Conforme dito na coluna de terça, encerraremos hoje o quesito Enredo, com a apresentação dos Cadernos de Julgamento dos módulos 3 e 4 além do encerramento da série.

Módulo 3
Julgador: Pérsio Gomyde Brasil

Notas
Estácio – 9.8 (concepção 4.8)
União da Ilha – 9.9 (realização 4.9)
Beija-Flor – 9.9 (realização 4.9)
Grande Rio – 9.9 (concepção 4.9)
Mocidade – 9.9 (realização 4.9)
Unidos da Tijuca – 9.9 (concepção 4.9)
Vila Isabel – 10
Salgueiro – 10
São Clemente – 9.8 (concepção 4.9 e realização 4.9)
Portela – 9.9 (concepção 4.9)
Imperatriz – 10
Mangueira – 10

estacio2016aGomyde foi o terceiro julgador a descontar a Estácio pela “má setorização” das alas 19 e 20. De novo, reporto-me ao que escrevi no módulo 1 nesta semana.

O outro décimo, foi por causa da “inversão histórica” entre as alas 11 (Patrono da Inglaterra, remetendo ao Rei Eduardo III) e 12 (A Cruz e as Cruzadas, remetendo ao Rei Ricardo I, o Ricardo Coração de Leão).

O fato retratado pela ala 11 ocorreu quase dois séculos mais tarde do que o retratado pela 12 e por tanto constituiria um erro na sequência do enredo.

Que Ricardo I viveu no século XII e Eduardo III no século XIV, não se discute. O que eu quero discutir é se o enredo da Estácio realmente exigia essa sequência lógica?

É o exato mesmo argumento que eu usei para defender a Mangueira do décimo perdido no módulo 1 do ano passado: o enredo da Estácio não foi construído para ser cronológico, ele apenas trouxe exemplos de momentos marcantes na história que envolveram São Jorge.

O argumento da Estácio não foi “fazer uma história da devoção em São Jorge”, mas apenas pontuar como ele esteve presente em inúmeros momentos históricos.

Apenas para exemplificar, não se precisa seguir a ordem cronológica.

Logo, se não houve prejuízo ao argumento da escola, não ha que se falar em perda de ponto. Por isso discordo da justificativa usada pelo julgador.

Gomyde foi mais um julgador a retirar ponto das 41 fantasias misturadas da Ilha no primeiro setor (mas quem teve essa ideia, hein?).

Já na Beija-Flor, o desconto foi dado pela grande similaridade nas soluções plásticas das fantasias dos dois primeiros setores (para quem não lembra, foi aquele mar de dourado que tomou conta do início da Beija-Flor). Aqui temos uma justificativa ligeiramente polêmica, há quem concorde que houve falta de criatividade e perda de leitura e há quem discorde, dizendo que as fantasias tinham concepções diferentes, só repetindo a cor. De qualquer forma, não dá para dizer que a justificativa foge ao quesito ou não existiu.

Gomyde também descontou o peso excessivo ao futebol na Grande Rio (isso foi quase unânime entre as opiniões desde a divulgação da sinopse) e retirou pontos da Mocidade por não trazer na ala 2 a marionete presente no croqui do Abre-alas.

Está claro nos critérios de julgamento que a falta de um elemento presente no Livro Abre-alas é caso de punição e Pérsio sempre se caracterizou por ser extremamente rígido com essa conferência.

Na Tijuca ele foi mais um a despontuar a falta de uma ala para água no setor 1.

Já na São Clemente ele foi outro a descontar o fato de que a ala de Astley veio depois do circo. Só que o motivo apresentado dessa vez pecou na minha opinião, no mínimo, pela rigidez excessiva e a total falta de licença artística: o fato de que no Histórico do Enredo no Livro abre-alas, primeiro se diz que Astley foi o criador “de um anfiteatro ao ar livre” que apresentava espetáculos equestres e que iria revolucionar o mundo dos espetáculos.

Por mais que o julgador não deixe expresso, ao citar a página 127 do Abre-alas na justificativa, ele passa a impressão que primeiro deveria vir a ala de Astley, depois a ala dos palhaços equestres e só depois o circo, sob pena de desrespeito ao Livro Abre-alas.

Até agora estou me perguntando esse isso é sério. Os três fatos encontram-se na mesma frase e trazem a mesma ideia, tudo junto. Só porque se cita Astley 2 verbos antes do palhaço na mesma frase eu tenho que colocar Astley na frente dos palhaços equestres? Mas é um excesso de rigidez sem tamanho e inconsequente. Ou é só um motivo para tirar ponto da São Clemente?

Na realização ele foi mais um a reclamar da falta de pintura da cara da bateria (Palhaço de Cara Branca), segundo o julgador, conforme o Livro Abre-alas. Porém o livro abre alas em momento algum diz que a bateria virá pintada, nem isso está claro no croqui. Ainda sim, o desconto até é entendível porque, como já escrevi em fantasias, pode-se alegar que a fantasia em nada remete a cara branca do Palhaço de Cara Branca.

Para finalizar esse caderno, comento o polêmico desconto dado a Portela. Transcreverei toda a justificativa abaixo antes de comentar:

“Concepção: as incríveis e fantásticas jornadas descritas no enredo portelense (através dos “olhos da Águia”, seu símbolo) são realmente fascinantes. A Alegoria nº 04 “Perdidos no Espaço” que representa uma aventura ficcional (seriado norte-americano produzido na década de 60) está localizada no roteiro indevidamente no 3º setor “Viagens Extremas” que apesar de EXTREMAS, são POSSÍVEIS (como o projeto MARS ONE citado no próprio enredo). O carro alegórico estaria então melhor posicionado no setor nº 2 que se refere a Viagens imaginárias” (grifos e maiúsculas do autor citado).”

Há quem reclame dessa justificativa dizendo que o julgador não entendeu o enredo. porque o setor das viagens imaginárias retratam viagens simplesmente impossíveis, viagens que não tem a menor condição de acontecer. Assim são as vinte mil léguas submarinas (que como já expliquei no comentário da sinopse, simplesmente não existe tal distância), as viagens no tempo (impossível ao menos na Física Clássica) e as viagens fantasiosas descritas no livro “Viagens de Gulliver”.

Nesse setor de viagens imaginárias aparece também as viagens “interestelares”. Aqui começa a discussão. Teoricamente, as viagens interestelares são possíveis, afinal, diferentemente das viagens acima descritas, o destino dessa viagem existe, apenas fica extremamente distante e não há nenhuma tecnologia ou perspectiva que leve qualquer artefato humano para “visitar” outra estrela. Portanto, dá para se fazer um esforço e compreender a viagem interestelar como uma viagem “imaginária”, afinal ela é exaustivamente fantasiada na cultura popular tal qual as viagens descritas nos parágrafos anteriores.

Enquanto isso, o setor seguinte, o das viagens extremas, retrata vários destinos de transporte muito difícil, por diferentes motivos, mas que levando a tecnologia e o corpo humano ao extremo, são possíveis de alcançar. Assim são retratados a Amazônia, a Antártica, o Deserto, a África e, finalmente, Marte.

Marte é um outro planeta, ainda não chegamos lá, mas fica bem perto da Terra e orbita a mesma estrela que a Terra, no caso o Sol. Chegar a outros planetas do Sistema Solar não chega a ser uma novidade ou algo inexplorado para o ser humano: sondas humanas já orbitaram todos os planetas do sistema Solar e a Voyager I foi o primeiro objeto humano a deixar o Sistema Solar (mas ainda muito distante de qualquer outra estrela). Além disso a NASA retomou o projeto Mars One que pretende levar até 2024 humanos para Marte. Os testes realizados até o momento já mostraram que, física e fisiologicamente, tal viagem já é possível.

Para os defensores da integridade do enredo, o carro citado, ao ilustrar a série “Perdidos no Espaço”, que mostra uma família que tentará colonizar outro planeta, representa esse esforço humano real de tentar pisar e, futuramente, até colonizar outros planetas a começar por Marte. Logo, ele representaria uma Viagem Extrema e estaria perfeitamente integrado ao enredo.

Porém, uma rápida passada na Wikipedia (não sou velho o suficiente para ter visto a série), mostra que a história da série “Perdidos no Espaço” retrata uma família que tentará colonizar um planeta na órbita da estrela Alfa Centauri. Ou seja, como é um sistema estelar diferente do Sistema Solar, trata-se de uma viagem interestelar! Mas a Viagem Interestelar não está na parte de viagens imaginárias do enredo? Logo, há no mínimo uma incoerência de argumento e o décimo foi bem retirado.

Um fato é inegável: Pérsio demonstrou um conhecimento vastíssimo em suas justificativas. Porém, eu ainda acho que ele poderia ser um tanto menos rígido quanto ao Abre-alas. Cabe também à LIESA esclarecer o ponto de rigidez no Manual do Julgador. Da forma como está hoje, a rigidez extrema é justificada nos critérios de julgamento.

portela2016bMódulo 4
Julgador: Marcelo Figueira

Notas
Estácio – 9.8 (concepção 4.8)
União da Ilha – 9.7 (concepção 4.8 e realização 4.9)
Beija-Flor – 9.9 (concepção 4.9)
Grande Rio – 9.7 (concepção 4.8 e realização 4.9)
Mocidade – 9.9 (realização 4.9)
Unidos da Tijuca – 10
Vila Isabel – 10
Salgueiro – 10
São Clemente – 10
Portela – 9.9 (Realização 4.9)
Imperatriz – 9.9 (concepção 9.9)
Mangueira – 10

Figueira gosta de escrever justificativas gigantes. Suas justificativas de domingo além de todo o espaço já destinado as justificativas, ainda avançou em um verso inteiro da folha 3 do Caderno de Julgamento. Mas, como costuma ocorrer em Enredo, várias das justificativas de Figueira já foram dadas também por pelo menos 1 dos 3 julgadores anteriores, portanto, nas justificativas repetidas, reporta-me-ei ao que já escrevi nos módulos anteriores.

Na Estácio, Figueira completou o quarteto e também descontou o “erro de setorização” das alas 19 e 20 e também recorreu ao erro de cronologia entre as alas 11 e 12 conforme já citado por Pérsio Gomyde. De novo ele trouxe apenas a reclamação de que a ala 13 (Dança da Capadócia) deveria estar no setor 1, que trata da Capadócia.

Mais uma vez, hei de discordar do julgador. A Capadócia mostrada no setor 1 é a Capadócia em que São Jorge viveu, é o setor do desfile que retrata a vida do santo. Já a ala 13 mostra a devoção que a Capadócia desenvolveu a Sâo Jorge bem depois de sua morte. Senso assim, a ala esteve bem setorizada no setor 3.

Ao menos na Ilha, Figueira foi o único a não reclamar da mistura das 41 fantasias. Em compensação, apontou uma fragilidade temática nos setores 3, 4 e 5, com conexão tênue com os outros setores e deixando o desfile monótono e redundante. Em realização, o julgador aponta vários problemas que dificultaram o entendimento das alegorias e fantasias.

Já na Beija-flor, Figueira foi o único julgador a apontar um defeito da argumentação da Beija-Flor que também me escapou e é em muito parecido com a lambança que o Salgueiro fez com seu enredo mineiro ano passado: a escola falou da arte barroca mineira antes do ciclo do ouro, quando foi justamente o ciclo do ouro que permitiu o desenvolvimento da arte barroca. Como o enredo nilopolitano se pretende cronológico, é um erro passível de dedução.

Quanto à Grande Rio, Figueira também completou o quarteto e descontou a dúvida se o enredo retratava a história de Santos ou falar do Santos Futebol Clube. Porém, Figueira foi mais além e foi o único a escrever na justificativa que mesmo na parte histórica, o enredo esta por demais picotado, conforme eu também já havia dito lá nas análises das sinopses. Não há história, há picotes históricos não relacionados, ou seja, não formando um argumento.

Na parte de realização, o julgador reclamou da difícil compreensão de algumas alegorias e alas, além da falta de justificação adequada para a inclusão da ala 31 (“Um brinde a Santos”).

Já na Mocidade, Figueira foi o único julgador a não descontar a falta da marionete na ala 2. Em compensação, ele foi o único a justificar um defeito do enredo da escola que foi gigantesco e claríssimo: a Alegoria 7 (da escultura do Jorge Perlingeiro) não disse a que veio dentro do enredo. O que ela significa? Como escrevi em alegorias, a justificativa do Abre-alas é maravilhosa, mas ela simplesmente não ocorreu na avenida. Como é que só 1 julgador viu isso?

Na Portela, ele repetiu o argumento usado pelo Pérsio Gomyde e já amplamente debatido acima.

Já quanto à Imperatriz ele também se queixa da falta da música sertaneja como fio condutor do enredo, tal qual Artur Gomes no módulo 2. Além disso, ele reclamou da falta de um padrão no fio condutor. Por mais que a biografia da dupla homenageada fosse o real fio condutor, as vezes parecia que era a história de um homem do campo que sonhava uma vida melhor e as vezes parecia tratar simplesmente de um tema agrícola.

Figueira ainda reclamou da redundância de falar do estado natal e logo depois da cidade natal da dupla e que “parece ter faltado história ao final do enredo”, já que os dois setores finais poderiam ser resumidos em apenas um mais consistente.

Ou seja, foram tantos defeitos apontados que 9.9 ficou barato, um 9.8 seria muito bem descontado, especialmente levando-se em conta a dosimetria da Estácio de Sá.

Assim encerramos o quesito enredo, provavelmente o mais polêmico de todos neste ano. Tanto os comentários ficaram tão grandes, que fui obrigado pela primeira vez na história desta série, separar o quesito em duas colunas. De qualquer forma, a impressão que ficou foi de um julgamento muito mais coerente nos módulos 3 e 4 do que nos módulos 1 e 2.

Finalizando esta longa série, registro que, comparativamente ao ano passado, tivemos um julgamento de melhor qualidade no Grupo Especial este ano. Mas isso não necessariamente é um elogio. Como creio que tenha ficado claro nos 10 textos da série, ainda há muitos problemas a serem consertados. Nesses problemas, apenas para citar os mais comuns, entram os critérios de julgamento extremamente vagos, julgadores de desempenho fraco constante que não são trocados e invasão de um quesito no outro, algumas vezes de forma absurda, prejudicando uma escola de forma muito injusta.

Outro fato que precisa ser atacado com veemência pela LIESA são as justificativas muito vagas, especialmente nos quesitos de chão. É justamente nessas falhas de justificação que podem entrar aqueles décimos tirados pela vontade do bel-prazer do julgador. Ainda tivemos muitas justificativas vagas, incompletas ou por demais subjetivas em alguns quesitos, especialmente harmonia, evolução e, principalmente, bateria.

Alias, em bateria, como disse o leitor Carlos Alberto em um comentário muito feliz, continuando nesse ritmo ainda há de chegar o dia que todas as baterias receberão 10.

O julgamento desse ano foi melhor do que o do ano passado não por uma melhora de todo sistema de julgamento, mas porque as escolas fizeram bons desfiles esse ano, sem grandes erros. Além disso, ser pior do que a tragédia do ano passado, evidenciada pela Justificando o Injustificável, era muito difícil.

Por fim, repito o texto final da Justificando o Injustificável do ano passado:

“Não sou o dono da verdade, muito menos sou uma espécie de Laíla, com conhecimentos profundos em todos os quesitos, logo não devo ter razão em tudo que escrevi aqui. Mas exatamente por isso, tentei ao máximo me ater ao manual de julgamento e a mera lógica e coerência das justificativas nos quesitos que menos conheço. Acredito que quem acompanha carnaval com o mesmo afinco que os colaboradores deste blog concordam muito mais do que discordam do que escrevi nesta série.”

7 Replies to “Justificando o Injustificável 2016: Enredo – Parte Final”

    1. Bom, o prezado não é o único leitor deste blog. Acho que isto responde à sua pergunta.

  1. Não deixode pensar que pegaram pesado com a Estácio. Mas paciência.

    Pelo menos descontaram aquela papagaiada que foi a Grande Rio. Foi a ideia errada para o enredo errado.

  2. Parabéns pela série Rafael, impressionante como vários vícios do júri seriam resolvidos com uma simples orientação da Liesa sobre o que deve ser realmente julgado no quesito, isso sem falar em treinamentos mais amplos, com vídeos de desfiles antigos e exemplos de notas consideradas corretas comparadas com as mais absurdas.

    Uma dúvida, lembro que você acertadamente considerou que o julgamento de apenas um quesito foi tão distorcido que influenciou completamente o resultado dos quatro carnavais anteriores, suas palavras foram, no texto de evolução do ano passado “parece que cada ano um quesito “dá a louca total” e muito pouco reflete o que foi visto na pista de forma geral. Em 2012 foi bateria, em 2013, comissão de frente, e em 2014, alegorias e adereços. Neste 2015 foi evolução.” Acha que isso ocorreu esse ano, mesmo que em proporção bem menor? Se acha que sim, em qual quesito?

    1. Obrigado, Fernando. Quanto a essa simples orientação, é exatamente o que defendo desde a série do ano passado.

      Quanto a dar a louca, não vi nenhum quesito a esse ponto. Quando digo que “deu a louca” em um quesito é que as notas não fazem o menor sentido, quem deveria ter nota alta ficou com nota baixa e vice-versa. Acho que nenhum quesito chegou a esse ponto em 2016. Talvez pelo alto nível dos desfiles.

      Tivemos um quesito “neutro” que foi bateria, onde quase ninguém perdeu décimo, mesmo quando algumas baterias ratearam e deveriam sofrer penalidade. Para piorar o quesito teve um julgador a menos, o que amplificou ainda mais a chuva de notas dez. Mas não tivemos baterias impecáveis perdendo pontos para dizer que “deu a louca”.

      Assim que terminou o quesito fantasias na apuração, achei que esse seria o quesito da “louca”. Porém as justificativas acabaram com qualquer resquício de pensamento nesse sentido. Mesmo tendo um julgamento bastante complicado no quesito 1, tivemos 2 ótimos julgamentos nos módulos 3 e 4. Os décimos “difíceis” retirados foram muito bem justificados.

  3. Parabéns por mais uma temporada da série Rafic, e muito obrigado pela citação, rs

    Quanto as notas e justificativas: Os jurados parecem que concordam comigo quanto a Grande Rio. O enredo era claramente sobre o Santos CLUBE, e não a cidade, acho até que merecia um desconto maior. O mesmo não posso dizer dos de harmonia, por exemplo, já que ao meu ver o samba se arrastou, a harmonia não se sustentou e quantos décimos perdeu? 0,1!

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