Um desengano dói, a minh´alma tanto sente. É assim, pungente, dramático, que começa um samba de Aniceto, gravado pelo grande Monarco em um lp magnífico de 1976. Capa do mestre Lan, participação da Velha Guarda da Portela e lendas como Dino, Marçal, Jorginho, Abel Ferreira, Wilson das Neves e o escambau segurando cordas e ritmos. Obra-prima!

Ouvi ontem esse disco, em minha gloriosa vitrola, e lembrei-me, com precisão, de um dos maiores desenganos da minha vida. Diz respeito a um entrevero que tive com uma professora relacionado ao pavilhão da pátria, a gloriosa bandeira do Brasil. Explico melhor.

Estava, e bota tempo nisso, assistindo a uma aula de Estudos Sociais, quando a professora falou da necessidade do amor incondicional aos símbolos da pátria, especialmente ao auriverde pendão do poeta. Fez então, a megera, uma pergunta fatal:

– A estrela que está acima do Ordem e Progresso representa que estado do país?

E eu, altaneiro, augustíssimo da paz e certo da resposta, bradei com a autoridade de um caboclo de umbanda:

– É o Pará!

A dona me fuzilou com o peso inclemente da tirania:

– É o Distrito Federal! É o Distrito Federal!

Quase fui agredido. Minha resposta gerou uma catarse na mestra. Descabelada, dando socos no quadro, afirmou que não aguentava mais dar aulas a um peste como eu, endemoniado, malcriado e futuro marginal. Admito que meu comportamento em sala não era exatamente exemplar, mas ela exagerou. Me senti a última das crianças, um patinho feio antes de virar cisne.

(Pausa. Esse cisne da frase acima é o Capororoca, o famoso cisne branco brasileiro, que saiu de casa pra cantar na rua. Esse negócio de cisne europeu é meio esquisito.)

Nunca esqueci desse esporro e, por conta disso, tive sérios problemas em respeitar a bandeira do Brasil. Era ver o estandarte canarinho e o arrazoado da mestra rugia nos meus ouvidos.

Meu avô, que havia me garantido que a estrela representava o Pará, tentou me consolar de todas as formas, afirmando com delicadeza nordestina que a professora era, além de burra, uma vaca. E eu, amigos, duvidei do velho e cheguei a acreditar que ele tinha se enganado. A estrela devia mesmo representar o Distrito Federal.

Eis que o tempo passou e o velho cantou pra subir. Morreu manso, ele que sempre foi esporrento. Não deixou herança em dinheiro ou imóveis ( prova irrefutável de caráter e dignidade) mas legou aos seus uma caralhada de coisas aparentemente inúteis, como flâmulas de clubes, moedas da época do Império, álbuns de figurinhas incompletos, um chicote de cangaceiro e uma bandeira magnífica do Brasil, enroladinha como ela só. Dentro da bandeira, protegida, uma cartilha da época do Estado Novo com a explicação completa , minuciosa , sobre os símbolos nacionais. Sabem o que a cartilha diz?

A bandeira foi proposta pelo intelectual positivista Teixeira Mendes, com apoio do astrônomo Manuel Pereira Reis e do artista Décio Vilares. A posição das estrelas no lábaro representa o céu do Rio de Janeiro às 8:14 minutos do dia 15 de novembro de 1889, data e hora da proclamação da República, equivalente a 12 horas siderais – e já adianto que não faço idéia de que diabo é isso de hora sideral.

Diz ainda que cada estrela representa um estado. E, vejam vocês, que a única estrela acima da faixa com Ordem e Progresso é a Spica, representando o estado do Pará. À época da proclamação da República, Belém era a capital mais setentrional do país, ainda que abaixo do Equador.

O Distrito Federal, queridos, é representado pela Sigma do Oitante, que fica próxima ao pólo celeste, o que faz com que todas as estrelas visíveis nos céus do Brasil façam um arco em torno dela. E a Sigma está abaixo do Ordem e Progresso. Acima só está o Pará, cacete!

Hoje é o dia da bandeira, salve ela, e, em homenagem ao velho, vou repetir insistentemente, com a obsessão de um João Batista no deserto, que a única estrela acima da faixa do lábaro representa o Pará. Pe-a-erre-a : Pará.

Aproveito o ensejo e clamo ao poder público (entendam o simbolismo do gesto. É óbvio que não sou lido por nenhum representante do poder público) que troque imediatamente o trapo que está desfraldado na praça da Bandeira, pertinho da minha casa, por um pavilhão novo, bonito, decente.

Botem, por favor, uma bandeira nova na praça, para que eu possa olhá-la com orgulho quando parar no ponto onde pego o ônibus para trabalhar. E, mais do que isso, para que eu possa perguntar a todos – ao mendigo, ao garçom, ao trocador do ônibus e ao camelô que me fornece pilhas e formicidas – com a firme convicção de quem possui a verdade revelada:

– Sabem qual é o estado representado pela estrela acima do Ordem e Progresso ?

Abraços

Ps: Pensei em colocar o hino da bandeira no final desse texto. Seria muito óbvio. A música à bandeira que mais me comove é outra: Fibra de Herói, melodia do maestro Guerra Peixe e letra do poeta Teófilo de Barros Filho. É ela que vai abaixo:

3 Replies to “BANDEIRA DO BRASIL”

  1. Mestre, esta bolacha do Monarco foi classificada – pelo nunca assaz louvado José Ramos Tinhorão – como o melhor disco de samba [logo, o melhor disco, valor absoluto] da história.

    Saudações imperianas!

  2. CA, é uma das maiores bolachas de todos os tempos, sem dúvidas. E o Tinhorão – nunca assaz louvado, te repito – sabe das coisas.
    O velho Tinhorão, aliás, diz que o maior samba de enredo de todos os tempos é o nosso Cinco bailes da história do Rio.
    Saudações imperianas!

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