O Jornal O Globo resolveu, definitivamente, apostar na ideia de que a solução para os problemas urbanos do Rio de Janeiro é mais simples do que se imagina: basta transformar a cidade em uma imensa casa do Big Brother Brasil, em que todo mundo fuxica a vida de todo mundo, o cotidiano se transforma em um espetáculo midiático, o dedo-duro é elevado à categoria de cidadão exemplar e a sensação do medo é usada como poderoso instrumento de controle social. O discurso do jornal – em nome do interesse coletivo – tão somente reforça o individualismo mais tacanho que inviabiliza a urbanidade.
A última investida do jornalão é sintomática. O Globo criou uma conta no twitter para que o carioca denuncie  ilegalidades que vão desde carros estacionados de forma irregular até barraquinhas de cachorro quente, botequins e  bancas de flores que ameaçam o incontrolável desejo conservador da cidade-enfermaria. O polemista, advogado e centroavante carioca  Eduardo Goldenberg já desancou aqui  , com propriedade, os aspectos jurídicos da coisa e a histeria coletiva  dos volantes de contenção.
Vou insistir mais uma vez, por vício de formação e clamando feito um João Batista no deserto, que as reflexões sobre os problemas urbanos do Rio de Janeiro ( e de qualquer cidade ) devem ser feitas em uma perspectiva que encare a urbe como um organismo vivo feito de história, lugares de memória, espaços de conflito, instâncias de urbanidade, relações tensas e intensas entre os diferentes grupos que habitam a aldeia, etc. Darei meu pitaco, nessa dimensão, sobre o twitter alcagüete (mantenho o trema) que o jornal criou e outras coisas mais.
Os primeiros governos republicanos criminalizaram as diversas manifestações da cultura popular no Rio de Janeiro – quase todas marcadamente vinculadas às áfricas que existem nas nossas ruas. Jogar capoeira passou  a ser crime no Código Penal de 1890, os terreiros de macumba foram grosseiramente reprimidos e a posse de um pandeiro era mais que suficiente para a polícia enquadrar o sambista na lei de repressão à vadiagem . Os intelectuais do período – com raras exceções – pregavam a necessidade de se promover um branqueamento da população brasileira; única garantia de civilizar as nossas gentes. Chamarei atenção para esse fato quantas vezes for necessário.
Quando a escravidão foi pra cucuia, houve uma deliberada política de atrair imigrantes europeus para cá. Não há qualquer registro de iniciativa pública que tenha pensado na integração do ex-escravo ao exercício pleno da cidadania e ao mercado formal de trabalho. A ideia era estimular a imigração de brancos do velho mundo. O modelo de abolição da escravatura no Brasil foi descrito e analisado em 1.500 teses acadêmicas. Todas elas podem ser resumidas em uma única frase do samba da Mangueira de 1988: “…livre do açoite da senzala / preso na miséria da favela” (Hélio Turco e Jurandir – 100 anos de liberdade, realidade ou ilusão).
Uma das primeiras leis de estimulo à imigração no período falava que o Brasil abria as portas, sem restrições, para a chegada dos imigrantes europeus. Africanos e asiáticos, porém, só poderiam entrar com autorização do Congresso Nacional, em cotas pré-estabelecidas. Traduzindo o babado: que venha o imigrante, contanto que seja branco e cristão. Mais do que encontrar mão de obra, a imigração no Brasil foi estimulada como meio de branquear a população e instituir hábitos europeus entre os nossos. O negro foi tolerado no Brasil apenas enquanto o meio de transporte para chegar às nossas praias foi o navio negreiro, assim como certos segmentos das elites (não todos, que fique claro) toleram as camadas populares porque precisam de empregadas domésticas, babás, porteiros, lavadores de carros e catadores de lixo.
É exatamente dentro desse contexto racista e discriminatório do pós-abolição que começa a ser gerada a reação a essa política pública elitista: a cultura da fresta como meio de reinvenção da vida e construção de uma noção de pertencimento ao grupo e ao espaço urbano.  A ilegalidade no Rio de Janeiro, do ponto de vista histórico, foi portanto a opção que um estado racista e excludente deu à maioria da população da nossa cidade. Foi o poder público que não quis incluir.
Desnecessário dizer que quando falo em raça não uso o termo no sentido biológico ( pois que se sabe que raça como conceito biológico não existe). Uso raça no sentido social, histórico, político e econômico. Raça não existe nos laboratórios de biologia  mas continua existindo nas cadeias, nas salas de tortura, nas grandes empresas e nas caçambas dos camburões.
Quando ouço falar, portanto, em choque de ordem, proibição de cerveja no Maracanã, ordenação das torcidas nos estádios,  remoção de favelas e quejandos, me ocorre o seguinte: As pessoas que atuam na mídia mais poderosa e os responsáveis pelas políticas públicas têm alguma dimensão sobre o que significa, do ponto de vista cultural, a relação entre legalidade e ilegalidade por aqui? A coisa está sendo pensada apenas em termos criminais, quando até as pinturas rupestres da Serra da Capivara sabem que o buraco é mais embaixo.
Incluir é simplesmente enfiar a polícia no morro, reprimir a violência, colocar o moleque pra tocar violino em orquestra de música clássica e estimular o garoto a  praticar esportes? Isso pode ser um passo necessário (acho, com uma outra ponderação, que é) mas tento ir  além e escapar da reflexão imediatista que a histeria da sociedade do espetáculo e do consumo acrítico da notícia impõe. E o além é dar a esse garoto o direito de conhecer de onde vem sua cultura, seus modos de sentir, amar, comer, se expressar, conviver na rua, respeitar o mercado [o de Exu, e não o financeiro] e, sobretudo, reconhecer que nós tentamos embraquecer o negro mas foi ele que nos empreteceu e nos civilizou poderosamente. Isso se faz com Educação maiúscula, e não com a reprodução pura e simples nos bancos de escolas de conteúdos desprovidos do contato com a realidade de quem aprende.
O povo bateu tambor em fundo de quintal, jogou capoeira, fez a sua fé no bicho, botou o bloco na rua, a cadeira na calçada, o despacho na esquina, a oferenda na mata, a bola na rede e o mel de Oxum na cachoeira – já que sem um chamego acolhedor ninguém vive direito. Excluído dos salões do poder, o carioca inventou o ano novo na praia, zuelando atabaques em louvor a Iemanjá, Janaína, Yara e Kianda. Colocamos na Virgem da Conceição e na Senhora dos Navegantes os seios fartos de deusa africana.
O povo do Rio teve que inventar a cidade [e a cidadania] que lhe foi covardemente negada e criou esse modo de ser que atropela convenções, confunde, seduz, agride e comove. Qualquer tentativa de ordem pública deve partir desse pressuposto e tramar, aí, instâncias de interlocução e o fomento de diálogos entre a população e o poder instituído. Há que se perceber, nos meandros do legal e do ilegal, a maneira que o carioca encontrou, ao longo de sua história, para subverter a escuridão dos tumbeiros, a caça aos índios tamoios e a ferida aberta pelos trezentos anos de chibata. Nós somos o povo que bateu tambor na fresta e criou a subversão pela festa.
Qualquer debate que ignore isso é provisório, equivocado e, como sempre, excludente. A leitura meramente institucional ou criminal de um processo que, como qualquer outro, é histórico e cultural, empobrece a discussão, estimula o erro e aponta soluções imediatistas que não se sustentam em um prazo mais longo.
Eu quero o convívio  urbano e as ruas pacificadas. E rua pacificada é rua cheia, não é rua vazia de gente onde vez por outra se escutam tiros ou onde prevaleça a bandidagem mais deslavada ou a Ordem do Choque.  Os mocinhos de O Globo, que encaram a cidade fomentando o individualismo mais tacanho, o olhar enviezado e o clima de desconfiança entre seus habitantes, prestam um desserviço. A política pública, estimulada pela mídia mais reacionária e imediatista, que negue nossa peculiaridade e atue pelo viés exclusivo da repressão é fadada ao mais retumbante fracasso. Peço apenas isso: que se reflita sobre a atuação e o papel do Estado sem se perder a dimensão profunda do que nós, os cariocas, somos e construímos no tempo e no espaço. Administrar uma cidade, falar sobre uma cidade, escrever sobre ela, propor políticas públicas, implica conhecimento, reflexão, amor e interação com os seus modos de recriação da vida e produção de cultura, função que nos faz humanos e nos redime do absurdo da morte.
Eu continuarei daqui, dessa parte que me cabe no latifundio da grande rede, a  bradar louvores pela civilização peculiar que João Candido, Zé Pelintra, Pixinguinha, Paulo da Portela, Cunhambebe, Cartola, Noel Rosa, Bide, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, Tia Ciata, Meia Noite, Madame Satã, Lima Barreto, Paula Brito, Marques Rebelo, Manduca da Praia, Silas, Anescar, Dona Fia, Fio Maravilha, Leônidas da Silva, Di Cavalcanti, os judeus da Praça Onze, a pomba gira cigana, a escrava Anastácia, o Cristo de Porto das Caixas, o Zé das Couves, o vendedor de mate, o apontador do bicho, o professor, o aluno, o gari, os líderes anarquistas da greve de 1919, a Banda do Corpo de Bombeiros, a torcida do Flamengo, o pó-de-arroz, a cachorrada, a nau do Almirante, o Bafo da Onça, o Cacique de Ramos, o Domingo de Ramos, a festa da Penha, a festa na lage e a cerveja criaram nesse extremo ocidente. Com baixaria na sétima corda.
A nossa maresia, conforme mestre Darcy Ribeiro ensinou, traz na asa do vento o cecê das pretas de Angola.
Abraço

11 Replies to “EU SOU DO RIO DE JANEIRO”

  1. Professor, seus textos são soberbos!! Tomei conhecimento de seus escritos (embora com dicção própria, um remix de Ginzburg com Hobsbawn)por meio do blog Buteco do Edu, que sempre acompanho.Uma ótima análise da hiperdimensionada violência no RJ pode ser lida no Conversa Afiada, de PHA.http://www.conversaafiada.com.br/pig/2010/11/23/uma-analise-da-violencia-no-rio-antes-que-a-globo-destrua-o-rio/
    Parabéns pela excelência de caráter, de intelig~encia, etc.

  2. faz lembrar uma lenda peruana que fala de uma cidade onde todos eram felizes. Seus habitantes faziam o que desejavam e se entendiam bem. A exceção era o prefeito, que vivia triste porque não conseguia governar nada. A prisão estava vazia, o tribunal nunca era usado e o tabelionato não dava lucro, pois a palavra valia mais que o papel. Um dia a população foi surpreendida pela presença de operários vindos de longe, que fecharam com um tapume o centro da praça principal e começaram a construir qualquer coisa.
    A população estava curiosa sobre o que estava acontecendo. Martelos cravavam pregos, picaretas escavavam e serras cortavam a madeira. Depois de uma semana, o prefeito convidou toda a população para a inauguração. Com solenidade, os tapumes foram retirados e apareceu uma forca… As pessoas se perguntavam o que aquela forca estava fazendo ali? Com medo, passaram a procurar a justiça para qualquer coisa que antes era resolvida de comum acordo. Recorriam ao tabelião para registrar documentos, colocaram proteção nas portas e janelas da casa e voltaram a escutar o prefeito, com medo da lei. A lenda diz que a forca nunca foi usada, mas bastou sua presença para mudar tudo. Em vez do amor e da amizade, o medo e a desconfiança assumiram o comando.
    http://www.correioriograndense.com.br/correio/edicoes/reportagem.php?cod_rep=5200

  3. RicardO,
    O mestre está com a cachorra ultimamente, de tão inspirado.
    Seus textos nos enchem de bendita munição e inquietação.
    Esta lenda peruana no teu comentário, me faz lembrar CANUDOS, PALMARES E CALDEIRÃO comunidades que viviam assim e o poder constituido, sentindo-se inútil, para elas, as destruiram.

    Jairo

  4. Com correção Simas,

    Temos que perder a porra do medo de tudo, dos bandidos, dos evangélicos e principalmente das elites.

    Amar o Rio é usufruí-lo. Ninguém mais quer ir a Paquetá fazer farofa, por que é coisa de pobre, a macumba sumiu das praias para dar lugar a mega show, poucos fazem piquenique na Quinta, pois tem que gastar nas barracas , levar comida é coisa de farofeiro, praia duro nem pensar , tem que consumir nos quiosques, macumbeiro virou palavrão,neguim tem medo de enfrentar evangélico, não sei por que ??!! Escola de samba pequena ninguém quer ir nem desfilar, os butecos você melhor que ninguém já conhece a história… Ou seja, todo mundo quer glamour, quer ser aceito, quer ser globalizado e perde a porra da identidade.

    Sem contar que negão , não pode ser mais negão, viado não pode ser mais viado, um saco…

    Se for pautar minha vida pelo comando de bandido ou de choque de ordem ou de igreja, tô fudida, não faço nada.

    Fico aqui no meu cantinho, faço o que quero e vou onde quero, claro que você não vai me ver passando as três da manhã na Avenida Brasil, mas te garanto que dou meu jeito pra ver meus parentes em Vicente de Carvalho e chegando lá o “couro come” , por que afinal de contas , quem é bamba não bambeia…

  5. Simas, parabéns pelo texto, considero-o definitivo.

    A batalha do povo carioca é nesse sentido, pela rua, contra o trancamento das grades nas casas, enfim o povo vive e (re)cria o ambiente da rua. Esta luta é nossa!

    Forte abraço,
    Victor

  6. Olá!

    Descobri seu blog por acaso, fazendo uma pesquisa pela internet. E que descoberta maravilhosa, seu blog é muito bom, excelente na verdade!

    Tanto que me tornei seguidor para apreciar melhor os textos e atualizações.

    Gostei bastante deste texto e sobretudo sobre o que disse a respeito da educação e inclusão. Educação é algo que requer um grande investimento ( EDUCAÇÃO maiúscula) com resultados que só serão melhor apreciados e sentidos a médio e longo prazo. Mas como vivemos em uma sociedade consumista e voltada para as aparências ( “parecer ter” é mais importante do que “ter”, especificamente), muitos projetos de inclusão servem apenas para justificar uma parte da verba ( olha esse bocado de ONG por aí!) e para posar diante dos holofotes ( “Olha, eles estão aprendendo a tocar tambor”. Sei, e depois?)

    O Rio de Janeiro, a cidade do RJ é em parecida a Salvador. A coisa tá feia para esses lados também. Violência não apenas por parte dos traficantes x polícia: violência contra um povo e suas tradições que vem dando lugar a construções de condomínios fechados para a classe média ( detonando os últimos resquícios da mata atlântica na cidade e RMS) e até os empreendimentos mais “populares” já estão nessa de “lazer e segurança tudo em um só lugar dentro do condomínio”.

    Carnaval já era – aquilo que se vê na TV é o exemplo mais perfeito de segregação que existe; felizmente algumas tradições vem sendo mantidas às duras penas e com resistência. Até quando,vai saber.

    E nisso o crack chegou por aqui e com tudo. E tome adolescente decapitada, crianças atingidas por balas em duelos traficantes x polícia, toques de recolher…tá brabo!

    Um abraço e desculpe o longo comentário.

  7. Pois é, Velho. Só pode bradar a repressão e a ordem acima de tudo uma razão que se reconheça superior e queira tudo conformar a sua imagem e semelhança, varrendo para o lixo, para o não-ser tudo o que lhe escapa. Deliram os que confundem a repressão à violência que destrói e nega a civilização à repressão às pequenas transgressões, à informalidade e ao “jeitinho”. Aliás, quanto menos espaço para a malandragem, para o informal, para a fresta, mais violência. Negada a única possibilidade de sobrevivência e reinvenção, a saída para os excluídos é o enfrentamento direto e violento do sistema. Óbvio ululante.

  8. Descobri vc por acaso, um e-mail sobre o politicamente correto. Adorei, ja nao aguento mais a historinha de PC, das “elite”, dos “pobre”, ta tao cansativo esse discurso meia boca. No meio disso tudo encontrei voce.
    Continue em frente, mas por favor, estadunidense, afro descendente, etc e tal NAO!!!!!
    Beijocas

  9. Acho que eh o contrario do individualismo. Quando as pessoas se preocupam com o que acontece para alem das suas casas, ou seja, a rua, o que se promove eh a preocupacao com o coletivo. Reprimir “carros estacionados de forma irregular até barraquinhas de cachorro quente, botequins e bancas de flores”, que tomam o espaco do pedestres nas calcadas, eh um ato de cidadania. Ha muito o brasileiro mistura o espaco privado com o publico.

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