O estereótipo do carioca tem como um dos alicerces aquela história de que todo mundo que nasce por aqui tem um time de futebol e uma escola de samba.

Nem sempre é assim, é claro. Conheço bastante gente que não liga para futebol e se declara sem time. E mais gente ainda que não tem preferência alguma em relação às escolas de samba. Pessoas que preferem passar longe da Sapucaí durante o carnaval. Ou ignoram o carnaval. Ou torcem para aquela que acham mais bonita naquele ano. Aquela cujo samba tocou mais fundo a alma naquele desfile. Sem compromisso com a fidelidade que, teoricamente, se deve dedicar ao time de futebol.

Mas a nossa imagem foi criada nesse binômio e acho saudável que seja assim. Especialmente para as escolas de samba, que têm a sua importância cultural muito mais ameaçada, por diversos fatores, do que o futebol. Enquanto o estereótipo do carioca torcedor do clube e da escola sobreviver, maiores as chances das escolas sobreviverem.

Andei pensando nisso nos últimos dias por causa da polêmica da (não) transmissão de parte do desfile e, também, pelas opiniões divergentes com relação a um fenômeno relativamente recente do universo das escolas: as torcidas organizadas do samba.

Para começo de conversa eu sempre fui refratário à ideia de associar intimamente clubes de futebol e escolas de samba. Nunca concordei mas lembro do meu pai, botafoguense e portelense, dizer que flamenguista tinha que ser mangueirense e vice-versa, manifestando ser ele de “estirpe” distinta. Essa hipotética afeição Botafogo-Portela teria origem nos ensaios da azul e branca de Madureira no Mourisco, antiga sede alvinegra, lá pelos anos 1970/80, quando o samba da Zona Norte tentou quebrar as barreiras da cidade partida invadindo a Zona Sul e cativando, significativamente, foliões do lado de cá (ou de lá) do Rebouças.

Bem, posso citar zilhões de exemplos que desmentem a teoria de que Mangueira e Flamengo são paixões que devem caminhar juntas. Cartola, Jamelão, Beth Carvalho. Nenhum deles é ou era rubro-negro, pelo que me consta. Tampouco Monarco, Paulinho da Viola ou João Nogueira são ou foram botafoguenses. Taí o editor deste Ouro de Tolo para comprovar minha tese de que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Águia e Urubu dividem o mesmo ninho no coração do Migão.

Desvincular paixão clubística de paixão sambística sempre fez bem ao carnaval carioca. Para que associar um time a uma escola? Para que trazer torcida organizada de futebol para o samba? Deu certo em São Paulo? Não sei. Tenho pouquíssima vivência do carnaval paulista para avaliar. Fico feliz de que aqui essa ideia nunca tenha ido adiante.

Em 2013 fiz uma reportagem com alguns torcedores organizados do samba carioca. Pareceu-me gente de bem, interessada em apoiar a agremiação, levar bandeiras e canto aos ensaios técnicos, uma vez que no desfile principal os preços e as próprias regras para entrada no Sambódromo não permitiriam faixas, bandeiras, balões, enfim, um grupo organizado lado a lado no mesmo setor.

Há coisa de poucos dias o RJTV fez série de reportagens semelhante.

Na Portela, grupos surgidos na internet e torcedores organizados tiveram papel importante no processo de mudança política interna da escola, especialmente na oposição ao ex-presidente Nilo e na cobrança por mais transparência. Isso ocorreu em vários clubes. Elementos egressos das arquibancadas tornando-se conselheiros. A sede pelo poder e a ambição por cargos afastou muitos de seus propósitos originais. Uma vez mais, torço para que, na engrenagem das escolas, os objetivos iniciais de oxigenar antiquadas estruturas políticas sejam mantidos por estas pessoas.

No primeiro fim de semana dos ensaios técnicos para 2016 vi uma torcida organizada da Vila Isabel no setor 3. Bandeirões no estilo Maracanã e até aquelas faixas nas cores da escola/clube, típicas das “hinchadas” argentinas, de cima a baixo da arquibancada. Guerreiros de Vila Isabel, se chamavam (se não me equivoco).

Naquele momento, a minha impressão pessoal, depois até compartilhada em alguns fóruns na internet, foi a de que aquela parafernália pudesse estar atrapalhando a visão de quem escolheu o setor pela proximidade com o esquenta da escola, sem saber que bandeiras enormes se manteriam desfraldadas durante toda a apresentação. Sinceramente, não sei se houve confusão, reclamação, nada disso. Só foi algo que passou pela minha cabeça.

Um receio. Medo mesmo. Será que esse movimento que nasceu do desejo de torcer pela escola de samba favorita – algo tão carioca, afinal – pode virar o fio em breve? Pode se transformar num movimento sectário, até agressivo? Será que, num futuro próximo, assim como já ocorre em Sampa, duas ou mais escolas não poderão desfilar no mesmo dia para evitar confrontos entre bandidos travestidos de torcedores? Às vezes nem por uma questão de rivalidade, mas por infiltração de gente ligada a lados A, B ou C da vida em seus bairros de origem? Será que essas torcidas são como ovos de serpente, que vão germinar a destruição da convivência pacífica que sempre imperou no samba? Será que, a exemplo dos grupos organizados do futebol, crescerá o falso conceito de que apenas quem veste aquela camisa, bate aquele bumbo e balança aquela bandeira sabe, verdadeiramente, torcer? Que os demais, a quem os uniformizados do futebol chamam de “povão”, são torcedores de segunda categoria, de menor importância e indignos representantes daquela associação?

Não tenho a resposta. Não sou favorável a censurar ou proibir nenhum movimento popular legítimo e, por ora, pacífico. Mas me preocupo. E torço, no melhor sentido da palavra, que as escolas de samba continuem encantando e conquistando corações. Cariocas e brasileiros. E que todos tenham uma escola favorita. Mas que, acima de tudo, sejam sambistas. Gente bamba que tem coração multicolorido, onde cabem diferentes combinações cromáticas. Como deve ser.

Falando em convivência pacífica e tolerância, um Feliz Natal a todos. Que os toca-discos (expressão que revela a idade) possam fazer ecoar surdos, tamborins, caixas, agogôs na Noite do Bom Velhinho. Pelo menos lá em casa noite de Natal sempre teve samba enredo dividindo espaço com jingle bells.

[N.do.E.: em janeiro de 2013 escrevi artigo com alguns dados sobre a correlação entre torcidas por escolas de samba e times de futebol. Pode ser visto aqui. PM]

Imagem: O Globo