo e zarparam em direção à serra fluminense. Segmentos ds camadas populares, porém, manifestaram claríssima simpatia pelo trololó promovido pela marujada. Assim que se espalhou pela cidade a informação de que os rebeldes talvez estivessem sem mantimentos para manter a rebelião por muito tempo, houve fabulosa mobilização para abastecer os insurretos com frango assado, farofa, marafo e quejandos. Tudo isso em quantidade suficiente para matar de inveja os apóstolos que escreveram sobre o milagre cristão da multiplicação dos peixes.
Foi nesse clima de mobilização popular que algumas meninas do Mangue resolveram prestar a contribuição da zona ao movimento. Demonstrando um espírito de liderança fora do comum, Flor da Noite – como uma Ana Néri do baixo meretrício – lembrou-se de uma máxima das sagradas escrituras: Nem só de pão vive o homem. Os marujos precisavam da garantia de que poderiam, também, saciar os desejos impronunciáveis da carne. A boa e velha sacanagem.
Imaginem a cena. As meninas, qual uma infantaria de pasionárias, rumam ao cais do porto com a altivez magnífica das grandes revolucionárias e fazem chegar ao comandante-em-chefe da esquadra do povo, o Almirante João Candido Felisberto, a garantia de que os serviços do Mangue estariam colocados a disposição dos marinheiros em caráter permanente e, evidentemente, gratuito. Eis aí o verdadeiro batalhão de polacas e mulatas que os mestres Bosco e Blanc transformaram em samba.
Quantas eram? Existiram de fato? Como se chamava a Flor da Noite? Aconteceu mesmo essa marcha das putas? Essas são exatamente as perguntas mais irrelevantes sobre o evento. Todas as flores da noite são, mesmo que não saibam disso, adeptas da rebelião da marujada.
Ilumino com mil velas de sete dias o altar da pátria (a pátria minha do poeta, entre os pés de jabuticaba e os choros de Pixinguinha) em louvor permanente e absoluto às meninas – muitas delas velhas e acabadas, mas sempre meninas – que, lideradas por alguma Flor da Noite, cerraram fileiras ao lado dos rebeldes da Guanabara. São elas, e não as milionárias da Daslu, as dondocas de condomínios de luxo ou as anoréxicas modelos que infestam o mundo da moda, que ficam como exemplos das mulheres de um Brasil que ainda precisa quebrar muitas chibatas para ser o país que a gente quer. Por elas, e para elas, abrirei comovido a primeira cerveja do dia, às margens do rio Maracanã e do meu imaginário cais.
Abraços

6 Replies to “PARA TODAS AS FLORES DA NOITE – CENTENÁRIO DA REVOLTA DA CHIBATA”

  1. LULA
    Maravilha, tudo que você escreve imediatamente nos transporta a epoca e sentimos uma vontade louca de termos vivido aqueles tempos. Tenho um previlegio sobre os jovens conheci o “Mangue” depois “Vila Mimosa”, passeava de Jipe com Jorge levando o papai, Salvador, João para conhecerem as “meninas” lindas maravilhosa daquela epoca. Beijos

  2. Prezado Simas,

    Ser professor de História é um sonho que acalento desde a adolescência. Só agora, aos 37 anos, depois de uma faculdade na área de Biologia, me inscrevi e vou prestar no próximo dia 4 o vestibular para o curso de Licenciatura em História do Consórcio Cederj. Gostaria de dizer que você, professor, tem grande responsabilidade nessa minha decisão, pois sua visão instigante da história do nosso país é justamente a que eu quero ter condições de passar para os nossos jovens. Continue assim.
    Agradecerei sempre pela inspiração.

    Abraço.

    Anderson Couto

  3. Oi, Simas,
    gostei muito da sua postagem =) E espero que goste da minha também, sobre o mesmo tema, que segue a orientação de falar sobre aspectos pouco conhecidos da Revolta dos Marinheiros, presentes em um romance de estilo modernista do saudoso Moacir Lopes (que morreu um dia antes do centenário do levante…)
    Evoé (e não Carpe diem)
    Isabela Escher Rebelo.
    PS: O link do post é http://olivroestanamesa.blogspot.com/2010/12/uma-historia-mal-contada.html

  4. Simas,
    vim aqui agradecer a presença no meu blog, “O livro está na mesa”. Comentários como o seu, meu eterno professor, me inspiram a continuar publicando nesse país em que poucos gostam de Literatura…
    Além disso, quero que saiba que, apesar de você não precisar de publicidade de um blog ainda tão recente, mesmo assim recomendei aos meus leitores esse espaço. Afinal, quero que eles tenham o mesmo prazer que eu ao te ler…
    Feliz Natal!

  5. Olá Luiz,
    Gostei muito do seu post. Também sou professora e tenho me dedicado a pesquisar processos educativos consolidados na prática da prostituição. A convivência em campo de pesquisa tem demonstrado que, realmente, existem muitas prostitutas que não se conformam com a posição de vítima e lutam cotidianamente para buscar um país melhor e mais justo para todos.
    Parabéns pelo texto!
    Fabiana R Sousa
    http://grupodeestudostrabalhosexual.wordpress.com

  6. Sempre bom relembrar heróis que ajudaram a construir a concepção de Brasil a qual desfrutamos hoje.
    Mais importante ainda tratar-se de preconceito, pois apesar de esbanjar-mos a imagem de unido, nosso passado arcaico se rematerializa constantemente no dia a dia. Muito legal.

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