Sabe aquela expressão “lendo de um fôlego só”? Pois eu li Nem a Morte nos Separa(Ed.Mauad X), livro escrito pelo jornalista Ricardo Gonzalez sobre o seu filho Rafael, de um sem-fôlego só.

A obra tinha tudo para caminhar pela perigosa trilha da autocomiseração e cair no piegas, afinal – e sabe-se desde sempre o final trágico da história – Rafael era um jovem em seus plenos 21 anos de idade quando foi diagnosticado com câncer. Ricardo foge do caminho óbvio ao colocar um tema tão delicado no papel, da mesma forma que teve uma atuação extraordinária como pai.

Devo adiantar que o autor é um amigo de há 30 anos, o que me fez tentar ler a obra com algum distanciamento, tarefa em que tive apenas parte do sucesso. Mas esta resenha é sincera, bem como o livro.

Eu e Ricardo nos conhecemos na Escola de Comunicação da UFRJ, há exatas três décadas. Frequentamos os mesmos campos de pelada e dividíamos a paixão pela música e pelo Flamengo. Chegamos a tocar numa banda (nós e os irmãos Randy e Sidney Merino) e acompanhamos juntos no Maracanã quase todos os jogos da conquista da Copa União de 1987 (quase sempre acompanhados pelo pai do Ricardo, o espanhol Constantino, que também valeria um livro só para ele).

Na época da banda, o Ricardo começou a namorar a Mônica. Eles engravidaram, e como a Mônica tocava teclado, logo foi incorporada ao grupo. Uma vez por semana, o Rafael, ainda na barriga da mãe-tecladista, ouvia os ensaios do Vira-Lobos. Quando nasceu, além dos pais, ele identificava a voz do tio-cantor aqui. Logo depois, mudei-me pela primeira vez para São Paulo e casei. Quando voltei ao Rio, foi a vez de Ricardo vir trabalhar na Folha. E, desta maneira, a vida foi desencontrando os amigos que, ainda assim, falavam-se de vez em quando, ao que a amizade dava mostras de que sempre se manteve viva.

Há poucos anos, antes de voltar a morar em São Paulo, marquei de me encontrar com o Ricardo no Maracanã. Surpreso, revi também o Rafael, que já era então um adolescente na virada para a vida adulta.

20140906_164124Pode parecer lugar-comum, mas eu atesto que é a mais pura verdade: Rafael era um moleque daqueles que dá orgulho nos pais e enchem a todos em volta de admiração. Era um promissor jornalista, especializado em esportes como o pai, mas mantinha viva a inquietude que o levava a se interessar por outras áreas, e estava cursando História também.

Ele e o Ricardo eram grandes amigos, desses de compartilhar mais que apenas tempo juntos. E uma das coisas que eles tinham em comum é uma visão bastante positiva da vida, uma felicidade contagiante, um otimismo sadio e o prazer de levar a vida construindo coisas bem feitas – matérias jornalísticas, carreiras, amizades, músicas.

Foi nesse cenário quase perfeito em que o Ricardo começou a escrever o livro porque, se havia alguma coisa errada com a saúde do filho, o relato serviria futuramente para contar como deram juntos a volta por cima. Depois, quando a situação tornou-se mais aguda, o livro poderia ter tomado o rumo de uma obra-denúncia sobre a precariedade da saúde no Brasil, tão profunda quanto o despreparo para lidar com situações atípicas, doenças terminais e com o lado humano da atividade médica.

Ricardo foge desses estereótipos, da mesma forma que soube fugir do sentimentalismo vazio, ou de vender uma “verdade” e uma “lição” a partir de fatos tão duros. O livro, ao contrário, tenta relatar com o bom-humor possível – o senso de humor e esperança que ligaram pai e filho – e com a serenidade cabível, a travessia de uma família ao longo de um ano de lutas que resultou num crescimento pessoal de cada um mas, infelizmente, no falecimento do Rafael.

Como narrador, Ricardo consegue a proeza de manter o leitor sem fôlego do início ao fim sem que, para isso, use qualquer subterfúgio emocional ou estilístico. Nem mesmo o recurso do suspense. O livro é absolutamente sincero. Emociona exatamente porque o autor não retira nem acrescenta nada artificialmente. Não há autopiedade, lamentações fora de lugar, exageros. Há a vida como ela é, ou pode ser às vezes, da forma como ela é. Sem explicações também, sem uma busca maluca por um sentido, sem revolta pela falta de sentido.

O que não significa que seja um livro frio, sem pesar, sem dor, sem lágrimas. Eu li entre soluços, mas não pelas minhas relações pessoais com os personagens, eu que tenho o Ricardo como a um irmão. Mesmo que não o conhecesse, eu teria perdido a linha da mesma forma, porque estava diante de um relato honesto, antes de tudo.

O lançamento do livro aqui em São Paulo foi em dezembro e, como disse o Ricardo, só o Rafael para fazê-lo reencontrar pessoalmente tanta gente querida. Saí da livraria já folheando e acabei a leitura dois dias depois. Às vésperas do Natal.

Desde então, fiquei com vontade de compartilhar a experiência com mais amigos. Falei várias vezes do “Nem a Morte nos Separa”. Foi exatamente por não tentar impor uma moral à estória que Ricardo deixou ao leitor o melhor legado: cada um repassa pelo caminho à sua maneira, tirando vivências e conclusões próprias e pessoais. No meu caso, eu acho que emergi da leitura um pouquinho melhor como ser humano.

20140906_164917Talvez o Ricardo consiga entregar um pouco do seu coração imenso junto com a sua história. Ele já tinha passado por tudo isso quando, mesmo à distância de 400 km, numa situação difícil para mim, foi o amigo mais leal que alguém pode ter. Mas você não precisa ter esta proximidade para perceber o tamanho do coração deste cara.

E, talvez por transitar numa vibração energética tão boa, coisas mágicas acontecem com este livro. Algumas são contadas ao final do próprio relato. Outras continuam acontecendo.

Outro dia mesmo, ao final do Sarau Até Quarta, eu recomendei o livro aos presentes. Não entrei em detalhes, não falei sobre o que era, só dei o título e sugeri a leitura. Quando já recolhíamos as cadeiras do evento, um autor presente veio me perguntar o nome do livro e a editora. Então, eu comentei sobre o tema, o porquê da minha sugestão. Pois o meu interlocutor disse que iria ler, sem falta, que também ele havia perdido há uns poucos anos um filho adolescente.

Dias depois, quando eu estava prestes a escrever esta coluna, a televisão do quarto ligada, vi no vídeo por acaso uma cena de “O Dia Depois de Amanhã” que o Ricardo relata no livro. É o dia seguinte ao aniversário de nascimento do Rafael. Não pode ser acaso.

Como não é de todo casual que eu, depois de adiar por duas semanas, publique esta coluna na semana do 50º aniversário do meu irmão Ricardo Gonzalez. Como a coincidência já estava praticamente feita, eu pedi ao editor que “subisse” a coluna na data de hoje, dia exato. Meu amigo comemorará no próximo sábado. Tive que recusar o convite de ir ao Rio, porque vou passar o final de semana fora, e já estava marcado quando ele combinou a festa. Os irmãos Merino devem estar por lá. Está programado tocarem alguma coisa da antiga banda, o Ricardo me pediu para tocarem uma composição minha. Nem precisava pedir, é claro.

Meu amigo, que a vida dê toda a felicidade possível. Agora a gente ficou velho o suficiente para saber que nada é por merecimento. Porque, se fosse, este livro teria sido, no máximo, ficção. Então, que seja pelo acaso, que ele lhe traga agora o que nós sabemos que a vida deveria ter dado, desde sempre, por tudo que você merece de bom.