Esse espaço está homenageando, nesse período entre o Dia de Reis e a Quarta Feira de Cinzas, o Carnaval brasileiro e seus personagens. Ontem, por exemplo, o destaque foi a Favorita da Marinha, Emilinha Borba. Nosso folião de hoje é outra lenda da festa: Otávio Henrique de Oliveira, o imortal Blecaute.

Nosso personagem nasceu em 1919, na pequena cidade paulista de Espírito Santo do Pinhal. Orfão de pai e mãe, chegou aos seis anos de idade à capital e trabalhou como engraxate e entregador de jornais na Avenida São João. Começou a participar de batucadas, virou cantor da Rádio Difusora de São Paulo e, em 1942, iniciou sua trajetória no Rio de Janeiro. Em pouco tempo tornou-se atração da poderosa Rádio Nacional.

Grande ínterprete de marchinhas e sambas, estourou definitivamente quando gravou no Carnaval de 1949 o ponto de macumba General da Banda, parceria entre o pai de santo Tancredo Silva, Sátiro de Melo José Alcides. O sucesso foi tão grande que Blecaute passou, desde então, a se apresentar como um legítimo general da folia, com uma fantasia repleta de dragonas e alamares. Quem hoje se veste de forma parecida é o ditador da Líbia, o General Mohamed Kadafi.

Os desavisados talvez não saibam que General da Banda é uma das formas do povo da curimba se referir ao guerreiro Ogum. A transformação do ponto de macumba em samba de carnaval, diga-se, só poderia mesmo acontecer com o mais popular dos orixás das macumbas cariocas, o santo guerreiro que gosta de cerveja e feijoada e é irmão dileto de Exu.

Blecaute morreu no dia 9 de fevereiro de 1983, pertinho do Carnaval. Sobre seu enterro eu escrevi, faz tempo, um relato que envolveu meu avô e o Manoelzinho Mota, um cachaça amigo da minha família. O troço parece sacanagem mas é a mais absoluta verdade. A confusão que ocorreu no cemitério virou, inclusive, notícia de jornal. Reproduzo, em homenagem ao monumental Blecaute, o relato sobre o furdunço fúnebre do General da Banda:

A notícia surpreendeu quem conhecia o caboclo e foi dada pelo Niltinho:
– Prenderam o Manoelzinho Mota!
As senhoras e senhores que não conheceram o Manoelzinho não fazem idéia do caráter inusitado do acontecimento. Manoelzinho era um cachaça clássico, morava em uma vila no Lins de Vasconcelos e enchia a caveira de forma industrial. Era, porém, tão agressivo quanto um ataque do Botafogo nos anos setenta
formado por Tuca, Cremílson e Puruca, que fazia em média quatro gols. Por ano.
Como ia dizendo, meteram o Manoelzinho no xilindró. Formou-se, de imediato, uma comissão de notáveis, com decisiva participação do meu avô, ata de fundação e o escambau, pra resgatar o bebum das garras da justa.
A causa da prisão era um clássico – perturbação da ordem pública. O local do delito, o cemitério de São João Batista. Explico.
Tinha morrido, na véspera, o Blecaute, grande cantor, famoso pela gravação do samba General da Banda. Necessário dizer que o Manoelzinho Mota adorava o crioulo. Conhecera o Blecaute na época em que o negão era patrono da Casa do Pequeno Jornaleiro e o Manoelzinho, um deles.
A notícia foi dada pelo Mineirinho:
– Mota, o Blecaute foi oló.
– O Blecaute? Não sacaneia, porra…
– Pois é.
Destruído, envelhecido em barril de carvalho, lá foi o Manoelzinho ao enterro do Blecaute. Deu-se, porém, que o nosso cachaça foi ao cemitério errado. Blecaute estava sendo velado no Caju e o Manoelzinho, sabe-se lá por que diabos e aos prantos, parou no São João Batista.
No que entrou no cemitério e viu uma capela cheia, não teve a menor dúvida: era o velório do Blecaute.
Leitores acreditem. O homem entrou no velório de um certo General Ademir Mourão de Matos, veterano da Revolução Paulista de 1932. Não haveria problemas se, comovidíssimo, o Manoelzinho não resolvesse homenagear o saudoso Blecaute no velório errado.
Nosso herói já entrou na capela berrando:
– Nada de tristeza! Ele só nos deu alegrias. Só nos deu alegrias! Viva o general da Banda!
E começou a cantar:
Chegou General da Banda, Ê, Ê,Chegou General da Banda, Ê, Á…
O mais incrível, o mais incrível. Aos poucos, vários presentes ao velório do ínclito Mourão de Matos, homem mais chegado aos dobrados militares, começaram a acompanhar o Manoelzinho. De repente, o coro ganhou proporções fabulosas. Até os defuntos do São João Batista levantaram das tumbas para cantar:
Mourão, mourão,vara madura que não cai.Mourão, Mourão,cutuca por baixo que ele vai.
A capela virou um baile de carnaval, com gente com dedinho pro alto e outros balacobacos. A família do General, entretanto, não gostou da homenagem. Um primo do falecido foi mandar o Manoelzinho parar e recebeu a resposta cortante:
– Parar? Não fode, porra. Eu amava esse crioulo!
– Crioulo? Respeita o General, seu bêbado de merda!
O pacífico Manoelzinho virou bicho. Pegou a primeira coroa de flores que viu pela frente e afundou no pescoço do primo do General. O tempo fechou. Em cinco minutos ninguém mais sabia quem estava batendo, quem estava apanhando e por que o furdunço tinha começado. A esposa do general desmaiou na hora em que o coveiro recebeu Seu Tranca-Ruas e passou a dar porrada em todo mundo, defendendo o Manoelzinho, que Exu não ia deixar um cachaceiro na mão. No auge do quiprocó, Seu Tranca-Ruas jogou o caixão no chão e um milico amigo do General deu sete tiros pro alto.
No fim das contas, entre mortos e feridos, salvaram-se todos e o Manoelzinho foi em cana. Queriam prender o coveiro, mas quando Seu Tranca-Ruas se identificou, a polícia achou melhor não brincar com o homem e formou-se até fila pra consulta, com a esposa de um coronel recebendo a Cigana e o cacete.
Quando saiu da cadeia, acompanhado pela dileta comissão encabeçada pelo meu avô, Manoelzinho encheu o pote e deu a primeira declaração pública sobre o episódio, para os anais da história do Lins de Vasconcelos:
– Admito tudo, menos uma coisa; um puto qualquer no cemitério me acusou de desrespeitar o Blecaute. Tudo bem que eu desafinei enquanto cantava, mas foi bonito pra cacete. Todo mundo cantou junto. O Blecaute, que Deus o tenha, deve ter ficado feliz.

Evoé! E viva Blecaute, o eterno General da Banda. Patakuri, Ogum!

10 Replies to “BLECAUTE E OGUM NO CARNAVAL – OS GENERAIS DA BANDA”

  1. Salve Simas, Hoje vc se superou!!! ou terá sido o Blecaute que baixou pra contar em prosa, verso e encanteria esta versão do seu Axexê?! Um verdadeiro Carnaval o episódio!!!Parabéns!!! Bjs!

  2. Faço idéia a cara dos canas no momento que o Homem se identificou, sempre tem um mais prudente: Aí esse daí é Seu Tranca-Rua, quem quiser que vá lá e prenda ele.

    Muito boa !!!

    ABRAÇÃO

    RAPHAEL

  3. Fala Simas! Já havia lido sobre o Manoelzinho, se não me engano no antigo blog, esse episódio deve ter sido Phoda!!!
    Aproveitando o ensejo: quando e onde será o lançamento do seu livro em parceria com o Mussa “Samba de enredo: história e arte”?!
    Cordiais Saudações!
    Orlando Rey

  4. Muito bom ! Muito Bom !

    Simas, (mudando o rumo da prosa) você ficou de escolher umas curimbas de Oxossí (Não sei se te lembras) para postar por aqui, podia aproveitar este mes.
    Não me sai da mente…

    “Quem manda nas matas é Oxossi
    Oxossi é caçador, Oxossi é caçador
    Quem manda nas matas é Oxossi
    Oxossi é caçador, Oxossi é caçador
    É na Arunda auê…
    É na Arunda auê…
    Salve os caboclos de Umbanda , é na Aruanda auê…”

    Abraço!

  5. Luis, você é um contador de “causos” a altura de um Luís Fernando Veríssimo e um Stanislaw Ponte Preta (espero que considere um grande elogio!). E sabe incorporar como ninguém paixões do povo, como samba e futebol. Uma delícia frequentar seu blog!!

  6. salve, simas,

    como frequentador assíduo desse buteco, declaro em alto e bom som que desa vez o amigo se superou.
    quase me cago de ri!

    abçs

  7. Uma dica: Ouçam o programa “Ensaio” do Fernando Faro com Blecaute. Excelente. Ele, se vivo fosse, daria um grande pé nas rodas de samba. É conferir…

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