A coluna “Samba de Terça” estará um pouquinho diferente até o carnaval. Estarei escrevendo sobre desfiles dos quais participei como desfilante, de modo a motivar aqueles que desejem enfrentar fantasiados a Marquês de Sapucaí.
Com isso, até a terça feira antes do carnaval, 09 de fevereiro, teremos sempre sambas e desfiles posteriores a 2001 – ano em que comecei a participar como desfilante.
Obviamente, o texto que abre esta “série dentro da série” é o samba com o qual passei pela primeira vez na avenida: Paraíso do Tuiuti 2001, “Um Mouro no Quilombo”.
O leitor mais atento deve estar se perguntando: “como ele estreou pela Paraíso do Tuiuti se é portelense?”
Explico. Eu iria na mesma noite estrear pela Portela, mas optei por desfilar em outra escola naquele carnaval de 2001, antes, a fim de me deixar menos tenso para o “dever cívico” em minha escola de coração. Aliás, fiz algo naquela noite que, decididamente, não recomendo aos leitores: desfilei no Tuiuti, voltei em casa, troquei de roupa e voltei para passar pela Portela. Não façam isso, é loucura. Melhor comprar ingresso e ficar no Sambódromo.
A simpática agremiação de São Cristóvão vinha em um crescimento contínuo e estruturado. Comandada por um grupo de pessoas honesto e que gostava de carnaval, a escola havia surpreendentemente obtido o segundo lugar no Grupo de Acesso A no ano anterior, garantindo, assim, o direito de pela primeira vez em sua história desfilar na Meca do samba, o Grupo Especial.
Foram mantidos para este desfile os principais artífices da ascensão da escola: o carnavalesco Paulo Menezes (estreante no grupo principal), o puxador Ciganerey e o mestre de bateria Thor – que, aliás, hoje é o presidente de direito da escola.
O enredo proposto pelo carnavalesco foi “Um Mouro no Quilombo”, que retratava a aventura vivida por um muçulmano que sofre um naufrágio, é salvo e vem parar no Quilombo dos Palmares. Como diz a sinopse do enredo:
“O enredo do Paraíso do Tuiuti para 2001 é inspirado em um livro, A incrível e fascinante história do Capitão Mouro, de Georges Bourdoukan. Um misto de história – fatos que a História registra – e ficção – coisas imaginadas – sobre a vida de um personagem muito interessante que, por uma série de acasos, acabou tendo participação na História do Brasil.

Vamos contar aqui a história de um mouro que vivia em Granada, na Espanha, e saiu de sua terra para, como manda a religião islâmica, fazer peregrinação à cidade de Meca. Mas, como veremos, estava escrito (Maktub, em árabe) que seu destino seria bem diferente.

1ª parte: O Islamismo

A Espanha tinha estado mais de oito séculos sob o domínio dos árabes. É inegável que a civilização árabe, muito adiantada, deixara suas marcas positivas na Península Ibérica. Granada, capital da Espanha arabizada, era bastante progressista e o nosso herói tinha, portanto, assimilado vários aspectos dessa cultura. Foram importantes marcas da cultura árabe a arquitetura (as mesquitas, com suas formas características do estilo mourisco), a ciência (medicina adiantada), o instinto guerreiro e sobretudo a religião.

O árabe é profundamente religioso. Segue os princípios do islamismo, segundo o qual o destino do homem está traçado por Alah de maneira inapelável, sendo impossível fugir dele. O árabe é conformado, nunca se revolta contra a vontade de Alah. Ao menos uma vez na vida deve ir a Meca, em peregrinação, agradecer a Alah o dom da vida.

Foi justamente para cumprir esse preceito que nosso mouro saiu de Granada, enfrentando toda a sorte de adversidades que as viagens marítimas reservavam na época.

Muitos perigos rondavam os viajantes: tempestades, calmarias (que deixavam as embarcações à deriva às vezes por meses a fio) e a peste. Havia ainda o risco de ser atacado por piratas, que sabiam que os peregrinos levavam à cidade sagrada grande quantidade de dinheiro para ser distribuído aos necessitados, como manda o preceito da religião islâmica.

E foi o que aconteceu ao nosso herói, que teve de usar seu ânimo guerreiro para derrotar os piratas. Saiu com vida, mas ficou isolado no meio do oceano, porque seu navio foi a pique. Desse naufrágio foi salvo por um judeu que estava a caminho do Brasil, onde pretendia estabelecer-se como comerciante, a exemplo de um irmão seu.

Isto a História registra.

Judeus e árabes eram, naquele momento, aliados na Península Ibérica, bem como no Norte da África. Uniam-se para resistir aos rigores da Inquisição, tribunal permanente instituído pela Igreja Católica para julgar todos aqueles que se afastassem de seus cânones. Não foi difícil, portanto, aos dois unirem suas forças para sobreviver.

A Inquisição já chegara ao Brasil, mas aqui ainda era mais branda do que na Península Ibérica. Por isso, o judeu convence o mouro a acompanhá-lo ao Brasil. Antes mesmo de aqui chegar, as religiões e as culturas daqueles dois homens se puseram em contato. Apesar das divergências, mouro e judeu tornaram-se amigos.

Isto a História registra.

3ª parte: A África Negra

O continente africano abriga judeus e árabes. Mas a maior parte de seu território era ocupada pelos negros, que viviam até então em plena liberdade, usufruindo das belezas naturais e da riqueza do solo. Essa situação paradisíaca foi modificada pela ambição de alguns: os belos e altivos habitantes da África negra foram escravizados, perdendo sua liberdade em troca do lucro de uns poucos.

Isto a História registra.

4ª parte: O Brasil Colônia

Quando o mouro e o judeu chegam às costas de Pernambuco, lá encontram a ferida da escravidão negra e se horrorizam diante dela. A primeira impressão, de que estavam chegando ao paraíso, se desfaz: o paraíso se transforma em inferno quando é assolado pela escravidão, que dizima o negro, pela Inquisição, que aterroriza o judeu e o mouro (infiéis, segundo a Igreja católica), e pelo mal-do-bicho, doença terrível que ataca o branco, e que chamaremos aqui simplesmente a peste.

De imediato, o mouro e o judeu percebem que não poderão viver tão tranqüilamente quanto haviam imaginado. Perseguidos pela Inquisição, horrorizados com a ignorância e a falta de higiene reinantes, fazendo grassar a epidemia, e revoltados com as atrocidades que presenciam contra os irmãos negros, acabam tomando conhecimento da existência de um reduto de negros empenhados na resistência, e se vêem forçados a refugiar-se no Quilombo, em terras alagoanas.

Isto a História registra.

5ª parte: O Quilombo

Ao chegar ao Quilombo, nosso herói se surpreende com a vulnerabilidade do lugar: os brancos, donos dos prósperos engenhos de açúcar, pintavam o Quilombo como uma força temível, mas ao chegar lá ele constatou que era muito frágil a estrutura física do local. A força do Quilombo vinha de sua estrutura social: praticavam o escambo, troca de mercadorias que tornava desnecessária a circulação do papel-moeda, viviam comunitariamente sob a liderança de Zumbi, cujo carisma impressionava muito mais do que a força física.

Em Palmares se radicaram também vários indígens, que se identificaram com os ideais de liberdade e igualdade que ali eram cultuados e postos em prática.

O mouro leva para o Quilombo tudo que assimilara em sua longínqua civilização: as táticas de guerrilha na luta contra o inimigo mais forte, a construção de fortificações e de armadilhas, o conhecimento da higiene e da medicina.

O judeu, por seu turno, percebe a necessidade de implantar no Quilombo um sistema educacional, indispensável inclusive ao futuro relato dos acontecimentos. Sem instrução não seria possível escrever a história, deixando a tarefa ao opressor, que tudo faria para difamá-los.

Isto a História registra.

6ª parte: A Guerra

A tarefa de combater e capturar os negros que resistiam no Quilombo foi dada pela classe dominante aos bandeirantes mercenários. Eles formaram milícias no encalço dos fugitivos e sua crueldade não conheceu limites.

Os negros eram numericamente inferiores e menos equipados do ponto de vista bélico. Tinham de suprir essas deficiências usando sua coragem e sua criatividade. Todas as táticas aprendidas com o mouro lhes foram valiosas.

O hábitat natural, a floresta, não era uma aliada, mas também não era adversária. Ela era perigosa: animais selvagens, alguns indígenas hostis que se aliavam aos portugueses contra os quilombolas, e a própria densidade da mata dificultava indistintamente a atuação de uns e de outros.

O enfrentamento entre as partes foi terrível, com ocorrência de atrocidades, traições, tudo enfim que é característico da insanidade das guerras. É surpreendente que o Quilombo tenha resistido tanto tempo e com tanta bravura aos ataques dos poderosos, que tinham a seu favor as leis, o poder econômico, a Igreja, todo o sistema, enfim. Para essa brava resistência muito contribuiu a participação desses dois personagens anônimos.

Isto a História registra.

7ª parte: Meca

O mouro deixou sua pátria para cumprir um preceito de fé: a peregrinação a Meca. Segundo acreditava, estaria no Brasil de passagem. No entanto, aqui ficou, aqui teve um papel importante na construção de um sonho que – este sim – nunca terminou, sobreviveu ao Quilombo: o sonho de educação, de instrução, de higiene, de saúde, de dignidade e de liberdade, que ainda hoje perseguimos

Todo adepto do Islã deve ir a Meca ao menos uma vez na vida. Nosso herói não o fez. Estava escrito que sua Meca era aqui, neste distante Brasil de negros, brancos, índios, árabes, judeus e de quem mais chegar.

Da mesma forma, chega o nosso Paraíso do Tuiuti, em sua peregrinação, a esta Meca do sambista que é o desfile principal, o do Grupo Especial. Minoria, como o mouro, o judeu e o negro, este valente peregrino não abre mão do sonho de justiça e igualdade que acalenta e canta com vigor e alegria imbatíveis.

Isto a História registrará …”
A escola sofreu com a falta de estrutura no período pré-carnavalesco. Seu barracão era embaixo do viaduto de São Cristóvão e a sua quadra, embora reformada, também era bem acanhada. Muitos presidentes de ala eram estreantes no grupo e a escola teve de buscar aumentar seu número de componentes.
O Paraíso do Tuiuti abriu o desfile do Grupo Especial no domingo de carnaval, 25 de fevereiro. A escola sofreu com a inexperiência, cometendo alguns erros típicos da juventude – até carro em ordem trocada entrou. Assim mesmo, foi um desfile bem legal, embalado por um belo samba e que não me canso de cantar a plenos pulmões a cada vez em que ele é “esquenta” da escola.
Minha fantasia era de veludo, quente e o chapéu quase foi decepado pelo ventilador de teto da sala do apartamento onde eu morava. Minha então namorada – hoje esposa – só sabia o refrão do samba. Mas gostei muito da experiência, um desfile solto, alegre e que me permitiu uma estréia muito agradável na avenida. Até hoje gosto muito deste samba, é um dos que possuem lugar cativo em meu coração.
Na apuração, os problemas de estrutura pesaram, e a escola acabou com o décimo quarto e último lugar, retornando ao Grupo de Acesso A, com 260 pontos em 300 possíveis.
Vamos à letra do belo samba, que pode ser ouvido ao vivo aqui:
Autores
Cesar Som Livre, Kleber Rodrgigues, David Lima e Claudio Martins
Puxador
Ciganerey
“Pra agradecer
O dom da vida
O mais sublime dom de Alah
No mar … Um bravo mouro se aventurou
Ao risco de tenebrosas tormentas
Piratas, batalhas sangrentas
Mas naufragou
E o destino lhe sorriu
Nas mãos de um salvador
O trouxe pro Brasil … De Zumbi

Ê Ô Zumbi
Todo o Quilombo … Coragem
É força pra resistir
É fé que vem acudir
É fibra que brota em ti … Palmares

Assim surgiu
O desejo de escrever
A própria história
E quem quiser chegar
Pra constriuir essa vitória
Um povo mais feliz
A meca de um país
Justiça e igualdade

Tu és meu sonho, Tuiuti
Tens um destino a cumprir
É brilhar no carnaval
No desfile principal
Todo o povo a te aplaudir
Te aplaudir”
Semana que vem, o terceiro desfile do mesmo ano, uma história inacreditável: União de Vaz Lobo 2001.

(Agradecimentos: Walkir Fernandes)

3 Replies to “Samba de Terça – "Um Mouro no Quilombo"”

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