Não se preocupem. Não falarei de nenhum possível confronto sangrento entre o tráfico e a PM em num morro paradisíaco carioca.

O Rio de Janeiro é uma cidade que se desenvolveu numa área povoada por montanhas que se estendem rumo ao mar. Aproveitando este relevo peculiar da próxima sede dos Jogos Olímpicos, os responsáveis por montar o trajeto da prova do ciclismo de estrada não decepcionaram.

As Olimpíadas tem tradição em dificultar a vida dos esportistas de modalidades que envolvem algum tipo de percurso. A prova do ciclismo de estrada é considerada, no jargão do esporte, como uma clássica, ou seja, uma corrida disputada em único dia. Este tipo de prova também tem como característica relevos ou estradas peculiares e quilometragem longa.

Enfim, todos esses ingredientes citados neste parágrafo estarão inseridos no trajeto olímpico do ciclismo de estrada. Para felicidade geral dos fãs e daqueles que temiam um insosso passeio no Aterro do Flamengo, sob a desculpa de tentar facilitar um extremamente improvável bom resultado de um brasileiro – algo costumeiro dos comitês locais para com seus melhores atletas.

No sábado, seis de agosto de 2016, o pelotão masculino encarará mais de 250km, partindo do Forte de Copacabana, seguindo sentido oeste da cidade, pela orla (ou próximo dela), passando por Copacabana, Ipanema, Gávea, Barra da Tijuca e a Praia de Reserva, numa parte relativamente plana, com um “sobe e desce” leve, que não deve causar problemas.

Praia / BeachChegando à Praça Tim Maia, começa o primeiro momento chave da prova, o circuito Grumari. O pelotão segue a Estrada do Pontal, a Avenida Estado da Guanabara, Rua Profª Francisca Caldeira, até atingir a Estrada do Grumari, com a primeira subida relevante do dia. São 1200 metros a uma inclinação média de 7,1%. Pelos números, a subida parece ser tranquila. Mas, há pontos de 13% de inclinação, fora que a estrada é estreita. Com quatro passagens, já haverá gente ficando para trás aqui.

Seguimos pela Avenida Estrada Velha da Barra de Guaratiba, Estrada Burle Marx e Avenida das Américas, onde está a segunda subida desse circuito: a Serra da Grota Funda, com 2,1km a uma média de 4,5%. Portanto, essa sim uma subida bem sossegada, mas que pode ser local propício de um ataque de algum aventureiro especialista em fugas, alguém que ameace a prova, ao contrário dos primeiros fugitivos, de países não tradicionais que devem se apresentar ainda ao largo da orla.

O Circuito ainda tem 2km de paralelepípedos na Rua Profª Francisca Caldeira, antes da Serra do Grumari. Não conheço profundamente o estado das pedras, mas, dependendo, pode ser que haja gente sendo prejudicada aqui, o que potencializa o perigo da subida na sequência. Lembrando que são quatro voltas, o que pode causar uma boa quebra do pelotão, fora o acúmulo de cansaço daqui para frente.

A prova retorna sentido leste, pelo mesmo caminho da ida, pela Estrada do Joá, até atingir a Estrada das Canoas. Aqui devem começar as hostilidades.

Foto mostra um dos trechos da estrada na Zona Sul do Rio
Foto mostra um dos trechos da estrada na Zona Sul do Rio

O trajeto busca a Estrada da Gávea Pequena, até alcançar o momento crucial da prova: a Vista Chinesa. Desde o pé da Estrada da Canoas até o mirante serão importantíssimos 8,9km, seguidos por uma íngreme descida de 6km rumo ao bairro do Jardim Botânico. Os ciclistas percorrem, em sentido horário, ruas da região, alcançando a Avenida Niemeyer (e mais uma subida, que apesar de ser mais fácil que as outras do circuito, será um fator), Estrada da Gávea e, novamente, buscando o caminho para Vista Chinesa. Mais duas vezes.

O lado da Vista Chinesa que será percorrido no sentido da subida tem 5,7% de inclinação média, enquanto o da descida tem 10% em cerca de 3,5km. Na minha visão, um acerto, já que uma inclinação menor e uma subida longa proporcionam mais ataques pela liderança da prova, além de mais alternativas táticas. Um maior gradiente tira a explosão dos ciclistas, e a prova vira uma sobrevivência um tanto chata. A parte mais inclinada sendo na descida também requererá técnica, o que poucos têm nessa situação – além disso, há vários grampos neste lado.

Saindo da Vista Chinesa, os ciclistas seguem num trecho plano rumo ao Forte de Copacabana, onde a prova se encerra. O vencedor deve encerrar a prova entre seis e sete horas após a largada.

O circuito feminino, que será percorrido no dia seguinte, sete de agosto, é idêntico ao masculino, só que com uma passagem apenas pelo Circuito Grumari e Vista Chinesa (ao invés de quatro e três, respectivamente), e 120km a menos.

Já as provas de contrarrelógio usarão apenas o Circuito Grumari, partindo e chegando na Praça Tim Maia, e incluindo a subida da Serra do Grumari. Esse tipo de prova, que é por tomada de tempo, acontece na quarta-feira, 10 de agosto, tanto para homens, quanto para mulheres.

A prova em linha (como se chamam as corridas tradicionais, com largada em massa) deve ser dominada por ciclistas que se dão bem em provas como a Liège-Bastogne-Liège, clássica tradicionalíssima disputada anualmente na Bélgica, em abril, e que é marcada por inúmeras subidas como as do trajeto do Rio. Outro termômetro que pode ser utilizado é o Campeonato Mundial de 2013, percorrido num trajeto bem parecido, em Florença.

Aquela prova teve inúmeras quebras, e os ciclistas chegaram em grupos de dois ou três na linha de meta. Pelo fim plano, acho que deve ser o que ocorrerá no Rio. Acho difícil um único ciclista atacar na Vista Chinesa e seguir solitário a Copacabana – a não ser que seja um contrarrelogista bom…

Os ciclistas que são favoritos para esta prova incluem campeões das Grandes Voltas, como o italiano Vincenzo Nibali e os espanhóis Alejandro Valverde e Alberto Contador, assim como corredores que não tem cacoete para ganhar provas de três semanas, mas se dão bem num dia como este. Aqui coloco o espanhol Joaquim Rodriguez, o francês Tony Gallopin, o polonês Michal Kwiatkowski, e o português Rui Costa – foto abaixo – (os dois últimos são os dois últimos campeões mundiais, sendo Costa o vencedor da carnificina de Florença).

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Já adianto que será muito difícil um resultado bom, dentre os brasileiros, no masculino. Murilo Fischer, nome brasileiro mais marcante atualmente no cenário internacional já está em idade avançada e, apesar de ter ser forjado como um classicista decente e um sprinter (velocista), não tem característica para o desenho desta prova. Rafael Andriato, outro que está na Europa é um sprinter mais puro ainda, e terá mais dificuldades para sobreviver ao acidentado trajeto. Os outros que completarão a equipe devem vir do cenário nacional, no qual a distância olímpica é muito atípica.

Vejo uma fuga suicida no começo da prova e que resista até o fim como a única chance de algo bom acontecer para um brasileiro. Dada a dificuldade do trajeto, e o controle que deve ser fortíssimo das prováveis credenciadas equipes da Espanha e da Itália, essa possibilidade é altamente improvável, quase impossível.

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No feminino, existe o fenômeno Marianne Vos (foto acima). Holandesa, a moça ganha em qualquer tipo de trajeto (e não só na estrada) e domina o circuito feminino nos anos 2010. A também holandesa Anna van der Breggen vem despontando neste ano, e já é um nome a ser observado.

Se as chances de um resultado digno do Brasil são quase nulas no masculino, no feminino há Flávia Oliveira (de camisa verde, de melhor escaladora do Giro d’Italia Feminino, na foto abaixo), que faz uma ótima temporada de 2015, demonstrando muito talento como escaladora e tendo top-10s em competições importantes do circuito como o Giro d’Italia feminino – ou Giro Rosa – e o Tour da California.

Como o Grumari e a Vista Chinesa só serão percorridos uma vez pelas mulheres, torna-se mais difícil para Flávia Oliveira cacifar, já que há atletas melhores para o trecho plano a seguir. Fora que ela correrá, basicamente, sozinha, contras as fortíssimas equipes de holandesas e americanas, principalmente. Mas o improvável no feminino é plausível, e o ciclismo de estrada costuma ser um tanto imprevisível quando é para ser.

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Já o contrarrelógio, por incluir uma subida, deve dificultar a vida dos especialistas Tony Martin (alemão) e Fabian Cancellara (suíço, e um tanto veterano). Aqui pode ser a chance de ouro do atual campeão do Tour de France, Chris Froome. O britânico é um bom contrarrelogista e se dá bem em subidas. O perfil da prova em linha pode não ser duro o suficiente para ele, mas essa subida lhe dá boas chances no contrarrelógio. O holandês Tom Dumoulin, que vem surgindo como o terceiro grande nome da especialidade, já mostrou que sabe se defender em subidas e deve ter uma belíssima chance também.

No contrarrelógio, o Brasil não tem especialistas, então qualquer chance de bom resultado é basicamente nula.

Obs: As inclinações das subidas são medidas pela tangente do ângulo delas, multiplicado por 100, e lidos em porcentagem. Para facilitar, quando falo em 7,1%, significa que a cada 100m percorridos, 7,1m são ascendidos, em média. Uma inclinação acima de 5% já é suficiente para diferenciar ciclistas, quando as subidas são quilométricas. Um trecho de 13%, então, é um pouco menos inclinado que uma tradicional rampa de garagem de um prédio. Agora imagine isso por dezenas ou centenas de metros – ou quilômetros, em algumas montanhas clássicas do Tour de France ou Giro d’Itália. É por essas que os caras se dopam tanto…

Imagens: Sirotti, UOL