Depois dos três textos analisando a safra de sambas-enredo do Grupo Especial, venho hoje comentar as 14 obras que compõem a Série A. Já estabilizado como um dos maiores espetáculos do Carnaval brasileiro, os desfiles do segundo grupo reservam mais uma vez sambas de boa categoria e prometem um nível técnico bastante alto (apesar dos graves problemas financeiros) à medida que o desnível entre as escolas mais fortes e mais fracas, embora ainda considerável, venha diminuindo progressivamente.

Comparando com os demais anos da Série A, que começou em 2013 substituindo o Acesso A da LESGA, e desconsiderando as reedições, temos uma safra de nível bastante superior à de 2013 e um pouco mais competente que a de 2014. Fica abaixo da safra de 2015, mas aquela foi um ponto fora da curva, especialmente pelos três melhores sambas que compunham o grupo. Assim sendo, fica acima da média recente. Vale destacar também a presença maciça de compositores consagrados em escolas do Grupo Especial, o que contribui para o bom nível.

A polêmica produção do CD é sem dúvida alguma o fator que deixará o CD de 2016 longe dos álbuns mais aclamados da história. Voltando a comandar a produção do disco, Ivo Meirelles claramente tentou fazer algo diferente para alavancar as vendas de um produto que está longe de ser um sucesso e que reduz sua presença ao nicho dos extremamente aficionados. O resultado, no entanto, foi um desastre. A ideia de inserir os gritos de guerra dos intérpretes no meio do samba foi muito mal pensada e na grande maioria das faixas ficou muito esquisito. Isso sem falar nos refrães que são mais curtos do que os gritos, o que nos faz ficar sem ouvir o “vamos nessa” de Ronaldo Yllê ou o “arrepia” de Luizinho Andanças.

Ivo ainda manteve o padrão adotado por Leonardo Bessa em 2015 de fazer a primeira passada sem acompanhamento da bateria e também de valorizar os coros para dar um ar, digamos, mais clássico ao CD. O resultado, ao contrário do que se viu em 2015, foi um desastre. Faltou cuidado na produção e em algumas faixas fica nítida a colagem de áudios. Isso sem falar em uma das maiores bizarrices que já vi em um álbum de sambas-enredo que é a voz macabra ao fundo da faixa do Império Serrano. Enfim, ousar é sempre louvável, mas o resultado definitivamente foi terrível. Vamos aos sambas. Ah, para não dizer que só tenho críticas, o encerramento das faixas destacando as baterias ficou muito bom. Ideia a ser levada adiante nos próximos anos.

14) Império da Tijuca: “O Tempo Ruge, a Sapucaí É Grande e o Império Aplaude o Felomenal” – Rogerinho

Composição: Jussara Pereira / Dalton da Nelci / Luiza Fontella / Adriana Vieira / Lid

Depois de alguns anos com algum sucesso com enredos afro, o Império da Tijuca resolveu mudar e partir para um samba trash em sua homenagem à José Wilker. O resultado, entretanto, não foi nada bom. Não dá para negar que é um samba animado e que pode contagiar um público que é majoritariamente carioca. Embora não seja muito estilo de composição do Morro da Formiga, pode até haver uma boa recepção por conta da melodia pra cima, da letra popularesca e das menções a personagens conhecidas do grande público. Tecnicamente, porém, é de longe o pior samba que vai passar pela Sapucaí em 2016.

O refrão principal começa de maneira inusitada e trata com um coloquialismo um tanto esquisito a morte de seu homenageado. “Bye bye menino, bye bye gigante” é uma óbvia e clara referência ao filme “Bye Bye Brasil”, mas a inserção neste contexto ficou quase desrespeitosa. Também estranhei bastante o verso “O Império aplaude o artista errante”, já que não me parece ser esse o perfil de José Wilker a ser mostrado no enredo. Para completar, a opção da escola por suprimir a repetição do verso “O tempo ruge e a Sapucaí é grande…” provocou uma visível quebra no conjunto melódico da estrofe.

Devo dizer que à parte este refrão, não tenho muitos questionamentos em termos de letra. Ela é clara, objetiva e, se não é muito rebuscada, costura com cuidado às menções à obras e personagens de José Wilker para que não fique sem contextualização. A melodia, porém, apresenta uma construção extremamente deficiente e apela para subidas de tom bastante incômodas como em “Crescia um ator “felomenal””, “Foi a alma do cinema nacional”, “Hoje! “Eu vou lhe usar” fantasia / Quero cair nessa folia e consagrar” (aqui me permitam um elogio à letra, que foi muito bem tirada e se aproveitou do último papel marcante e que criou um bordão repetido a exaustão feito por José Wilker) e “Seu show vai continuar”. O refrão do meio também apresenta alguns problemas, como a métrica totalmente falha do verso “Nossa cena se abre pra multidão” e a melodia truncada que tem dificuldades para formar um conjunto melódico. O mesmo problema se repete em passagens como “Em horário nobre eternizou / O milagreiro do amor”. Rogerinho não teve um bom desempenho tecnicamente, mas pode contribuir para a boa aceitação do samba na Sapucaí por conta do seu estilo de canto.

13) Caprichosos de Pilares: “Tem Gringo no Samba!” – Thiago Brito

Composição: Gabriel Fraga / Rute Labre / Régis / Franco Cava / Ric Santiago / Luiz Careca

Essa foi a grande surpresa negativa do CD porque eu gostava muito da versão que venceu a disputa. O samba deu boa vida a um enredo extremamente complicado. A composição aposta em um desenho melódico simples, sem muitos descompassos e com poucas variações. A grande maioria das críticas que acabo fazendo podem ser creditadas a um trabalho ruim da ala musical da azul-e-branca depois da disputa. Há, para mim, por exemplo, uma alternância melódica mal costurada do verso “Brilhei, me fiz um grande vencedor!!!” para o verso “Reflete a natureza em meus olhos”. Esse  é um problema que não aparecida na versão concorrente porque o segundo verso tinha uma descida de tom que se encaixava ao desenho melódico. Agora, tenta manter a mesma entonação, dando inclusive uma leve subida, e acaba se perdendo.

Diga-se de passagem, outra coisa que me decepcionou muito foi o desempenho do intérprete Thiago Brito. A exemplo do que aconteceu em 2014 e 2015, o cantor exagerou ao cantar em um tom excessivamente alto, mais alinhado ao seu estilo vocal, e prejudicou a construção melódica do samba que foi feita para ser cantada de maneira mais sóbria. O andamento também me incomodou um pouco. Achei muito para trás e a melodia acabou ficando travada, com versos muito prolongados como em “Nas voltas que o mundo dá… Caminhei!” e “De cores, crenças e culturas… Carnaval!!!”. Por outro lado, gosto muito do refrão da melodia do refrão do meio, que é contagiante e vem sendo conduzida em ótimo andamento.

A letra mostra um esforço quase comovente para tentar explicar um enredo que é de longe dos mais confusos do ano. Os compositores foram inteligentes ao apresentar o eu-lírico apenas no último verso antes do refrão principal e mais ainda ao se apegar nos pontos mais, digamos, propensos a virarem poesia. O samba, por exemplo, recebe uma menção discreta na sinopse e é apresentado como um dos meios que integraram brasileiros e membros de outras nacionalidades. No samba-enredo, porém, ele toma conta de metade da primeira parte e de todo o refrão do meio. Ótimo para a funcionalidade da obra, péssimo tecnicamente, visto que foge completamente do enredo ao abordar, no citado refrão do meio, pontos que não fazem parte do tema como o surgimento do gênero e também por dar uma importância totalmente desproporcional a este trecho do desfile. Outro problema é o verso “O som que imortaliza e consagra”, visto que não fica claro o que foi imortalizado e consagrado.

Na segunda parte, a letra não tem nenhuma sacada espetacular, mas cumpre bem o seu papel. Faz um apanhado geral de pontos que serão abordados no desfile e consegue estabelecer bem uma conexão entre eles. Por outro lado, volta a derrapar visivelmente em dois momentos. Primeiramente, ficou difícil inserir o Petkovic dentro da letra. O resultado foi um verso mal concebido e de difícil entendimento: “Então, da vida esqueci as ilusões”. Mais adiante, também me causa estranheza o verso “Reflete a natureza em meus olhos”, que apresenta um erro de concordância que dificulta o entendimento da passagem.

12) Unidos do Porto da Pedra: “Palhaço Carequinha: Paixão e Orgulho de São Gonçalo! Tá Certo ou Não Tá?” – Anderson Paz

Composição: Porkinho / Kiko Ribeiro / Vitor Gabriel / Daniel Katar / Márcio Souza / Wilson Bizzar / William do Barreto / Flavinho Segal

https://www.youtube.com/watch?v=k-YPgOhWTs4

Tenho achado as críticas à esse samba um tanto exageradas. Concordo que não é uma obra de extrema qualidade e que tecnicamente fica devendo muito, mas acho esse samba agradável para se ouvir de maneira um pouco mais despretensiosa. O ponto mais positivo, ao meu ver, é a leveza e a alegria. É um samba simples, com uma inocência que praticamente desapareceu do Carnaval atual, mas que me faz muita falta. Tem, sim, muitas falhas, mas passa longe de ser um desastre.

Para começar, gosto muito do refrão principal. É animado, pra cima, e, mesmo sem apresentar algo muito inovador, cumpre bem a função de apresentar a escola e o homenageado. Sinto, no entanto, uma falta de cuidado com o verso final, “Com essa trupe conquistei seu coração”, cuja melodia na primeira passada do refrão simplesmente não fecha. Por outro lado, acho a letra da primeira parte muito bonita, em especial por conta dos versos “Vem ver… No picadeiro a magia acontecer / Vem ver uma criança sorrir / Com brilho nos olhos, se divertir”. O problema é que essa estrofe é bastante melodiosa e é cantada em um tom decrescente, de modo que a subida absurda no início do refrão do meio chega a surpreender e incomodar.

Porém, apesar deste senão, acho esse refrão do meio bem construído melodicamente. É animado e sem descompassos melódicos ou variações desagradáveis. A letra é apenas razoável e derrapa feio no verso “Parabéns… Carequinha!”. Sem contextualização alguma dentro da estrofe, fica claro que ele está ali apenas para tapar buraco e fechar a melodia. Melodia que, aliás, tem uma falha grave de métrica logo no primeiro verso da segunda parte – “No encanto do cinema” -, registre-se. Entretanto, há de se destacar e elogiar o verso “Não é bobo, é o herói da criançada”. A letra ainda apresenta parte do legado do Palhaço Carequinha, o que é bom, mas faz um jogo de palavras forçado e deficiente de sentido em “Para o mundo é medalha de ouro”. Ressalve-se a ótima gravação de Anderson Paz. Valorizou muito o samba.

11) Inocentes de Belford Roxo: “Cacá Diegues – Retratos de Um Brasil em Cena” – Nino do Milênio

Composição: Serginho Castro / Tentenzinho Jr. / Rudá Neto / Marcelo Fernandes

https://www.youtube.com/watch?v=AsejNMXxYXc

O samba da Inocentes de Belford Roxo, apesar de alguns deslizes, é bem feito. No entanto, devo confessar que não me chama muita atenção. O enredo desenvolvido de maneira bastante convencional gerou uma letra que em muitos momentos é apenas um recorte de obras marcantes de Cacá Diegues, restando pouco espaço para bons momentos. Por outro lado, descreve fielmente o enredo e tem boas passagens, especialmente na primeira parte, quando o enredo é menos descritivo.

O refrão principal é bem feito, mas a subida de tom em “O cinema hoje invade a passarela” me incomoda bastante. A primeira parte é, com sobras, o melhor momento do samba. Extremamente melodiosa, com desenhos musicais bem arranjados e uma letra bem construída, descreve a origem nordestina do homenageado e sua inserção no mundo das artes. Também me agrada bastante o refrão do meio, que pede um andamento mais acelerado e é bastante “pra cima”, apresentando com boa costura personagens de filmes marcantes de Cacá Diegues.

Na segunda parte, o samba entra na espinhosa missão de citar várias obras e contextualizar todas elas em uma letra que faça sentido. Com boa melodia e sem nenhum descompasso, a estrofe evolui muito bem e tem uma mudança melódica excelente no verso “Valeu Cacá! Por vir ao mundo e alegrar a tanta gente”. Contudo, confesso que não entendi bem essa história de agradecer uma pessoa pelo fato dela existir. Outro pequeno deslize é justamente na hora de costurar as menções aos trabalhos do homenageado. Em toda a letra isso é feito de maneira competente, mas no trecho “Acende a chama nesse rio de fé… Deus é brasileiro de verdade!” ficou confuso. Uma outra coisa que me incomoda são os três versos terminados em “dade” em uma sequência de cinco: “liberdade”, “felicidade” e “verdade”. Nino do Milênio, apesar de notória evolução, não fez uma gravação de qualidade.

10) União do Parque Curicica: “Corações Mamulengos” – Ronaldo Yllê e Elba Ramalho

Composição: Washington Motta / Pitimbú / Vagner Silva / Alexandre Alegria / Telmo / Léo do Taberna / Marcelo Valência / Adelson / Márcio André Filho

https://www.youtube.com/watch?v=xGuJMB-yjg0

Taí a mais grata surpresa de todo esse CD. Era um dos sambas que eu menos gostava não só na época das eliminatórias, como também na gravação divulgada pela escola alguns dias depois da final da disputa de samba-enredo. No entanto, fiquei impressionado com o quanto esse samba cresceu e ganhou outra vida, outra cara no CD oficial. A escola soube trabalhar a obra com maestria e muitos dos problemas melódicos que o samba tinha simplesmente desapareceram.

O refrão principal é um dos mais caprichados do Carnaval de 2016. O convite para “mamulengar” é feito como manda o manual: de maneira alegre, leve e com versos que te conquistam com facilidade, assim como a melodia muito bem construída. Destaco o verso “Eu vou passar, mas a saudade fica!”, que tem tudo a ver com o enredo. Aliás, esse é outro samba que me conquista pela alegria, pela simplicidade e pelo capricho com que sua letra é modelada, transmitindo assim a essência do enredo e do assunto de que tratará a escola.

A letra tem começo, meio e fim muito bem desenhados. Fica evidente a ideia de que uma caravana desembarca em uma cidade para apresentar um teatro de bonecos. Da letra, destaco nesta primeira parte a passagem “Ei… Do baú surgiu / Vixe… Tantos olhos coloriu / Das mãos os bonecos ganham vida”. Na segunda parte ela acaba mais recortando alguns pontos importantes do enredo e não é tão bonita, mas tem um encerramento muito bacana para colocar ponto final ao enredo: “Está na hora eu vou partir / Alegrar outra cidade”. Por outro lado, acho que há um erro na passagem “Acolá vem Lampião… Pra vencer o desafio / Desse povo nordestino… Oi”, porque ele dá a entender que o desafio foi feito pelo povo nordestino, quando na verdade a vitória foi para ele. E o curioso é que o melhor verso do samba está justamente na sequência, aproveitando o fio que comanda as marionetes para dizer que o povo nordestino “leva a vida por um fio”.

Melodicamente, o samba tem nuances muito bem feitas como a transição melódica provocada pelo verso “Ei… Do baú surgiu”, a excelente estrofe central com uma levada menos cadenciada e mais alegre e o prolongamento maravilhoso dos versos “Eita que fole danado / Audaciosa num batuque arretado!”. Por outro lado, me são extremamente incômodas as subidas de tom dos versos “Mamulengos, doce ilusão” e “Acolá vem Lampião… Pra vencer o desafio”. Isso sem falar na total quebra de continuidade melódica a partir do verso “Estórias magia da arte”. Ronaldo Yllê teve um desempenho brilhante na condução do samba e a participação de Elba Ramalho ficou espetacular. Ainda assim, tradicionalista que sou nesse sentido, prefiro que o samba seja cantado apenas pelo intérprete. O lindo alusivo “Sou eu que trago a força da União” na voz de Ronaldo e Elba é um dos melhores momentos do CD.

9) Acadêmicos de Santa Cruz: “Diz Mata! Digo Verde, a Natureza Veste a Incerteza, e o Amanhã? (O Clamor da Floresta)” – Pavarotti e Gabby Moura

Composição: André Félix / Freitas Junior / Zé Glória / Marquinho Beija-Flor / Roni Remandiola / Betinho / De Araújo / J. Giovani

https://www.youtube.com/watch?v=gCREOXSNWco

O samba da Santa Cruz para o Carnaval de 2016 inegavelmente tem qualidade, mas acho um tanto superestimado. A composição aposta em uma melodia densa, mas mais bem construída do que as que costumavam vir da escola da Zona Oeste. A temática não chega a ser inédita, mas ganhou uma abordagem um pouco diferente e isso se refletiu naquele que talvez seja a melhor composição de um enredo com cunho única e exclusivamente ambientalista. Acho curioso como o samba apresenta poucos clichês, o que não era esperado por conta da temática.

O refrão principal é bom, mas o verso “A Santa Cruz é meu clamor, é minha sede” não ficou nada legal. Está ali fechando a melodia e nada mais. Por outro lado, o início do samba é excelente, especialmente pela melodia acelerada do verso “Ecoa um grito de guerra do alto da mata” e pela abordagem feita do enredo. A mensagem de uma natureza unida contra toda a maldade que sofre é transmitida com clareza e lirismo e o samba apresenta passagens muito bonitas como “Vai tocar o mais frio coração / Pra cada palmo de devastação / Nasce um ramo de amor”. O samba cresce também em seu refrão de meio, que tem uma melodia mais alegre e uma letra mais solta, com bons versos como “Caipora me chamou, Curupira vai ou vem?” e “Esta terra tem magia! Tem poder!”.

Embora tenha havido um cuidado especial nessa transição, ainda vejo com um pouco de estranheza a diferença dos desenhos melódicos desse refrão para a segunda parte. De uma passagem extremamente “pra cima” o samba desce abruptamente em “Seiva da selva de Anhangá”. À parte este problema, a melodia é agradabilíssima, tem perfeito entrosamento com a letra e uma métrica notoriamente cuidadosa. Acho, no entanto, a letra infeliz em duas passagens. A primeira, pelo excesso do recurso do jogo de palavras que acabou dificultando o entendimento de seu conjunto em “Brotam as flores pras dores do mundo sarar”. Outro ponto que não me agradou foi o verso “Folha da mais verdejante matiz eu sou”, visto que a palavra “matiz” é um substantivo masculino e, portanto, o correto seria “do mais verdejante matiz”. A faixa foi muito bem gravada pelo intérprete Pavaortti, mas a participação de Gabby Moura, embora em alguns trechos tenha abrilhantado a obra, não me agradou muito.

8) Acadêmicos da Rocinha: “Nova Roma É Brasil, Brasil É Rocinha” – Leléu

Composição: Edinho / Diego do Carmo / Vitor Coutinho / Rico Bernardes / Rafael Mikaiá / Wander Timbalada

https://www.youtube.com/watch?v=rRzvwh17q5E

Em sua volta à Marquês de Sapucaí, a Acadêmicos da Rocinha surpreende pela qualidade de seu samba, que contrasta com o enredo que não é dos mais claros, nem dos mais inovadores. Se a sinopse era confusa, o samba por seu turno é de simples entendimento e tem uma melodia extremamente cuidadosa, com boas variações e desenhos musicais agradáveis aos ouvidos. O samba é bastante leve, animado, propício para uma escola que irá abrir os desfiles e, muito provavelmente, encontrar uma Sapucaí ainda vazia.

O refrão principal é muito bom. A melodia alegre combina com a letra forte e descontraída que, ao mesmo tempo, consegue exaltar a escola e o povo brasileiro, que é na verdade a essência de todo o enredo. O tratado da Princesinha da Zona Sul sobre a miscigenação ganha uma divisão muito clara ao longo do samba. O começo do samba tem uma pequena derrapada pela ausência de sentido do verso “Voa borboleta encantada” no conjunto da letra, mas por outro lado apresenta sacadas ótimas como o trecho “Essa terra abençoada! / Que aos trancos e barrancos “pegou” / E assim miscigenou”.  A primeira parte ainda se destaca pela melodia extremamente bem feita. Os versos apresentam subidas e descidas de tom muito bem planejadas, de modo que nenhuma soa desagradável. Pelo contrário, aliás. São variações criativas e agradáveis como as apresentadas nos versos “Essa terra abençoada!”, “O índio guerreiro, valente a lutar”, “Se planta, floresce, eu sei que vai dar” e “Heranças, costumes, em cada palmo desse chão”.

O refrão do meio também me agrada muito pela melodia contagiante e que flui com facilidade, além do verso “Tanta riqueza brilha no olhar”, que foi muito bem pensado. Por outro lado, acho que o verso “Nesse banquete só não come quem não quer” passa uma mensagem que, licença poética à parte, não representa com muita fidelidade o que se pretende contar no enredo. Pelo menos no sentido em que é possível contextualizar, acaba sendo quase uma contradição.

A segunda parte, porém, é espetacular. A melodia não cansa e apresenta desenhos melódicos muito agradáveis em trechos como “Lá no terreiro… Batuque! / Ecoa o som do tambor / Ô deixa a gira girar, semeia amor / O negro é raça, mostra seu valor” e “O meu Nordeste é arte, é cultura / Há esperança caminhando pelas ruas”. Esse último verso, aliás, é outro que merece elogios. A ideia da esperança caminhando nas ruas do Nordeste é um dos pontos altos da sinopse e foi muito bem encaixada na letra do samba. Gosto também do verso “Vai Brasil, trago a favela no meu coração” tanto pela letra quanto pela melodia, mas considero o trocadilho “Um coliseu de emoção” forçado e pouco criativo. Registre-se também a extraordinária gravação do intérprete Leléu, sem dúvida alguma uma das três melhores de todo o CD.

7) Acadêmicos do Cubango: “Um Banho de Mar à Fantasia” – Hugo Junior

Composição: Sardinha / Gustavo Soares / Diego Moura / Wagner Big / Diego Nicolau / Marco Moreno / Julio Alves / Samir Trindade / Elson Ramires / Cláudio Russo

Outra sinopse extremamente confusa que ganhou um samba lindo e surpreendente. A construção melódica dessa obra e a poesia da letra são extremamente surpreendentes mesmo vindos de uma parceria talentosa. A Cubango trocou uma linha de enredos afro que vinha fazendo muito sucesso e só não se pode dizer que mantém o nível dos sambas porque os dois últimos eram muito acima da média. Ainda assim, a verde-e-branco de Niterói tem uma obra de muita qualidade e que poderia estar melhor posicionada em uma safra um pouco mais fraca.

O refrão principal é um achado. A melodia alegre combina com uma letra quase despretensiosa e que utiliza de recursos comuns como usar o clarear do dia ou o termo “banho de alegria” para compor uma estrofe de fácil entendimento e contextualização dentro do enredo. Acho apenas que o verso “Quero me banhar à fantasia” não ficou legal. O enredo trata da água em primeira pessoa e aí fica evidente que o sentido do título é de dar um banho na fantasia e não se banhar à fantasia (até porque seria um pouco estranho a água se banhar).

Enfim, à parte este deslize, o samba é muito competente. A primeira parte é muito bem construída e tem trechos lindos como “Brilha na linha do olhar” e “Da branca espuma o verde nasceu”. Quem leu a sinopse sabe o quanto esse trecho era complicado de entender e os compositores tiraram uma boa poesia desse setor. Outra parte da letra que me chama a atenção é a que trata dos mistérios do mar. A clareza da passagem é louvável: “Bravura a navegar / No Reino de Netuno a imensidão / Do tenebroso mar da imaginação”. O problema é que a melodia nesse primeiro verso não fechou e o “bravura” na verdade é cantado como “bravurá”.

O refrão do meio, por seu turno, é ótimo. Ainda falando de mistérios, traz personagens conhecidas como a Iara e a Sereia com uma melodia com boas variações e métrica bem desenvolvida. O samba também se preocupa em trazer o público para o cenário do desfile e a letra passa bem o espírito do mar como um “habitat” em “Por essas ondas mora Yemanjá / Depois dos oceanos, Olokum”. A segunda parte reserva ainda ótimas variações melódicas como em “Vem preservar” e em “Velejar / E orgulhar futuras gerações”. A letra, no entanto, peca por não esclarecer muito bem quem é o eu-lírico na passagem “Água é vida, vida sou eu / A cristalina lágrima de Deus”. Pode até se subentender que é a própria água, mas aí haveria uma desconexão com a cabeça do samba que não fala da água em primeira pessoa. Em sua estreia como cantor principal da Cubango, Hugo Junior não teve bom desempenho.

6) Unidos de Padre Miguel: “O Quinto dos Infernos” – Luizinho Andanças

Composição: Marcelo do Rap / Toninho do Trailer / Samir Trindade / JR Beija-Flor / Thiago Alves / Alan Santos / Pebo Pinheiro / Alair Perobelli / Wallace Harmonia / Diego Rodrigues

O samba da Unidos de Padre Miguel para o Carnaval de 2016 resgata duas características de que sinto uma imensa falta no Carnaval atual. A primeira, é a crítica política, o grito de alerta, o “basta” que a grande maioria dos brasileiros sente com tanta coisa errada que aparece por aqui. Ainda mais pelo papel social da escola de samba, penso que o gênero deveria ter mais enredos e sambas assim, que representem o sentimento do povo quanto aos seus governantes. A segunda, que é indispensável para que a primeira não seja ranzinza, é o bom humor. O Carnaval anda certinho demais. Todo mundo anda com muito medo de cair no “trash”, de fazer uma piada, de cair no popular. Claro que tem enredo que não permite isso, mas de vez em quando é bom ouvir uma coisa mais popularesca.

E esse samba é popular até a raiz dos cabelos. Sem deixar de se preocupar em apresentar uma letra forte, com trechos importantes, e uma melodia cuidadosa e que não apela para construções mais simples, o samba tem tudo para conquistar o público. Nem tanto pelo refrão principal que, embora bom, não se destaca muito. A obra começa a camar a atenção na primeira parte, que apresenta uma boa melodia e transições bem resolvidas nas passagens “Preste atenção no que eu vou falar / Desde os tempos de Cabral”, “Virou galhofa colonial / Lá vem João, seu banquete à frente” e “Se ele soubesse pulava no mar / Com a sinhá se misturou”. A ressalva fica para a transição melódica em “Igual ao índio nos deixaram pelados / Negão veio de lá, da África pra cá” não foi muito bem executada.

A letra, como já se percebe em alguns versos destacados, é sensacional. Outro destaque é o verso “Comeu o frango restou osso pra gente”, que é divertidíssimo, embora, para mim, a grande sacada do samba esteja no significado quase oculto dos versos “Com a sinhá misturou / Mas o doce o rei levou”. O melhor momento da obra vem logo na sequência: o extraordinário refrão do meio. Além da melodia cuidadosa, o destaque fica para os versos “Mamaram nas tetas das Minas Gerais” e “A farra do quinto tirou nosso couro”. A segunda parte começa com uma descida de tom muito bem amarrada, mas apresenta também uma letra um pouco confusa em seu início: “Lá vai o rei / Com a mesma frouxidão que aqui chegou / E hoje eu sei / O jeitinho que o país herdou”.

Por outro lado, na sequência aparecem outros versos muito bem pensados. A grande sacada é misturar o discurso politizado do enredo com uma linguagem coloquial, popularesca, vista em versos como “Vamos proclamar felicidade pra geral / Mandar pros infernos, varrer todo mal”. Outros pontos bastante positivos são a transição melódica vista no verso “Unidos é hora de “kizombar” amor” e o excelente trocadilho “Liberdade ainda que folia”, que resume muito bem a ideia de aproveitar essa festa para clamar pela liberdade que o Brasil vem desejando em muitos aspectos nesse momento. Estreando pela escola e voltando à Sapucaí, Luizinho Andanças fez excelente gravação e deu uma outra vida ao samba.

5) Alegria da Zona Sul: “Ogum” – Tiganá

Composição: Pixulé / Thiago Meiners / Rafael Tubino / André Kaballa / Alex Bagé / James Bernardes / Junior Santana / José Mario / LC Vasques / Shazam / Gilson Souza / Victor Alves

https://www.youtube.com/watch?v=RLjvay_P0vY

Se sentindo cada vez mais pressionada e vendo sua permanência na Marquês de Sapucaí cada vez mais ameaçada, a Alegria da Zona Sul resolveu apostar em uma “bola de segurança” nesse enredo sobre Ogum. O resultado, pelo menos por enquanto, foi bastante satisfatório e a escola tem em 2016 um dos melhores sambas de sua história. Mesmo sem ser uma composição histórica ou extremamente acima da média, é um samba de muita qualidade que está entre os melhores do ano.

O refrão principal tem uma construção melódica densa, pesada, em perfeita ordem com a letra que faz uma saudação a Ogum. Gosto muito da ideia de iniciar o samba com os versos “Quando toca o adarrum / É batuque pra Ogum”. A ótima e homogênea construção melódica do samba dá uma leve derrapada pela falha na métrica dos primeiros versos da primeira parte: “Vamos bater os tambores / Exú vai guardar os caminhos”. Por outro lado, a construção melódica do verso “Floresce a vida no ayê” é bastante criativa e muito agradável aos ouvidos. A estrofe ainda apresenta algumas subidas de tom muito bem feitas no verso “Descobre os minerais, a forja de metais”.

Outro ponto de destaque do samba da Alegria da Zona Sul é o refrão do meio. Os desenhos melódicos são bastante diferentes do que é apresentado no resto do samba, mas tanto a entrada quanto a saída foram muito bem arranjadas, como se nota claramente em “Ele é, ele é… Soberano Onirê”, que é o primeiro verso, e “E seu nome correu terra, céu e mar”, o último. Por outro lado, a letra não apresenta a clareza necessária no verso “Com o seu alakorô vai conquistar”, onde não se entende exatamente o que Ogum vai conquistar.

A segunda parte começa influenciada pela construção melódica bem feita da saída do refrão e tem uma descida de tom muito bem armada em “Baixando as armas voltou ao Orun”. O ponto alto da estrofe é a transição melódica no verso “E então vai começar o ritual”, que surpreende e não cansa. Daí em diante, diga-se, o samba aposta em um andamento mais lento e por uma letra que descreve bem a devoção à Ogum. Bastante melodioso, o trecho nos leva sem sobressaltos para o refrão principal e fecha com muita competência o ótimo samba da Alegria da Zona Sul. Tiganá tem boa condução do samba, mas se perde pelo excesso de gritos na hora de cantar.

4) Paraíso do Tuiuti: “A Farra do Boi” – Daniel Silva e Ciganerey

Composição: Rafael Júnior / Jorge Maia / W Correia / Dilson Marimba / Cláudio Russo

Esse samba é uma das mais gratas surpresas do ano. A construção melódica é, sem sobra de dúvidas, uma das melhores dos últimos anos e faz com que o samba simplesmente não canse. A letra é inteligentíssima, faz uso de boas sacadas e reproduz com muita clareza a história que será contada pela escola de São Cristóvão. As rimas também são todas muito bem construídas e o conjunto da letra apresenta conexão entre suas partes, fazendo com que a história tenha início, meio e fim.

Gosto bastante do refrão principal que consegue estabelecer boa conexão entre o cenário retratado no enredo e o morro. O destaque, ao meu ver, é a passagem “Desce o morro, faz a farra / Arretada Tuiuti”. O início da primeira parte, por sua vez, tem uma das melhores letras de todo o Carnaval de 2016: “Ser tão criativo nos sertões da fé / Pra não ser mais um ao deus-dará”. Excelente. Também há de destacar a passagem melódica em “No Ceará” e a ótima rima em “Contam que a água rareia / E a fé aperreia a imaginação”. A primeira parte na verdade é dividida em duas estrofes, com uma mudança clara de uma para a outra. Clara e muito bem feita, pontue-se. Nessa segunda estrofe da primeira parte, agrada-me muito a passagem “Oxente, um presente ao padinho / Um danado de um boi mansinho”. Por outro lado, a mudança feita pela escola que provocou uma subida de tom no verso “Fez causo popular, laiá, laiá…” arrebentou com o conjunto melódico de maneira incômoda.

O refrão do meio é outro ponto altíssimo do samba por conta da melodia animada e dos versos muito bem tirados: “Quem foi que mandou o chuvaréu? / É água, meu Deus! Tá caindo o céu”. A primeira estrofe da segunda parte começa também com muita competência, deixando muito claro o protagonismo do Boi Zebú no enredo. Nesse trecho, aparecem duas passagens melódicas bastante interessantes: “Virou xodó, floresceu a plantação” e “Ê, boi ápis do sertão”. Esse verso também serve de transição para o trecho final, que começa com a morte do boi e ganha contornos poéticos interessantíssimos: “Parte, mas deixa a saga / Que o tempo afaga pelas mãos de Vitalino”. Isso sem falar no maravilhosamente melodioso verso “Cadê o boi? Tá bumbando na quermesse!”. Daniel Silva tem uma das melhores performances de todo o CD e agrega e agrega muito ao ótimo samba da Tuiuti.

3) Império Serrano: “Silas Canta Serrinha” – Pixulé

Composição: Arlindo Cruz / Aloisio Machado / Arlindinho / Andinho Samara / Zé Glória / Lucas Donato / Ronaldo Nunes

Eis aí um samba que considero extremamente subestimado. Embora não tenha tido uma boa primeira impressão da obra, ainda no dia em que foi inscrita na disputa, hoje reconheço que é uma composição de muita qualidade e cuja letra também figura entre as mais belas e inspiradas de todo o Carnaval de 2016. A melodia, que a princípio me causou um pouco de estranhamento, é bastante criativa e tem desenhos musicais ricos. É um samba mais “pesado” do que a Serrinha está acostumada a apresentar, o que não implica em ser menos competente. Muito pelo contrário.

Como não podia deixar de ser, o samba é cantado em primeira pessoa pelo próprio Silas de Oliveira, o que facilita bastante a compreensão da letra. Gosto demais do refrão principal, mas especialmente dos dois últimos versos. “Esse é o povo que me consagrou” é uma prova da forte relação entre Silas de Oliveira e o Império Serrano e “Imperiano volte ao seu lugar: vencedor!” é quase uma convocação para que toda a Serrinha vá à luta e faça a escola voltar ao seu lugar, que é o Grupo Especial. A primeira parte mostra com muita beleza a história da escola como se vê em “Talvez a mais bela de uma favela” e chama a atenção para os primórdios do bairro de Madureira com Silas cantando que “foi assim que meus avós contaram”. Essa sacada é muito inteligente.

Ainda na primeira parte aparece um outro trecho muito bonito: “O negro fez do morro moradia / Pedindo ao rei banto proteção, saúde… / Como nos bons tempos de além-mar”. As origens da região que hoje abriga o Império Serrano estão marcadas pela forte presença de escravos e esse trecho aponta com muita clareza a esperança dos escravizados por um futuro próspero como o passado vivido na África. Há de se apontar também a construção melódica suave, onde os versos ganham espaçamentos longos. É curioso que o samba em alguns momentos  – como no trecho destacado no início do parágrafo – parece estar perto de “explodir”, mas essa “explosão” vai sendo adiada até o refrão do meio.

A levada deste refrão é maravilhosa. Se o samba não tem muito a cara do Império Serrano, o mesmo não podemos dizer dessa estrofe. Aí aparecem duas coisas que me chamam atenção. A primeira é a excelente passagem “Veio gente da estiva, da resistência também / Todo mundo chegou no balanço do trem”. A segunda é uma das coisas que mais me agradam em refrães de meio: a continuidade na estrofe seguinte. O último verso ganha um prolongamento sensacional no primeiro verso da segunda parte: “Ô ô tinha samba na rua”

Essa estrofe, aliás, também tem letra muito esclarecedora e mostra os passos que levaram ao surgimento do Império Serrano. Gosto do trocadilho com a escola Prazer da Serrinha para apontar o surgimento do Império: “Foi com prazer que eu desci a Serrinha / Numa noite dourada, num sonho real / Estava nascendo o Império Serrano / Reizinho do meu lugar / Pro santo guerreiro abençoar…”. Esse verso, aliás, foi muito bem pensado e encaixou muito bem a transição melódica para uma última estrofe antes do refrão principal. Uma estrofe absolutamente extraordinária. Além de ser muito melodiosa, apresenta ainda uma letra linda. Embora haja uma concorrência muito forte com um outro samba que veremos adiante, talvez seja a mais linda de todo o CD em termos de letra.

“Quando parti… De longe eu vi mudar / Tudo se modernizar…”. Aqui é flagrante a menção à morte de Silas de Oliveira. Esse segundo verso puxa uma passagem que se aproveita de um dos versos mais famosos do homenageado para construir uma letra sensacional. “É a evolução… A brisa que afaga a juventude / Com charme e negritude / Mas a arte se eternizou / Nos baluartes que mostraram seu valor”. É genial. Ao mesmo tempo em que relembra o “essa brisa que a juventude afaga” de “Heróis da Liberdade” para falar dos tempos modernos e da evolução “Com charme e negritude”, o samba faz questão de lembrar que a arte foi eternizada pelos antigos, pelos baluartes que fizeram a história do Império Serrano “mostrando seu valor”. Simplesmente magnífico. Um sambaço! E para ajudar, Pixulé tem um desempenho assombroso na gravação, provando mais uma vez ser um dos melhores cantores da atualidade.

2) Renascer de Jacarepaguá: “Ibejís – Nas Brincadeiras de Crianças: Os Orixás que Viraram Santos no Brasil” – Diego Nicolau e Evandro Malandro

Composição: Cláudio Russo / Teresa Cristina / Moacyr Luz

https://www.youtube.com/watch?v=fUI2OlvLCTc

Esse samba é de uma felicidade raríssima. Em qualquer dos últimos 10 ou 15 anos do Grupo de Acesso seria o melhor samba inédito do grupo. Ao meu ver, é melhor inclusive que os dois últimos da própria Renascer de Jacarepaguá. Como já comentei aqui, acho que anda faltando muita leveza no Carnaval. E esse samba é de uma leveza tão grande que merecia ser tocado até nos bailes. É alegre, brincalhão e passa deixa as mensagens importantes que tem para passar para uma audição mais atenta. Ou seja: serve para brincar, se divertir sem compromisso e também tem qualidade musical de letra e melodia inquestionáveis.

O refrão principal me dá uma muito incomum (repetindo o que falei para o samba da São Clemente na semana retrasada) vontade de ser um desfilante. A melodia é deliciosa. A grande sacada é pegar expressões e brincadeiras de criança que são conhecidíssimas de todo mundo para, no fim das contas, passar um recado dos mais importantes: “Quero futuro pro meu bê-à-bá”. A criatividade é o ponto forte também quando falamos de melodia. Depois de um refrão extremamente empolgante, o samba começa com uma descida de tom maravilhosa em “Hoje a Renascer de Jacarepaguá”. Também há de se elogiar muito a passagem “Um tabuleiro de doces / Sinhá mandou preparar / Cocada branca, paçoca / E bolo com guaraná”.

O samba não tem um refrão central, mas sim uma estrofe de meio que também começa com uma descida de tom linda. Novamente, a composição vai crescendo e se faz valer de expressões conhecidas do grande público: “O cravo brincou com a rosa / A flor se abriu em botão / Pai Francisco entrou na roda / Tocando o seu violão”. É claro que a ideia de colocar o Pai Francisco tocando violão no meio do samba é extraordinária, mas tem como deixar de dizer que o ponto mais brilhante do samba é essa licença poética no primeiro verso? Todo mundo sabe que a cantiga diz que o cravo brigou com a rosa. Mas, no samba, nas brincadeiras de criança da Renascer, o cravo e a rosa brincam juntos e a flor se abre em botão. Isso é coisa de gênio.

A uniformidade do samba é algo interessante. A terceira estrofe usa a mesma construção das duas anteriores: uma descida de tom muito bem feita e o samba crescendo melodicamente a cada verso até atingir ao ápice no final. Mesmo usando expressões de difícil entendimento, a estrofe apresenta clareza. Doum é apresentado como o mensageiro dos orixás que está presente em todos os lugares. Os dois versos finais do samba também merecem todos os aplausos. Toda vez que ouço “Nas matinês dos carnavais / Batalhas de confetes no salão!” consigo imaginar exatamente essa batalha de confete no salão embalada pelo próprio samba. É um casamento perfeito entre letra e melodia. O samba, ainda por cima, não poderia estar em melhores vozes que não a dessa dupla excepcional formada por Diego Nicolau e Evandro Malandro.

1) Unidos do Viradouro: “O Alabê de Jerusalém, a Saga de Ogundana” – Zé Paulo Sierra

Composição: Paulo César Feital / Zé Glória / Felipe Filósofo / Maria Preta / Fábio Borges / William / Zé Augusto / Bertolo

Uma obra-prima daquelas que não aparecem todo dia. O samba da Viradouro é uma das obras mais brilhantes que já tive a oportunidade de escutar até hoje. Muito se diz que é o maior desde “O Dono da Terra”, considerando apenas o Grupo de Acesso, mas eu acho que dá para ir além. Quanto, não sei. Mas é uma obra arrebatadora e emocionante tanto na letra espetacular quanto na linda melodia. Foi outro raro caso de samba concorrente que me conquistou logo na primeira audição, sem que eu precisasse me esforçar para perceber as sacadas da letra e os desenhos musicais.

O enredo passa uma clara mensagem de paz e tolerância que tem como marca maior a presença de um africano na vida de Jesus Cristo. Por isso, os compositores já começam pelo refrão principal misturando orixás das religiões africanas com um santo católico. A mensagem é reforçada de maneira brilhante porque tudo isso é interligado pela própria escola, que saúda Oxum e Xangô e lembra que São João Batista é o protetor da escola. A cabeça do samba tem uma melodia mais acelerada e, ao mesmo tempo, extremamente bela, recorrendo novamente a Oxum, Xangô e ainda à Olodumaré. Convém aqui reparar que até este momento o eu-lírico do samba é um sujeito indefinido. Isso muda através de uma primeira parte muito bem construída que merece atenção especial.

Este eu-lírico indefinido pede: “Que o africano caminheiro / Desça em solo brasileiro / Pra falar da luz de Nazaré”. Ao mesmo tempo em que pede para o Alabê de Jerusalém transmita seus ensinamentos, o samba já o apresenta como “africano caminheiro” e, na sequência, como “porta-voz da harmonia e da paz” e “mensageiro dos orixás”. Na sequência, começa a se preparar a grande sacada do refrão do meio: “Enfim, já baixou na Aldeia / Que Aparecida clareia / Com a bênção do Cristo Redentor / E a Sapucaí incendeia / Na chama da sua candeia… Incorporou”. Durante todo esse trecho mostra-se o Alabê “descendo em solo brasileiro”. A presença dele ali naquele contexto do desfile fica marcante. O Cristo Redentor abençoa, a Sapucaí pega fogo (diga-se de passagem, gosto muito da ideia de retratar a Avenida como uma “Aldeia / Que Aparecida clareia / Com a bênção do Cristo Redentor” – isso é muito bonito,,,). Pois agora note o “Incorporou” do último verso. Neste momento, a Viradouro passa a incorporar o próprio Alabê de Jerusalém.

E é por isso que a partir dali o samba começa a ser cantado pelo próprio Alabê de Jerusalém em primeira pessoa! É espetacular! Vocês já devem ter notado como eu sou implicante com essas mudanças de sujeito no meio do samba… Por isso mesmo toda essa construção da letra usada para fazer essa transição me deixou de queixo caído. Mais ainda porque a mensagem do refrão do meio é muito bonita. Além da apresentação “pessoalmente” da personagem principal, tem o recado claro: “Vim falar de amor, de tolerância e igualdade”. Uma outra marca bastante louvável desse samba é a afirmação constante daquilo que se propõe a fazer.

A segunda parte, digo isso sem nenhuma brincadeira ou ironia, deveria estar colada na porta de cada centro religioso – seja lá de que religião for. Nem tanto pela saga do Alabê e de sua paixão por Judith, ambos destacados no início da estrofe com muita beleza, mas pelo que vem na sequência. “O Rei dos reis que conheci se espanta / E chora com essa guerra santa / E sangra esse planeta azul”. Os versos são bonitos por si só, mas ganham ares de genialidade quando contextualizados. Ogundana acompanhou Jesus Cristo. Logo, Jesus é o “Rei dos reis”. Fica claro então que ele desce em solo brasileiro para dizer que Jesus se espanta com tanta bobagem que se faz em nome dele aqui na Terra. Fala se não é para muito líder religioso botar a mão na consciência e pensar um pouco…

Mas, se a ideia era que ele baixasse especificamente na Sapucaí, é preciso colocar o Brasil no meio dessa história. E o samba faz isso com brilhantismo. Ainda mais se tratando de um país que sempre ficou marcado pela diversidade de crenças, os versos “Ó meu Brasil, cuidado com a intolerância / Tu és a pátria da esperança” são muito pertinentes. É uma mensagem para um país que tem recuado muito nesse sentido nos últimos anos. É outra coisa que muita gente tinha que ouvir para refletir um pouco.

“Um país que tem coroa assim tão forte / Não pode abusar da sorte / Que lhe dedicou Olorum”. Esse trecho me causou alguma estranheza no início, mas com uma leitura mais atenta da sinopse consegui perceber que era mais uma sacada brilhante. O enredo, já em seu trecho final, pede: “Demonstrai gratidão pelos elementos que Terra vos empresa”. Portanto, a tal coroa é a materialização desses elementos. Olorum, o criador de todas as coisas, dedicou ao nosso país, subentende-se, essa coroa, esses bens. O Brasil, portanto, tem que ser grato e saber preservar. Simplesmente espetacular. Zé Paulo Sierra conduz o samba com correção na maior parte do tempo, mas acaba exagerando na empolgação em um ou outro trecho.

Notas

Agora as notas para os sambas.

Acadêmicos da Rocinha: 4,7 (letra) + 5,0 (melodia) = 9,7

Alegria da Zona Sul: 4,9 (letra) + 4,9 (melodia) = 9,8

Unidos do Porto da Pedra: 4,8 (letra) + 4,7 (melodia) = 9,5

Acadêmicos de Santa Cruz: 4,7 (letra) + 4,9 (melodia) = 9,6

Unidos do Viradouro: 5,0 (letra) + 5,0 (melodia) = 10,0

Renascer de Jacarepaguá: 5,0 (letra) + 5,0 (melodia) = 10,0

Império da Tijuca: 4,8 (letra) + 4,5 (melodia) = 9,3

União do Parque Curicica: 4,9 (letra) + 4,7 (melodia) = 9,6

Paraíso do Tuiuti: 5,0 (letra) + 4,9 (melodia) = 9,9

Inocentes de Belford Roxo: 4,8 (letra) + 4,7 (melodia) = 9,5

Império Serrano: 5,0 (letra) + 5,0 (melodia) = 10,0

Caprichosos de Pilares: 4,6 (letra) + 4,7 (melodia) = 9,3

Unidos de Padre Miguel: 4,9 (letra) + 4,9 (melodia) = 9,8

Acadêmicos do Cubango: 4,8 (letra) + 4,9 (melodia) = 9,7

6 Replies to “Uma análise sobre o CD da Série A do Carnaval do Rio de Janeiro”

  1. Fiquei emocionado a primeira vez que ouvi quando a escola escolheu o samba da Unidos da Viradouro. Cada vez que ouço a escola cantando esse fantástico samba fico extasiado e torcendo pra que ela volte logo ao seu lugar que é o grupo especial assim como a Império Serrano. O Alabê de Jerusalém é sem duvida o melhor e mais atual enredo que uma escola de samba poderia escolher para tema neste momento de intolerância e retrocesso cultural e histórico em nosso país. Simplesmente fantástico! Pena que somente uma escola possa subir para o especial pq minha torcida é para a Viradouro que na minnha opinião desceu injustamente este ano, porém Império Serrano corre bem atrás junto com a Renascer de Jacarepaguá.

  2. Gostei muito da análise Dahi, foi a melhor que li sobre o assunto, mas faço algumas ressalvas:

    1) inverteria as posições de Caprichosos e Porto, pois o samba de Pilares acho que não é essa tragédia toda que é o samba do Tigre.

    2) Curicica e Santa Cruz achei que ficaram muito pra baixo, pois são dois bons sambas ao meu ver.

    3) Invertia Alegria e Tuiuti, são dois ótimos sambas mas coloco a Alegria na frente por ser um samba mais valente.

    4) Esse 10 do Império Serrano diria que é inexplicável, o samba não é pra tudo isso.

    1. Agradecido, Carlos. Acho os dois sambas melhores do que as notas e as posições sugerem. O mesmo vale para Curicica. Tuiuti acho mais samba que Alegria. E o do Império Serrano eu acho brilhante. Sambaço mesmo.

  3. Dahi, discordâncias podem ocorrer aqui e ali. Em coisa de uma casa decimal para mais ou para menos. Porém, a clareza de sua defesa das notas é de nos fazer lamentar o que lemos a cada pós-carnaval, com justificativas estapafúrdias, sem pé nem cabeça, para notas esquisitas do júri oficial. Ou de parte significativa dele, para não generalizarmos. O que você fez demonstra cuidado, é ser meticuloso. E que intérpretes e compositores não se chateiem com esse tipo de análise (também atribui notas e fiz resenhas dos sambas da Série A e Especial). Se nos damos ao trabalho de ouvir com atenção e escrever é porque temos apreço e respeito pelo trabalho de quem se dedica à arte de compor e cantar. Parabéns. Oxalá os jurados tenham essa interpretação a respeito do samba do Império (paixão à parte, também me agrada muito).

    1. Gil, obrigado pela leitura e pelos elogios. De fato, o respeito por todos os compositores e intérpretes é imenso e não há motivo para que se pense porque eu avaliei mal cantor x ou samba y. Independentemente das notas serem iguais ou diferentes, torço para que haja esse mesmo respeito entre os jurados oficiais, para que o julgamento seja o mais coerente possível.

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