Em tempos em que a globalização, meritocracia e outras baboseiras da mesma laia parecem ter jogado pra debaixo do tapete a verdadeira essência do ser-humano – mais tratado como número do que como gente -, o futebol nos reservou esta semana mais uma daquelas histórias que, dentro deste microcosmo do esporte, fazem-nos ter esperanças de que tudo um dia pode voltar a seu devido lugar.

O protagonista em questão é o argentino Jonas Manuel Gutierrez, meio-campista do Newcastle United, que deu ao mundo uma lição de lisura, caráter e dignidade após o que fez neste fim de semana.

A história começa em 2013, quando Gutierrez – integrante da seleção de seu país que disputou a Copa do Mundo de 2010 – sentiu estranhas dores na região dos testículos, após uma partida contra o Arsenal pelo Campeonato Inglês.
Após exames, constatou-se que havia adquirido um câncer. Para surpresa e decepção do argentino, o bilionário Mike Ashley, dono do clube de Saint James Park, virou-lhe as costas e mandou que se tratasse no seu país natal, sem garantias de que permaneceria no clube, numa total falta de demonstração de humanismo.

Gutierrez lutou e voltou. Mas ao entrar pelos portões de seu clube foi comunicado: seria emprestado ao Norwich. Depois de mais alguns meses, a doença voltou a se manifestar e lá foi o jogador de volta para Argentina para mais uma bateria cruel de quimioterapia, sem nenhum tipo de ajuda de seu clube contratante

Nova vitória sobre o câncer. Mesmo sem nenhuma sinalização de que teria o seu contrato renovado, Gutierrez se reapresentou. Primeiramente, foi deixado de lado. Mas aos poucos foi retomando o seu lugar no time. Em março, voltou a jogar, contra o Manchester United, uma espécie de avant-premiere para o que aconteceu na tarde do último domingo, quando o destino acertou as contas consigo.

O Newscastle, clube de Gutierrez, precisava desesperadamente da vitória sobre o West Ham para permanecer na primeira divisão inglesa. Das grandes ligas europeias, a da Inglaterra é a que impõe o prejuízo mais pesado em caso de rebaixamento.

Pois bem… bola rolando. Nove minutos do segundo tempo, o argentino cruza na cabeça de Sissoko que faz 1 a 0. O tempo passa. O fantasma do rebaixamento ainda paira sobre Saint James Park. Mas eis que o argentino, como se tivesse sido possuído por anjo benfeitor disposto a deixar uma mensagem àqueles que têm o bem como norte, acertou um potente chute de fora da área. Dois a zero. Manutenção assegurada

Enlouquecido, Gutierrez corre para a frente da tribuna e põe as mãos sobre os ouvidos, como se estivesse a cobrar aplausos daqueles que, desumanamente, tanto o desprezaram. Uma espécie de “E agora, José?”.

Fim das contas. Aquele mesmo jogador que havia sido desprezado e mesmo discriminado por conta de uma doença foi o mesmo que, deixando de lado as mágoas naturais que poderia nutrir diante de uma situação dessas, para levar alegria a um povo que o apoiou. E mais: ofereceu a todos uma grande lição – na hora do “vamos ver”, é o homem, com todas suas virtudes e defeitos, mas, principalmente com a centelha divina que todos recebem, é quem resolve as adversidades.

No link abaixo, a primeira parte de uma emocionante entrevista que o jogador deu ao canal argentino Tyc Sports. As partes seguintes estão também no Youtube.

2 Replies to “A volta por cima de Gutierrez”

  1. Parabéns pela pauta e pelo belo texto. O Gutierrez realmente foi heroico. Um bom jogador, acima da média apesar de não ser um craque extraordinário, polivalente, raçudo e que sempre foi ídolo no Newcastle. Por isso mesmo, o tratamento desumano que deram a ele não fazia nenhum sentido.

  2. Quer mais um capítulo do tratamento desumano do Newcastle? O clube o dispensou cinco dias depois, sem dó nem piedade.

    Sério. Torço muito para a EPL 2015/2016 seja uma espécie de “todos contra o Newcastle”. Que caia e não volte tão cedo!!

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