“… Mas e o Corona, hein?”

Sempre após qualquer anúncio de enredo, divulgação de contratação ou a qualquer notícia relacionada ao samba, todos nós, sambistas, ouvimos o mesmo questionamento. Não sem alguma razão, posto que estamos frente a um cenário muito complexo. Há quem fale do próximo Carnaval como sendo Carnaval 2021 (Ou 2022, ou pós-vacina) – como o jornalista Lucas Prata “Caju” Fortes.

Eu mesmo já recebi – de fontes não oficiais, portanto sem profunda validade – de que há uma proposta que, caso as coisas não se normalizem a contento, o Carnaval será realizado no meio do ano que vem (Houve quem dissesse maio, e quem dissesse junho). Há quem diga, porém, de que ele poderá ser mantido na data anteriormente prevista, já que há uma crença de que a curva de contaminação/mortalidade deve caia em breve – afinal estamos num processo de flexibilização da Quarentena. Enquanto isso, os estudos relacionados a vacinas e/ou remédios seguem a todo vapor. Naturalmente, para todos nós, é muito difícil fazer qualquer previsão sobre qual vai ser a norma praticada para o carnaval vindouro.

Afora as questões sanitárias, a instabilidade política – em todas as esferas! – surge como mais um dificultador. A incerteza dos cenários também se estende tanto à TV como a existência de potenciais patrocinadores.

Do lado de cá da produção carnavalesca os trabalhos seguem. As pesquisas de enredo se encaminham e algumas sinopses já estão prontas e foram entregues, ao passo que algumas outras, inclusive, já foram até divulgadas. Há escolas com enredo pronto e escrito e que passaram a cogitar a viabilidade de reedição, e por isso adiaram a divulgação do tema do próximo carnaval. Diante desse terreno pantanoso, a praxe para quem está com enredo já definido está sendo adiantar o máximo possível a parte teórica dos desfiles. Todavia, não se pode dizer que tudo está plenamente num cronograma: “(Devido à pandemia) Todos os profissionais do carnaval foram afetados. Há um exército de aderecistas e costureiras que estão neste momento sem poder trabalhar e sem previsão imediata de como vai ser. As pessoas já estão vivendo em extremas dificuldades. É um cenário desolador, de profunda incerteza” – é o que diz o carnavalesco Jorge Silveira, atualmente defensor da Dragões da Real (SP).

Realmente é muito difícil fazer qualquer programação neste momento. Sabemos todos que o carnaval é dependente de aglomeração. A festa está intimamente ligada a um fazer compartilhado. Então, não tem como manter aderecistas com distâncias regulamentares, ou ensaio sem componentes, por exemplo. Não há qualquer possibilidade de haver um desfile sem alas, sem bateria ou sem componentes – Isso se pensarmos apenas no contingente humano.

Algumas escolas têm discutido formatos para lidar com a eliminatória de sambas nesse momento de exceção, e tentam migrar pro online o máximo possível – Como a Dragões da Real (SP), que optou por fazer um processo de escolha online com os compositores pela Internet, e deixando a fase “presencial”, dependente das questões sanitárias relacionadas ao Corona.

Aqui no Rio há escolas que cogitam trabalhar com reedições, não só por tratar-se de uma opção menos custosa, mas por alegarem não ter tempo suficiente para lidar com uma eliminatória de samba. Em escolas mais tradicionais e com grandes nomes no seu elenco de compositores, a encomenda de samba também pode ser uma escolha problemática.

Sob a parte plástica, é impossível haver carnaval sem carros alegóricos ou fantasias. Embora o cronograma e a lógica de cada escola seja algo particular e individual, a esta época do ano, o carnavalesco e sua equipe estariam estudando materiais, analisando a viabilidade deles, e já visando a confecção de protótipos. A tradução plástica da narrativa está intimamente ligada à escolha de materiais assertivos, que conversem com aquela proposta. E é justamente aí onde os problemas começam a aparecer: A cadeia produtiva está atravancada. Nem mesmo as lojas possuem suprimentos, pois que a maior parte deles vem da China – epicentro da pandemia – e esses materiais não têm como chegar ao Brasil.  “São Paulo, por exemplo, é a maior praça do Brasil para fornecimento de material. Lá tem grandes marcas, e grandes lojas. Então, devido ao desabastecimento, talvez tenhamos de buscar o material onde tiver, a fim de suprir essa necessidade. Com fábricas fechadas pelo mundo inteiro – e o carnaval é globalizado quanto à produção de materiais, já que muita coisa vem de fora do Brasil – Como fazer com que esses materiais cheguem a tempo com as necessidades que o espetáculo tem? É um dilema.” – opina Jorge Silveira, que completa: “

– A Humanidade passa, talvez pela maior sinuca de bico da sua História e, sem dúvida, o carnaval como todas as artes passa por sua maior crise.

Barracão de Escola de Samba na CDS, vazio.

 

Sem possibilidades de escolhas assertivas, o profissional tem de lançar mão do que tem “em casa”. E aí nasce um outro problema: o almoxarifado vazio.

– Especificamente aqui no Rio, viemos de três anos de administração Crivella, onde o prefeito cortou a metade da verba destinada ao carnaval, depois a metade da metade, para, ato contínuo, cortar tudo. E isso já trouxe às escolas de samba uma dificuldade absurda. Podíamos até pensar em fazer com o que há no estoque. Todavia, até mesmo para lançar mão do alternativo, é necessário saber o que temos nas mãos e o que pode vir a ser aplicado. Mas, especialmente para algumas agremiações, há estoque? – questiona o artista plástico.

O comentário de Jorge é muito pertinente, pois escancara um outro problema – este não relacionado ao Corona, mas que seria fundamental num momento de crise como este: Não há uma sistematização clara dos materiais disponíveis nos almoxarifados da maior parte das escolas de samba. E isso vai desde as pequenas coisas, como pedrarias, às coisas maiores, como esculturas. Ou seja, mesmo havendo material, nem sempre dá para saber ONDE ele está.

Num ano em que a crise se aprofunda e maximizam-se as dificuldades, há de haver uma maior exigência do profissional carnavalesco:

– A acho que isso vai cair – pois que sempre cai – na mão do artista: A de fazer superprodução, de ser o mais mirabolante possível, de se virar com o material que tiver disponível, ou inventar um. Teremos de ser muito espertos para tirar proveito disso, sendo prudentes e fazendo as escolhas corretas, como pensando em temáticas que não sejam exageradas no uso de um material específico, ou saber criar soluções novas e inteligentes para aquilo que a gente já conhece, ou dar uma nova cara a isso. É justamente nestes momentos de crise que podemos ver quem tem habilidade para a coisa ou quem não tem, já que o reaproveitamento vai ser regra. Obviamente, não se pode romantizar o precário, pois já vimos de uma condição muito ruim de espaço e de trabalho, que é ainda pior nas escolas do Acesso. A alternativa vai ser o reuso mesmo e torcer para que consigamos reaproveitar o máximo possível. Por mais que num dado momento venha uma montanha de dinheiro – o que sabemos que não é a realidade do carnaval – Não teremos tempo para comprar ou importar coisas. No último carnaval, até mesmo as superpoderosas tiveram de rebolar para reaproveitar.

Ainda sobre a fartura financeira – ou a falta dela – Jorge destacou que “É possível contar nos dedos de uma mão as escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro que têm condições de fazer tudo partindo do zero, ou de reaproveitar muito pouco.”. Ou seja, se num panorama mais conhecido, as políticas de reuso e reaproveitamento já ditam a tônica do comportamento, imagina o do próximo carnaval, em que não sabemos em que situação o mundo vai estar…

Em todas as suas experiências recentes no Carnaval Carioca, Jorge Silveira passou por grandes desafios na feitura carnavalesca. Desde 2017, quando fez o carnaval da Viradouro, escola que vivia uma grande e profunda crise financeira, aos três últimos carnavais na São Clemente, o profissional teve de lançar mão da política do reuso a fim de botar as escolas de samba na rua. Na agremiação do Barreto, viu-se tendo de catalogar peça por peça para poder saber o que tinha nas mãos e assim confeccionar o belo desfile que lhe valeu o Vice-Campeonato em 2017. Na agremiação de Botafogo, Silveira lançou mão de um recurso que vem sido ventilado com recorrência para o Carnaval 202X: A reedição.

– Obviamente uma reedição é menos custosa, inda mais nesse momento em que estão todos sem dinheiro. Mas temo de que esta exceção vire regra ao longo do tempo, e que passe a ser mais um tijolinho a ser retirado da parede que edifica o samba. A construção dos sambas de enredo é fundamental para o processo de construção das escolas de samba e a audiência da criação dos poetas pode enfraquecer o modelo delas. – Destaca Jorge, que fez, em 2019, a reedição de “… E O Samba Sambou”. A escolha por uma reedição, alega ele, que não foi unicamente por tratar-se de uma alternativa mais barata, mas também, como “um tiro preciso de afirmação identitária da escola”. E esta última prevaleceu, inclusive.

Desfile da São Clemente em 2019

 

Dentre todas essas questões há outras: Há profissionais que dividem as suas atividades entre Rio de São Paulo. E esses deslocamentos também são/estão difíceis, já que, neste momento não há ônibus interestaduais circulando, os voos para a capital paulista se escassearam e encareceram, obrigando o profissional que está na ponte aérea a ir com o próprio carro às praças em que atende.

Levando em conta que o fazer escola de samba é algo muito específico, o compartilhamento de profissionais, coisa que já era praticada, pode se intensificar:

– Naturalmente, havendo menos tempo para a produção, há de haver uma sobrecarga de exigência a esses profissionais, o que pode gerar um conflito significativo pois que todos os trabalhos precisam ficar prontos na mesma data. todavia, creio que o problema maior para o próximo ano estará na aquisição de material e não de profissionais. – É o que alega o carnavalesco da Dragões.

Sem dúvida, o carnaval 202X tem demandas de todas as ordens e tem todos os seus contingentes afetados pela pandemia. O que nos faz torcer que em breve tenhamos de novo o povo na rua cantando, feito uma prece, um ritual. E que a procissão do samba continue abençoando a festa do divino carnaval. Mas, por enquanto, o posicionamento frente ao desconhecido além da necessidade de ter de aprender um jeito novo de fazer tudo, dá-nos a impressão de que que estamos trocando a roda do carro com o carro andando.

Agradecimento: Jorge Silveira

Imagens: Ouro de Tolo