O ano de 2000 prometia ser um marco na história do Carnaval de São Paulo. Pela primeira vez, os desfiles do Grupo Especial seriam realizados em duas noites, como já acontecia no Rio de Janeiro desde a inauguração do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, em 1984. Apesar da evidente defasagem em relação ao desfile carioca, a folia paulistana havia conseguido, nos últimos anos, atrair um grande público de fora da cidade vizinha e, agora, a meta seria fazer um desfile com uma grandiosidade ao menos parecida à do Estado vizinho.

Depois de vetada a ideia de se desfilar com 20 agremiações na elite, subindo assim todas do Grupo 1, o Grupo Especial seria formado pelo número – recorde, até então – de 14 agremiações, deixando as seis restantes no segundo grupo – número bastante baixo, a propósito. Apesar da euforia e do momento histórico, não faltavam motivos para que os amantes do samba paulistano se preocupassem.

Embora a audiência e a atração da mídia para os desfiles crescessem a cada ano, havia uma enorme incerteza quanto ao sucesso dos desfiles divididos em dois dias. Não havia a segurança geral de que o Carnaval de São Paulo já conseguisse sustentar desfiles na sexta e no sábado. Para piorar, no auge da crise do Governo Celso Pitta na Prefeitura de São Paulo, começava a se ventilar a hipótese do Parque Anhembi – e, por consequência o Sambódromo, ser privatizado, o que poderia provocar uma mudança no local das apresentações em um futuro bem próximo.

Para completar, até o dia da ordem dos desfiles, não havia se chegado a um acordo sobre quais seriam exatamente os dias do Grupo Especial. A ideia inicial era de que fossem no sábado e no domingo, batendo de frente, assim, com a primeira noite do primeiro grupo do Rio de Janeiro. Essa proposta era levada em conta porque uma corrente dentro da Liga acreditava que colocar os desfiles na sexta-feira provocaria o caos na Marginal Tietê, ali ao lado do Sambódromo. Além de ser um dia útil, é um dia onde muitos paulistanos resolvem sair para o litoral para aproveitar o feriado.

No fim das contas, optou-se por fazer os desfiles na sexta e no sábado, colocando a abertura no primeiro dia para as 22h30, evitando assim maiores transtornos no horário de pico. Por outro lado, não faltaram decisões polêmicas. A Liga mudou o critério de julgamento e reduziu o número de jurados de cinco para três. Só que, ao invés de descartadas a maior e a menor nota, apenas a menor seria eliminada. Com a ausência de critérios de desempate, isso seria um prato cheio para que houvesse uma chuva de empates na classificação final.

O maior problema no julgamento, porém, estava na questão dos jurados. Os julgadores não avaliariam todas as escolas, mas sim metade delas, já que trabalhariam em apenas uma das duas noites. A situação beirava o surreal: a escola que desfilava na sexta seria julgado por uma pessoa e a que desfilasse no sábado, por outro. A Liga também resolveu intervir na questão dos enredos. Como se sabe, em 2000 foram comemorados os 500 anos do descobrimento do Brasil e, tal como no Rio de Janeiro, resolveu adotar um Carnaval temático.

A imposição de temas, porém, não se limitou a obrigar as agremiações a falar sobre os 500 anos de Brasil. A Liga tomou uma decisão, ainda antes dos desfiles de 1999, que merecia palmas pela criatividade, mas que engessou ainda mais as escolas. A história do Brasil foi dividida em 14 partes e caberia a cada uma das escolas contar uma parte. Mais do que isso: os desfiles seriam cronológicos. Ou seja: a agremiação que abrisse o Carnaval ficaria com a primeira parte, a que viesse em seguida com a segunda e assim sucessivamente.

Assim, coube a campeã do Grupo de Acesso, a Tom Maior ficou encarregada de falar sobre os primeiros anos após a chegada dos portugueses, de 1500 a 1520. O Camisa Verde e Branco pegou o período de 1520 a 1580, a Mocidade Alegre de 1580 a 1654, a Águia de Ouro falaria dos anos entre 1654 a 1700, a Leandro de Itaquera de 1700 a 1730, o ciclo da ouro e a X-9 sobre o ciclo do café, de 1730 a 1770. Encerrando a primeira noite de desfiles, por escolha própria, a Gaviões da Fiel contaria os anos que antecederam a chegada da Família Real, de 1770 a 1807.

Voltando ao Grupo Especial, o Morro da Casa Verde ficou com o período de 1807 a 1840, enquanto a Unidos do Peruche contaria o que ocorreu no Brasil de 1840 a 1889, ano da proclamação da República. A Imperador do Ipiranga contaria a história da República Velha (1889-1930), enquanto a Nenê falaria sobre a Era Vargas nos anos entre 1930 e 1945. A Rosas de Ouro ficou com os anos anteriores ao Golpe Militar (1945-1964), ao passo que a Tucuruvi contaria a história dos anos de chumbo, que duraram de 1964 a 1984. Por fim, também escolhendo sua posição de desfile, a outra campeã de 1999, Vai-Vai, falaria sobre os anos mais recentes, no período entre 1984 e 2000.

Em 3 de março de 2000, o livro da história do Brasil enfim foi aberto com o desfile da Tom Maior. A escola, no entanto, teve que esperar vinte minutos para iniciar o desfile “Brasil… Amor à primeira vista”. O motivo: as apresentações estavam marcadas para as 22h30, mas a Globo só abriu a sua transmissão as 22h50. Quando a emissora carioca enfim entrou com imagens diretas do Anhembi, o cronômetro foi disparado e o Carnaval de 2000 teve início.

Contando com a luxuosa presença de Rixxa no comando do carro de som, a vermelho-e-amarelo do Sumaré tinha um samba apenas razoável para contar o início da história do Brasil. Muito antes de ficar conhecido por seus enredos distintos, o estreante Cláudio Cebola buscou no deus Netuno o ponto de partida para desenvolver seu enredo. Netuno entrava na história como o deus do mar, em uma associação ao desejo de explorar os mares.

Uma bela comissão de frente trouxe as reuniões da Escola de Sagres, que definiam as navegações portuguesas, sendo seguida por um modesto abre-alas que ainda falava sobre as tais reuniões. A escola apostou em uma longa introdução sobre Portugal antes de entrar propriamente na questão do descobrimento. Alas trouxeram a situação econômica e política dos lusitanos em fantasias de acabamento simples, mas de fácil leitura, com desenhos que remetiam a vestimentas tipicamente portuguesas.

Depois, a vermelho-e-amarelo entrou na viagem de Cabral e cia. propriamente dita. Cebola lembrou a teoria de que o Brasil foi descoberto por acaso e, na bateria, brincou ao intitular a ala de “Batedores de Cabral”, que teriam sidos os primeiros a desembarcar por aqui. A bateria, aliás, teve um desempenho bastante modesto e praticamente desapareceu atrás do vozerão de Rixxa. O ponto negativo do desfile foi, de longe, o conjunto alegórico. Pobre e mal acabado, pecando na concepção e de difícil leitura, o segundo carro, “Misterioso mar” ficou marcado apenas pela presença do ator Gerson Brenner que já sofria as consequências do tiro na cabeça que havia levado meses antes.

O que veio em seguida também não foi lá muito animador. Para piorar, um dos carros ainda quebrou no meio da Avenida e a escola teve problemas de evolução. Apesar da apresentação simpática e das fantasias razoáveis, a Tom Maior era forte candidata a uma das duas últimas colocações e, assim, a voltar ao Grupo 1.

Tentando voltar a brigar pelo título, o Camisa Verde e Branco deu sequência ao desfile com o enredo “Mare Liberum, nas terras de Ibirapitanga”, que falava um pouco sobre os primeiros anos do país como colônia portuguesa. O Trevo da Barra Funda, no entanto, fez mais uma apresentação decepcionante nos quesitos plásticos e, mais uma vez, não conseguiu empolgar a Passarela. Apesar do excelente trabalho do sempre criativo Tito Arantes, o Camisa trouxe alegorias pouco luxuosas para o Anhembi.

O enredo falava sobre capitanias hereditárias, visitas dos franceses e o surgimento da primeira cidade do Brasil, São Vicente. Tito Arantes, como dito, teve que usar de muita criatividade para compensar as dificuldades financeiras. Aproveitando a cor da escola em um enredo que muito falava sobre vegetação, ele usou de muitas tonalidades de verde para criar fantasias de bom efeito. Nas alegorias, trabalhou com muitas palhas para remeter ao universo dos índios em alguns carros – um deles, o da fundação de São Paulo, com a presença de Orlando Villas-Bôas, então com 86 anos.

O abre-alas, apesar de excessivamente pequeno, estava bastante colorido e tinha esculturas bem acabadas. Foi, ao lado da alegoria que trazia Villas-Boas, o melhor carro do desfile. O enredo foi muito bem desenvolvido e explorou diferentes pontos que marcaram aqueles anos que teve que contar. Foi mais um desfile marcado pela garra dos componentes, que cantaram à plenos pulmões um samba bastante fraco e que foi se arrastando ao longo do desfile.

Gostei muito da setorização bem definida da escola, que soube dosar bem a presença de índios, portugueses e franceses ao longo do desfile e de maneira bastante coerente. Não tivesse tantas limitações financeiras que se refletiram nos conjuntos plásticos, o Camisa poderia brigar pelo título. Em todo caso, o Trevo da Barra Funda ainda pôde deixar o Anhembi na expectativa de uma boa colocação. Quem saiu ganhando mesmo foi Tito Arantes, que fez talvez o seu trabalho mais feliz em termos de concepção. Merecia um desenvolvimento melhor.

Quem conseguiu dar a volta por cima foi a Mocidade Alegre. Terceira escola a desfilar, a Morada do Samba mostrou muita animação na defesa do enredo “História Brasilae, Cultura, Hábitos e Costumes de uma Holanda Tropical”. A começar pelo carro de som, comandado por Clóvis Pê, importado da Mangueira, e formado ainda por Daniel Collête e André Pantera. Os três deram um show de empolgação na interpretação do samba, mediano, mas animado, com direito a danças e cacos bastante divertidos que, no entanto, não animaram o Sambódromo.

A Mocidade Alegre enfrentou um problema no início do desfile: a presença da Globeleza Valéria Vanessa, que estava na escola desde o desfile em homenagem a Hans Donner em 1997, atraiu um batalhão de fotógrafos indesejado, que causou um tumulto na concentração. Resolvido (parcialmente, porque alguns muitos profissionais continuaram por ali) o problema, a Morada do Samba apresentou um bom desfile para falar sobre o período da invasão holandesa.

O Carnavalesco Wagner Santos fez o seu primeiro grande trabalho em um irrepreensível desenvolvimento do enredo. Wagner apostou em fantasias luxuosas, com muitas plumas, e em uma divisão cromática carregada de cores quentes para trazer o público ao Nordeste dos Séculos XVI e XVII. A Mocidade ainda impressionou pelo luxo apresentado em suas alegorias, que contrastava com o que a escola vinha levando ao Anhembi em anos anteriores.

O belíssimo abre-alas, que trazia um leão em sua dianteira, remetendo ao Estado de Pernambuco, estava impecável acabado e adereçado. Com escadarias e pisos tipicamente holandeses, tinha componentes perfeitamente trajados com roupas típicas dos flandres e passava a ideia da “mistura” entre Brasil e Holanda. O primeiro setor foi dedicado a um contexto histórico das Invasões Holandesas, destacando que, apesar das boas relações com Portugal, os Países Baixos aqui chegaram por conta dos narizes torcidos com a Espanha, que à época dominava os lusitanos.

Mauricio de Nassau, claro, não deixou de dar as caras no desfile da Morada. Ele foi um dos principais personagens de um desfile que fez questão de destacar o encantamento que os holandeses tiveram com as belezas naturais do Brasil, bem como as influências que essa ocupação deixou por aqui até os dias de hoje. A Mocidade apresentou, de maneira geral, um conjunto alegórico impecável. Wagner Santos desde então já se mostrava extremamente caprichoso e cuidadoso. Uma pena que a evolução da Morada não tenha sido das melhores.

Aliás, o desfile foi muito bom, mas faltava algo mais para que pudesse ter cara de título. Faltou talvez uma melhor resposta das arquibancadas ou ainda um diferencial na questão do enredo. Como a história do Brasil em seus 200 primeiros anos estava muito envolvida com portugueses, índios e navegações, acabou ficando a sensação de mais do mesmo. As chances de título da agremiação do Limão foram pro espaço de vez quando três dos cinco carros alegóricos apresentaram, em momentos diferentes, problemas que complicaram ainda mais a evolução. Um deles inclusive emperrou no meio do Anhembi e teve que ser “ultrapassado” por três alas.

Envolta naquela que talvez fosse a maior polêmica do Carnaval de 2000, a Águia de Ouro foi a quarta escola a entrar na Avenida para apresentar o enredo “A formação do povo brasileiro”, que exaltaria a mistura de raças que formou o Brasil através do período de 1655 a 1700. O tema, apesar de ser um dos menos empolgantes dentre os disponíveis, fez com que a escola atraísse uma indesejada atenção da Igreja Católica.

O ponto da discórdia foi a alegoria que representava o encontro entre o catolicismo e os índios. Nele, os índios estavam em volta de uma enorme escultura da Virgem Maria. A Igreja, através do Tribunal da Família, conseguiu proibir que a escultura entrasse na Avenida. A saída da agremiação da Pompéia, presidida pelo à época Presidente da Liga/SP, foi transformar a Santa em uma Índia. O Carnavalesco Victor Santos, já no Anhembi, dizia que ela “sempre será a Virgem Maria”. O TFP chegou a voltar à concentração já no dia do desfile para ver se a ordem judicial havia sido cumprida.

Com ou sem Virgem Maria, a Águia de Ouro fez um desfile bastante superior ao do ano anterior e, seguramente, o seu melhor no Anhembi até então. Com um bom samba de refrão forte, a escola apresentou componentes empolgados e que cantaram forte. A bateria, formada por muitos jovens e por muitas mulheres, garantiram uma boa cadência ao samba, que foi interpretado com correção por Douglinhas Aguiar.

Apesar de ainda enfrentar o problema da sensação de “mais do mesmo”, o enredo foi desenvolvido com correção e coerência, embora tenha fugido um pouco da proposta de narrar o período de entradas, bandeiras e demais explorações. O abre-alas veio como uma espécie de “final no início”, lembrando o resultado de tudo aquilo que viria em seguida: a miscigenação entre negros, índios e portugueses. Penso que a concepção poderia ter sido mais feliz, mas o carro estava muito bem acabado e não fez feio.

A divisão cromática foi bastante feliz, alternando muitas cores e garantindo um bom efeito. Vista de cima, a escola estava bem colorida e, devido à leveza dos componentes, a evolução garantiu belas imagens aéreas com a danças das plumas, paetês e das diferentes cores. A escola tinha uma relativa defasagem econômica em relação à maioria das escolas, mas fez uma apresentação razoável, apesar de alguns erros. A fantasia da comissão de frente, por exemplo, não conseguiu um bom efeito e, muita pesada, prejudicou a coreografia dos componentes.

O desfile teve uma considerável melhora quando entrou nas explorações propriamente ditas. O enredo explicou bem o conceito das bandeiras, expedições dos bandeirantes que desbravaram o interior do Brasil, em alas que, no entanto, só tinham seu sentido captado por quem via na TV e tinha acesso à legenda. O desfile ficou marcado por algumas alas que destoavam do bom padrão de luxo e acabamento e por alegorias que estavam mais para a Tom Maior que para a Mocidade Alegre. Não que houvesse muitas falhas na execução, mas a Águia passou longe do luxo em alegorias que tiveram uma concepção muito feliz por parte do Carnavalesco.

Por não ter errado em quesitos básicos como evolução e não ter tido problemas em alegorias, no entanto, a Águia se via praticamente livre do rebaixamento, ainda que a briga para fugir do descenso prometesse ser intensa em um Carnaval muito equilibrado.

Na sequência, a Leandro de Itaquera entrou na Avenida para falar do ciclo do ouro no enredo “Vale Ouro, Meu Brasil, Minha Terra, Meu Tesouro”. Depois do bom desfile de 1999, o Leão Guerreiro de Itaquera prometia um desfile luxuoso. O samba, diferente daquilo que a escola costumava trazer para a Avenida, prejudicou um pouco, mas não impediu a boa comunicação com o público e um bom desfile da vermelho-e-branco. O luxo esteve presente em uma apresentação que, claro, usou muito dourado.

O competente Marco Aurélio Ruffim desenvolveu o enredo com correção e apostou em fantasias grandiosas, que inclusive prejudicaram um pouco a evolução e o canto dos componentes. A Comissão de Frente, que representava os bandeirantes, teve boa exibição e foi seguida por um abre-alas todo em amarelo, que simbolizava o descobrimento do ouro. O carro falhou justamente por ser monocromático, mas tinha um padrão de luxo razoável. A divisão cromática também abusou um pouco do amarelo. As fantasias estavam um pouco simples, com acabamento apenas regular e algumas alas de difícil leitura.

Gostei de algumas saídas que o carnavalesco usou para sair do lugar-comum, como falar sobre “o monstro da fome” que foi combatido com o ouro. Gostei do segundo carro, chamado “O garimpo”, que estava bonito, apesar de simples. Os demais carros também pecaram pelo excesso de amarelo, em contraste com as fantasias, que melhoraram bastante. Enquanto isso, a Bateria foi, com folga, o maior desastre do desfile ao não conseguir acompanhar o samba em um andamento agradável. Foi uma apresentação apenas convencional da Leandro, que não trazia riscos à escola, mas também não a faria repetir suas melhores colocações.

x92000Reforçada de Lucas Pinto, a X-9 foi a sexta a entrar na Avenida com o enredo “Quem é você? Café”. Apesar do samba com o explosivo refrão “a X-9 vem aí, vai sacudir / bota a água pra ferver no Anhembi / vem nessa amor, que eu quero ir”, a escola apostava em uma apresentação técnica. Os componentes foram preparados para única e exclusivamente buscar a nota 10 em cada um dos 10 quesitos. O rico tema foi muito bem desenvolvido pelo estreante Lucas Pinto, que explorou corretamente a influência do café na transformação econômica do Brasil no Século XVIII.

Foi, de fato, um desfile técnico: os componentes não estavam muito animados, mas evoluíram com correção e cantaram o samba durante todo o desfile. As fantasias estavam muito bonitas, com uma divisão cromática impecável e muitas plumas. O abre-alas, particularmente, me pareceu high-tech demais. As xícaras rodando à frente de um painel de luzes verdes não me parecia um bom jeito de representar o convite para que o público tomasse um cafezinho. Essa missão foi mais bem sucedida com a comissão de frente.
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Passado o abre-alas, no entanto, o desfile foi muito correto e teve alegorias impecáveis: a que representava um cafezal beirava a perfeição na riqueza de detalhes. Se por um lado o excesso de “licenças poéticas” que Lucas Pinto usou para desenvolver o enredo – que, aliás, foi um dos únicos a ir além do período determinado, chegando até a quebra da bolsa de Nova Iorque, no Século XX -, desagradou, por outro chamou a atenção a riqueza de cores.

Muito verde, muito vermelho, muito branco foi usado em fantasias coloridas e de fácil leitura. Apesar de tudo, faltava para a X-9 algo mais. Estava tudo muito bonito, mas nada chamava atenção. O samba se arrastou um pouco, a arquibancada não correspondeu, foi tudo convencional demais. A escola saiu certa de um bom resultado, mas o título parecia bastante improvável.

gavioes2000cQuem chegou pisando forte com o dia clareando foi a Gaviões da Fiel, que vinha em busca do bicampeonato com o enredo “Um voo para a liberdade”. Apesar da rouquidão do excelente Ernesto Teixeira, que prejudicou um pouco o bom samba da escola, a Gaviões fez uma grande apresentação. O enredo, um tributo à nação, tanto a corinthiana, quanto a brasileira, conquistou as arquibancadas tanto no chão, quanto no impecável visual.

Jorge Freitas estreou em São Paulo com o pé direito. O abre-alas foi, de longe, o melhor da noite. O mais belo Gavião a entrar com a escola até então abrigou uma luxuosa representação do tal tributo. Freitas soube usar muito bem do preto e do branco, mesclando com outras tonalidades e, de quebra, escolheu cores que conseguiam um bom efeito mesmo no ingrato horário em que a escola começou a desfilar (nem de madrugada, nem de manhã).

A escola começou lembrando a Revolução Francesa, que serviu de inspiração para movimentos pró-Independência no Brasil. A Torcida Que Samba lembrou a figura de Tiradentes e o seu fracasso “que não foi em vão” na luta por um país livre. As fantasias estavam muito luxuosas e impecavelmente bem acabadas. O casal de mestre-sala e porta-bandeira, representando a elite mineira que conheceu o iluminismo, estava maravilhosamente trajado. Sem poder usar do verde, Freitas apresentou fantasias em dourado e vermelho, que garantiram ótimo efeito. Acho apenas que o enredo gastou tempo demais na Revolução Francesa e poderia ter sido mais direto, assim como as fantasias podiam ser mais claras quanto ao seu significado.
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Em todo caso, a Gaviões fechou a primeira noite como a grande favorita ao título dentre as sete primeiras a se apresentar. O conjunto alegórico impressionou pelo bom acabamento e pelo luxo, acima do padrão que São Paulo costumava apresentar. As escolas do sábado precisariam suar muito para bater a Fiel Torcida.

Abrindo a segunda noite de desfiles e estreando no Grupo Especial na Era Anhembi, o Morro da Casa Verde surpreendeu com o desfile “Brasil: do Reino Unido à Independência”. Mesmo contraindo uma dívida de R$ 70 mil reais na reta final de preparação para o desfile, provocada por um acidente inesperado – um carro invadiu o barracão e destruiu instrumentos da bateria -, a simpática agremiação comandada por Dona Guga apresentou um desfile de alto nível em termos plásticos.

Se não empolgou uma passarela ainda fria, a verde-e-rosa ao menos chamou a atenção pela apresentação muito correta em termos de desenvolvimento do enredo e embalada por uma plástica muito interessante. O sempre caprichoso Caranvalesco Nilson Lourenço, o Nilsinho, aproveitou das cores da escola para estabelecer uma divisão cromática que valorizasse o verde e o rosa, sempre em tonalidades mais claras. A opção por poucas cores pesadas valorizou o conjunto visual da escola.

O primeiro setor, que falava sobre a vinda da Família Real para o Brasil e sobre o rebuliço que isso causou por aqui, ganhou um abre-alas muito bonito e fantasias de fácil leitura. O potencial econômico do Morro era visivelmente reduzido em relação à maioria das concorrentes, mas a criatividade fez com que a agremiação praticamente afastasse qualquer risco de rebaixamento. O desenvolvimento coerente garantiu uma leitura fácil do enredo, que foi muito bem setorizado. Depois da chegada da Família Real, foram mostradas as consequências diretas dela, como a criação da imprensa, dos Correios e do Banco do Brasil.

Posteriormente, quase como um contraponto ao que foi dito antes, a escola contou a crise do Reinado Português, que culminaria na Independência, e acabou fazendo um dos desfiles mais coerentes daquele Carnaval. A exposição dos problemas do Império, das Revoltas Populares e do seu sucesso, ou seja, da Independência propriamente dita, levou a um dos poucos desfiles neutros de 2000, que não procurou romantizar ou demonizar determinado período.

Um grande problema foi que, com o passar do desfile, as alegorias e fantasias foram ficando cada vez mais pobres e, aí, com um acabamento menos feliz, a opção por alegorias monocromáticas acabou sendo prejudicial. Também achei a evolução um pouco confusa, mas, ainda assim, um rebaixamento seria muito surpreendente pelo que se viu nos desfiles de sexta-feira.

Para falar do período pós-Independência e da crise do Brasil Imperial, uma escola que sabia bem o que era a tal decadência: mergulhada em uma crise, a Unidos do Peruche entrou na Avenida para apresentar o enredo “Cara e Coroa, as Duas Faces de um Império”. Como há muito tempo não se via, a escola ganhou o Anhembi pelo refrão simples de seu samba – composto, aliás, por uma parceria formada por Jackson Martins e Serginho do Porto -, mas, com um dos enredos mais interessantes da noite, naufragou em termos plásticos.

O período de 1840 a 1889 é um dos mais ricos da história do Brasil: revoltas, abolição da escravatura, Guerra do Paraguai, crises políticas e, claro, a Proclamação da República foram lembrados pela Filial do Samba, mas de maneira pouco feliz. O abre-alas, que representava a consagração de D. Pedro II, foi talvez o mais pobre de todo o Carnaval 2000. As fantasias, de difícil leitura, eram muitas vezes de gosto duvidoso e foram prejudicadas pelo baixo potencial financeiro da escola. Talvez pelo baixo orçamento, o Carnavalesco Fábio Borges optou por fantasias com mais tecido e menos plumas, o que prejudicou ainda mais o conjunto visual. A divisão cromática também foi confusa e, de bom mesmo, restaram o samba e o desenvolvimento impecável do enredo. Ainda assim, parecia insuficiente para salvar a Filial do Samba do descenso que já vinha se aproximando nos anos anteriores.

Entrando no período republicano, a Imperador do Ipiranga foi a terceira escola a desfilar no sábado de Carnaval com o enredo “Imperador na Velha República”. O enredo foi, como já era de se esperar, focado em revoltas, golpes e articulações políticas. Com um samba correto (de autoria, entre outros, do intérprete Moisés Santiago e de Djalma Falcão), a escola fez uma apresentação razoável e que alternou bons e maus momentos. O abre-alas, por exemplo, apesar de não simbolizar muito bem a Proclamação da República e de “pular” muito, estava bonito e bem adereçado.

Se faltou clareza para o abre-alas, sobrou para o resto do enredo e para o próprio samba. A primeira parte era quase um texto de Telecurso: “bailando na ilha fiscal / Brasil dava adeus a Portugal / (…) / imprensa, abolição, fatores de pressão / foram elos da proclamação / (…) / se fez política do café-com-leite / São Paulo e Minas elegiam o Presidente”. A primeira parte do desfile foi mesmo dedicada às articulações iniciais do novo sistema de Governo e optou por falar do tal café-com-leite de maneira neutra, sem exaltar São Paulo e sem mostrar o quão danoso isso era para o país. Não diretamente porque, na sequência, foram mostrados os problemas enfrentados no Nordeste e as revoltas comandadas por Antônio Conselheiro.

O desfile ainda lembrou a Semana de Arte de 1922 e as primeiras articulações para a tomada do poder por parte de Getúlio Vargas. Com um potencial econômico reduzido, a criatividade de Pedrinho Pinotti salvou algumas fantasias, mas comprometeu outras. As alegorias também não estavam, de maneira geral, brilhantes (o carro da música chegou a lembrar vagamente as escolas de menor poderio financeiro lá pelos idos de 1991) e os componentes foram uns dos menos empolgados da noite. Por outro lado, a evolução mereceu destaque. Em um ano equilibrado, a escola ainda corria riscos de rebaixamento, mas apresentou uma enorme evolução se compararmos ao desfile de 1999.

nene2000Com um dos enredos mais polêmicos de 2000, a Nenê de Vila Matilde levantou a Passarela para tentar sair do “quase”. O enredo “Porque me orgulho de ser brasileiro” fez todo o Anhembi sair do chão, mas chamou a atenção negativamente pela exaltação excessiva à Era Vargas. O enredo era concebido com a ideia de que “Vargas era um ditador, mas…”. Foi passada uma imagem errônea de um Brasil perfeito e feliz. Pessoalmente, me chamou como, ao mesmo tempo, a Nenê exaltou Vargas e a Revolução de 1932. Uma incoerência histórica das grandes. Isso sem falar no fraco samba, que dizia que “o estadista mostrava o seu valor / o grande caudilho suplantava o Ditador”.

De todo modo, a Nenê continuou apresentando uma clara evolução e se colocou mais uma vez na briga pelo título. O abre-alas e a fantasia do casal de mestre-sala e porta-bandeira foram os mais bonitos daquele Carnaval. O primeiro carro, com uma enorme águia iluminada e batendo asas, falava sobre a chegada de Vargas ao poder. A fantasia do casal, toda em azul claro, garantiu um ótimo efeito. Não gostei da Comissão de Frente, que trazia vários Getúlios Vargas igualmente trajados e fazendo a mesma coreografia. Para piorar, um desses Getúlios estava sem chapéu, o que poderia levar a algumas punições no quesito.

Augusto Oliveira, aliás, usou e abusou das diversas tonalidades de azul. Pessoalmente, achei até exagerado, mas um bom efeito foi conquistado. Para fortalecer a imagem do “grande estadista”, ele lembrou o quão amado pelo povo Getúlio era pelo povo e o surgimento da Petrobras, da UNE, da Rádio Nacional e da CSN. Por falar em Petrobras, a ala da descoberta do petróleo foi, de longe, a mais feia de todo o desfile da Nenê.

Em mais uma contradição enorme, Augusto Oliveira não só “escondeu” o Getúlio ditador, como apresentou um Getúlio Democrata. A Velha Guarda, por exemplo, lembrou o voto das mulheres, que teve início com Getúlio. Dentro da proposta da escola, porém, o desfile foi quase impecável. Ainda achei o conjunto de fantasias inferior ao da Gaviões, mas estava tudo muito bonito, com uma divisão cromática que, nos últimos setores, usou outras tonalidades além do azul. Achei interessantes as alas que representavam o Carnaval da Era Vargas com Pierrôs, Arlequins e Colombinas. Os carros também estavam grandiosos, luxuosos.

Essa grandiosidade toda trouxe um problema que poderia, somado à perda do chapéu, tirar a Nenê de briga. O carro das reformas trabalhistas tinha um enorme trabalhador que, tal como a asa da águia de 1996, era maior que o portão que dá acesso à Avenida. O pessoal da diretoria forçou (inclusive agredindo fotógrafos que documentavam o problema), o braço quebrou, mas passou. No meio da Avenida, porém, ele desabou e poderia levar a penalidades no quesito Alegoria. Mesmo fazendo o desfile mais bem recebido pelo público até então, o título parecia difícil.

Pretendo mostrar a evolução cultural e industrial do Brasil pós-Segunda Guerra, a Rosas de Ouro contou com o talento de Raúl Diniz e a irreverência de Quinho para apresentar o enredo “Yes, nós temos mais que banana”. O samba podia não ser uma maravilha, mas era animado e ajudou mais uma vez a quebrar a ideia daquela Rosas “certinha”. Foi talvez o menos brasileiro de todos os enredos, até por conta da forte influência americana no período, embalada pelo início da Guerra Fria.

Gostei muito da Comissão de Frente que representava os soldados brasileiros, mas o abre-alas foi a grande surpresa negativa do desfile. Representando o “voo do Brasil em direção ao futuro”, ele parecia um tripé. Sabendo do potencial financeiro da escola, ficou claro que foi mais um delírio do genial Raúl Diniz. Ao contrário da maioria deles, não deu certo. Por outro lado, o tanque de guerra que veio atrás do carro da II Guerra soltando papéis picados ao invés de tiros, foi de uma genialidade no nível do Carnavalesco.

Foi mais um desfile a romantizar demais um período que teve os seus problemas. Os anos entre 1945 e 1964 foram, na Roseira, só estradas, indústrias, Brasília e crescimento absoluto. A escola focou ainda em conquistas importantes foram do âmbito político, como o bicampeonato mundial de futebol em 1958 e 1962. Mais uma vez, a escola apresentou um bom conjunto plástico e uma boa divisão cromática, mas, tal como nos anos anteriores, ficou devendo um pouco à Gaviões e Nenê. Foi um trabalho menos feliz de Raúl Diniz nesse sentido, especialmente nas alegorias.

Gostei muito do setor que falava sobre a influência estrangeira. Bem humorado, apresentou fantasias com super-heróis americanos, rock and roll e vestimentas, o que fez os componentes se soltarem. O setor da arte no Brasil também foi muito bacana, que lembrou, entre outros, a figura de Chacrinha. Apesar do ânimo dos componentes, foi um desfile que não empolgou o público e que não dava à azul-e-rosa muitas esperanças de título.

Penúltima escola a desfilar, a Acadêmicos do Tucuruvi entrou na Avenida cercada de expectativa. Não só por conta um dos enredos mais esperados da noite, sobre a Ditadura Militar, mas principalmente por dois nomes trazidos do Rio de Janeiro: o intérprete Preto Jóia e Mestre Jorjão, que voltou a usar a Paradinha Funk que havia feito sucesso em 1998 na Viradouro. Menos badalado, o Carnavalesco Jerônimo Guimarães manteve a escola na evolução que havia apresentado em 1999.

O enredo “90 milhões em Ação, na Tristeza e na Felicidade” era, evidentemente, crítico ao Regime Militar e mostrou isso já no abre-alas. Todo em preto e roxo, trazia vampiros, teias de aranha e outras representações macabras para contar a obscuridade do período de 1964 a 1984. Achei interessante e lembrança do apoio americano ao Golpe, que já se fazia presente no samba (“a bruxa está solta, o Tio Sam quer mandar”). Nesse contexto, se destacou a comissão de frente dos “Bruxos Conspiradores”, que lembrava justamente a ação americana na conspiração que derrubou João Goulart após a saída de Jânio Quadros. No abre-alas, uma forte imagem da Estátua da Liberdade como uma bruxa também remetia a essa mensagem.

O que me chamou a atenção é que a escola conseguiu uma abordagem muito criativa para o enredo. As torturas e perseguições políticas estavam inseridas no enredo em meio à Tropicália, aos movimentos artísticos e a luta dos artistas. Até conquistas brasileiras que ajudaram os Ditadores, como o tricampeonato mundial em 1970, foram comemoradas. Fosse eu o Carnavalesco, não iria muito por esse lado, mas não dá para dizer que foi um erro.

Gostei muito da divisão cromática que começou pesadíssima e foi clareando aos poucos. Em todo o desfile, as diferentes tonalidades foram mescladas com o verde e o amarelo da bandeira, que apareceu na fantasia dos militares. Um dos grandes destaques, ainda no primeiro setor, foi a ala “funeral da democracia”, que trazia cruzes sobre plumas brancas e roxas, garantindo ótimo efeito. O segundo carro, apesar de ligeiramente mau concebido e acabado, representou bem “O poder ditatorial” com destaques presos em jaulas com roupas tipicamente carcerárias. O carro também lembrou o “golpe no golpe”, já que a ideia inicial era que a democracia fosse reestabelecida.

A Tucuruvi fez um desfile muito bom, ainda melhor que o de 1999. Gostei muito das alas que representaram os problemas sociais do Brasil no Regime, como a inflação, mas achei algumas passagens desnecessárias, como uma citação direta a Elymar Santos e outra ao piloto Ayrton Senna que, em 1984, estava longe de ser personagem fundamental no período. Por outro lado, gostei da lembrança do gol mil de Pelé, marcado em 1969. A Bateria de Mestre Jorjão também esteve firme do início ao fim. O potencial econômico reduzido prejudicou um pouco algumas alegorias (embora o terceiro carro, o dos “Movimentos Musicais” foi um dos mais bonitos e coloridos da noite) e deixou a agremiação da Cantareira razoavelmente atrás da Gaviões. Ainda assim, uma boa colocação era muito provável.

vaivai2000bPara encerrar, um sacode histórico da Vai-Vai. Com o tema que, fosse eu Carnavalesco, seria o dos sonhos, a escola retratou o período de 1984 a 2000 com maestria no enredo “Vai-Vai Brasil!”. O excelente samba ganhou o Anhembi, que respondeu como só havia respondido à Nenê. A composição de Zé Carlinhos, Zeca do Cavaco e Denay era genial. No refrão do meio, por exemplo, dizia: “eu elegi um Presidente / ‘collorido’ e diferente e me dei mal”.

Com o Carnaval mais caro do Grupo Especial, a Saracura chamou a atenção pelo lindíssimo abre-alas. Com o então Governador do Mato Grosso Dante de Oliveira, criador da emenda das Diretas Já, como destaque, a escola lembrou o movimento que pedia Eleições diretas para Presidente e o fez em um carro cheio de luzes e representações nacionalistas. Com o dia amanhecendo, a escola manteve o Anhembi lotado e foi ovacionada com gritos de “tricampeã” por toda a Passarela.

O desfile manteve seu alto nível do início ao fim. O segundo carro, “A Era dos Cruzados”, satirizava de maneira genial os planos econômicos do Presidente José Sarney. O ex-Presidente aparecia montado em um cavalo como um guerreiro da época das Cruzadas e, à sua frente, dois brasileiros com olhos esbugalhados comandavam um carrinho de supermercado Foi o carro mais criativo de 2000, sem sombra de dúvidas. Gostei muito de uma das alas subsequentes, a ala dos “mendigos”. Não havia fantasias, mas sim roupas típicas de moradores das ruas.

O contexto do Brasil da segunda metade da década de 1980 foi representado com perfeição. O fim da ilegalidade para os partidos de esquerda, a luta pela Reforma Agrária e pelas Eleições Diretas ganhou lindas e coloridas fantasias. O locutor Osmar Santos, “a voz das Diretas”, voltou a desfilar, já na cadeira de rodas. O Governo Collor também foi representado de maneira genial: no terceiro carro, “A cascata da Dinda”, modelos foram colocadas sobre jet-skis à frente de sósias de Collor, sua mulher Rosane e PC Farias, esse já morto. No primeiro plano, porcos, cofrinhos, amarrados por cordas representavam o confisco das poupanças.

Os anos de Governo de Itamar Franco foram representados em uma ala sensacional atrás do terceiro carro: “O topetudo mineiro”. A fantasia era um fusca, que voltou a ser produzido com Itamar. Os únicos a ganharem elogios foram Fernando Henrique Cardoso, responsável pelo Plano Real, representado no quarto carro, “O Renascimento da Nação” (todo em verde e amarelo, ele não tinha nenhuma sacada genial, mas estava muito bonito e luxuoso) e Ayrton Senna, o herói nacional no período. As últimas fantasias e o último carro saudavam os 70 anos da Escola do Povo e fecharam com chave de ouro uma apresentação histórica.

A superioridade da Vai-Vai foi tão grande que, mesmo com o excelente desfile da Gaviões, qualquer resultado que não fosse um tricampeonato para a agremiação do Bixiga seria um absurdo completo. A apuração começou com uma punição que decretou o rebaixamento da Peruche: por desfilar com 200 componentes a menos que o mínimo de 2 mil, a escola perdeu 15 pontos.

A escola do Bixiga deixou a ponta no segundo quesito, Enredo, quando levou dois 9,5 (um descartado), ficando atrás de Gaviões, Leandro e Tucuruvi, ambas com 40, e empatada com X-9, Mocidade e Rosas. O terceiro quesito, Alegoria, tirou a Roseira da briga, enquanto Letra do Samba começou a derrubar a Tucuruvi e Harmonia derrubaram a Leandro. A Gaviões fechou o oitavo quesito somando todos os 160 pontos possíveis, contra 159,5 de Vai-Vai e X-9.

No nono quesito, mestre-sala e porta-bandeira, a Gaviões levou só um 10 e dois nove, caindo assim para 179 pontos contra 179,5 de Vai-Vai e X-9. As três gabaritaram o último quesito, Bateria, levando assim a mais um título dividido, dessa vez entre Vai-Vai e X-9. A Gaviões foi a vice-campeã, seguida por Mocidade, Rosas e Nenê, que ficaram em terceiro com 198,5. O Camisa acabou em quarto, à frente de Leandro, Tucuruvi, Águia de Ouro, Imperador e Morro da Casa Verde que, com 190,5 pontos, superou em 0,5 a rebaixada Tom Maior.

A Peruche terminou na lanterna e lá ficaria mesmo se não fosse punida. Foi o primeiro rebaixamento da história da escola desde 1980. No Grupo 1 de seis escolas, a Pérola Negra foi campeã e voltou ao Especial ao lado da Unidos de São Lucas, que estrearia na elite em 2001. A escola deixou a Império de Casa Verde a meio ponto do acesso inédito ao primeiro grupo.

Curiosidades

– Cleber Machado mais uma vez comandou as transmissões na TV Globo, que pela primeira vez transmitiu as apresentações na íntegra. Ele foi acompanhado por Mariana Godoy, enquanto os comentários outra vez ficaram a cargo de Maurício Kubrusly. Nas reportagens, o destaque ficou por conta de Márcio Canuto que, na arquibancada monumental, representou personagens históricos contados nos desfiles, de Pedro Álvares Cabral a Getúlio Vargas.

– O caso da alegoria da Águia de Ouro foi o mais grave, mas a verdade é que, por conta dos temas muito ligados à história do Brasil, foi um Carnaval marcado pela grande pressão da Igreja Católica sobre imagens que remetessem à religião. Muitos carros e fantasias receberam pedidos formais de alterações e, em alguns casos, elas de fato ocorreram, para desespero dos Carnavalescos. Outro grande problema para a Igreja foram os símbolos religiosos pintados em mulheres seminuas.

– Primeiro ano do intérprete Carlos Júnior como intérprete oficial. O cantor, que depois se tornaria um dos principais de São Paulo, estreou logo no Camisa Verde e Branco, onde ficaria até 2004.

– Outros dois intérpretes cariocas também estrearam na Terra da Garoa em 2000: na Mocidade Alegre, Clóvis Pê; na Rosas de Ouro, Quinho. O primeiro se consagraria, anos depois, na própria Morada. O segundo, teria uma passagem futura pela Vila Maria. Dentre os Carnavalescos, temos o debute de Lucas Pinto, na X-9, e do carioca Jorge Freitas, na Gaviões da Fiel.

– O intérprete Douglinhas entoou “Eu sou brasileiro com muito orgulho e com muito amor” no esquenta da Águia de Ouro.

– O samba da X-9 foi o primeiro dos mais de 30, por enquanto, composto por Armênio Poesia no Carnaval de São Paulo.

– A escola, aliás, abandonou naquele ano o nome Passo de Ouro de sua denominação oficial, ficando também com o verde, vermelho e branco dentre as únicas cores oficiais, abandonando o amarelo.

– Pela primeira vez, a apuração dos desfiles do Grupo Especial aconteceu na terça-feira gorda e não na quarta-feira de cinzas. O horário, no entanto, continuou o mesmo: as notas foram lidas pela manhã, poucas horas depois do fim dos desfiles do Grupo 2 da UESP.

– Depois de anos de muitos festejos com sua presença, o Prefeito Celso Pitta, meses antes da renúncia, chegou e saiu sem ser anunciado no Sambódromo do Anhembi, com medo das vaias do público. Sua curta passagem pela Passarela ficou marcada por uma declaração: “Se o Presidente FHC liberar a verba que eu espero para São Paulo, prometo que farei um ‘pas-de-deux’ no meio da Avenida”.

– Pitta, aliás, entrou em um pequeno atrito com o Prefeito do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde, que havia dito que o Carnaval de São Paulo era “um rodeio chatíssimo”. O Prefeito, do PTN, afirmou que o Prefeito carioca estava com “dor de cotovelo” por perder turistas para a cidade. O político do PFL não deixou por menos: “Pitta é carioca, tem samba no pé, sabe do que eu estou falando. Ele até disse que queria ser bailarino, deve entender do negócio”. Na sequência, ambos trocaram, através de assessorias, números sobre o turismo na folia.

– Os sambistas paulistanos se irritaram quando Conde propôs que a campeã e a vice na Terra da Garoa desfilassem no Acesso do Rio em 2001 para tentar chegar ao Especial em 2002. Presidente da Nenê, Betinho disse que “ninguém chuta cachorro morto, estamos incomodando”. Líder da Águia de Ouro e da Liga/SP, Sidinei Carrioulo cutucou: “ele devia se preocupar mais com a segurança e a sinalização na cidade dele”.

– O jogador Dinei esbanjou preparo físico naquele Carnaval. Depois de atuar pelo Corinthians já na sexta-feira de Carnaval, foi ao Anhembi desfilar por Leandro de Itaquera e Gaviões da Fiel e ainda disse que só não saiu em outras duas escolas porque não teve tempo.

– A Nenê de Vila Matilde apresentou naquele Carnaval o mesmo enredo de sua madrinha, Portela, no Grupo Especial do Rio de Janeiro. Ambas foram criticadas pela abordagem romântica de Getúlio.
– Cléber Machado e Maurício Kubrusly ironizaram bastante as irregularidades de Collor e os planos fracassados de Sarney. Quanto a Collor, Kubrusly lembrou que ele “talvez fosse candidato a Prefeito de São Paulo” naquele 2000.

– Os ritmistas da Bateria Pulsação Nota 1000 da X-9 Paulistana, comandados pelo sempre irreverente Mestre Adamastor, prometeram raspar a cabeça em caso de título. Alguns, na festa da vitória, choraram de tristeza na hora de pagar a promessa, executada por membros da própria X-9.

– Essa é uma das evidências de que nem a X-9 Paulistana acreditava no próprio título. Quando a escola da Parada Inglesa começou a se aproximar das líderes, o helicóptero da Rede Globo sobrevoou a quadra e a encontrou fechada, com alguns componentes correndo para abri-la enquanto alguns torcedores já ocupavam a rua. A festa da vitória foi toda improvisada. O próprio Presidente admitiu que só encomendou as cervejas depois da apuração. “Desfilamos para os jurados e acreditávamos em uma boa colocação, mas o título surpreendeu”, afirmou Lauro.

– O título da Vai-Vai a fez se isolar na ponta como maior campeã do Carnaval de São Paulo: a 11ª conquista fez a Saracura superar as 10 taças da Nenê de Vila Matilde. A escola do Bixiga também chegou ao seu quinto título no Anhembi, superando os quatro troféus da Rosas de Ouro.

Vídeos

O grande desfile da Mocidade
https://www.youtube.com/watch?v=4fKjPOUnjW0

O bom desfile da Leandro
https://www.youtube.com/watch?v=WQFIh4DjrFg

A surpreendente campeã X-9
https://www.youtube.com/watch?v=c24bdP1Hzt8

A excelente apresentação da Gaviões
https://www.youtube.com/watch?v=irtGqteoEqs

O bom desfile do Morro
https://www.youtube.com/watch?v=nBohBysSjP0

A Nenê com Getúlio
https://www.youtube.com/watch?v=0M8AZjKais8

A surpreendente Tucuruvi
https://www.youtube.com/watch?v=WK-qBnwvLZ8

Vai-Vai quebrando tudo
https://www.youtube.com/watch?v=jsnim5jTXzE

Algumas reportagens sobre a apuração
https://www.youtube.com/watch?v=fVOb0rrU0pU

8 Replies to “Bodas de Prata – 2000: Vai-Vai é tri no Carnaval dos 500 anos; X-9 surpreende e também leva”

  1. Eu sou apaixonado por esse desfile da Vai-Vai, é um dos melhores que eu já vi. E também gosto muito do primeiro refrão da Tom Maior, foi um chamamento não só pro próprio desfile como também pra toda a sequência história que viria depois.

  2. Definitivamente 2000 foi o primeiro ano em que, de fato, eu me preparei para acompanhar o carnaval paulistano.
    Munido dos sambas de enredo na fase pré-carnavalesca, escutava-os junto com os do Rio, e foram devidamente aprendidos bem antes da festa, amadurecendo em minha cabeça para melhor avaliação.
    Notícias vinham por telefone, via grande amigo Wilson, então morador da cidade. Numa época de Internet “primitiva”, informações sobre carnaval por sites era coisa muito futurística!

    Algumas considerações:

    SAMBAS
    – Não foi uma safra muito inspirada, ou comovente (Fenômeno este que explicarei melhor no carnaval de 2004), mas devo dizer que alguns sambas criticados no texto me parecem bem corretos (Tom Maior e X-9 Paulistana), e outros que obtiveram certo elogio (Leandro e Imperador), não me eram (São) muito digeríveis…
    – Aliás, desta safra, três são muito interessantes: Vai-Vai (Claro!), Gaviões e X-9, que era o mais bonito nas gravações, mas não rendeu no dia desfile.
    – Waguinho havia retornado à Mocidade Alegre nas gravações, mas no dia do desfile, como mencionado no post, deu lugar ao time comandado por Clóvis Pê. Em 2000, o cantor ficou novamente fora do Grupo Especial paulistano.

    ENREDOS
    – Apesar de engessadas pelo tema único, a divisão histórica pareceu-me mais coerente. Já que vai impôr, faça algo que não venha a causar mais repetição do que já se espera. A separação em capítulos tinha o intuito também de fazer com que os enredos não se sobrepusessem.
    – Volto a mencionar que em 2004 a proposta de tema único se sairia melhor, e, mesmo com escopo menos, esbanjaria idéias. Mas isso fica para o post certo!

    DESFILES
    – Até hoje o desfile de São Paulo só começa quando a programação da Globo (Leia-se Big Brother) permite. É sempre uma festa no Anhembi quando os créditos finais começam a subir a tela. Se por um lado, todas as escolas acabam transmitidas, pelo outro, é bem cansativo começar muito tarde (O que já chegou a passar das 23 h em anos posteriores).
    – O Abre-alas da X-9 era bem estranho mesmo. As alegorias de Lucas Pinto seguiriam neste padrão durante sua estada na Escola, prejudicando-a visualmente nos anos que se seguiriam.
    – O Gavião da Gaviões nada tinha de bonito! Era bem mal acabado, desproporcional, e destoava da alegoria que o trazia.
    – As máscaras da Comissão de Frente da Nenê pareciam querer se soltar dos restos de seus integrantes. Faltou mão-de-obra qualificada na confecção das mesmas.
    – Preto Jóia teve um mal momento no início do desfile da Tucuruvi. Quase que o samba atravessa.
    – Vai-Vai foi para lavar a alma! Foi neste ano que fiquei sabendo de um antigo dizer no carnaval paulistano: “Quando o Vai-Vai vai, São Paulo vai atrás!”. O título dividido (O segundo, de três) parecia uma boa “armação diplomática”, visto a sua superioridade em relação às suas co-irmãs.

    Nunca é demais elogiar esta série!
    Até a próxima semana!

  3. Ótimo texto, mais uma vez.

    Achei que o nível dos desfiles em 2000 foi bem superior aos outros anos.
    Quanto ao Vai-Vai, que desfile, para mim só não é melhor que o de 2008 (muito influência do público com as bandeirinhas, em um movimento único).

  4. Aqui em Santos sempre houve grande rivalidade com o carnaval de SP, cresci com a ideia que o carnaval daqui era melhor que o de SP (e realmente foi nos fim dos anos 70). Já era mergulhado no universo do carnaval do Rio mas sempre olhei com nariz em pé para os desfiles de sampa. 2000 foi o primeiro ano que acompanhei de verdade.

    Vou falar mais dos sambas, foi o ano que o cd de são paulo foi melhor que o do Rio, ouço o disco até hoje e não pulo nenhuma faixa.

    – Sambaço da X-9 Paulistana, o primeiro e pra mim o melhor do Armênio Poesia
    – Nenê naquela sequencia incrível de sambas da galera daqui da baixada, Gaviões, Vai-Vai, Mocidade Alegre, Tucuruvi, todos sambas muito bons
    – Um samba lençol, feito pelo Carlos Jr na Camisa, coisa raríssima nos dias de hoje e já em 2000

    1. Complemento este comentário ressaltando que:
      – Mesmo com as gravações transferidas para a Cidade do Samba;
      – Mesmo utilizando as baterias das escolas;
      – Mesmo com o coral das escolas;
      – Mesmo!

      …esta gravação de São Paulo em 2000 nos proporciona uma “pancada no ouvido” como nunca mais aconteceu.
      É para colocar no volume máximo, e ouvir como se estivesse na Avenida, efeito perseguido, mas raramente alcançado.

  5. Excelente texto! Só gostaria de complementar:
    A X-9 não merecia o título, além do visual fraquinho, a CF tinha sérios problemas: Alguns costeiros faltavam xícaras de café… Fica nítido nos vídeos do desfile…
    E, vc elogiou a fantasia do casal de MS e PB, mas foi exatamente ali que a Escola perdeu o título… Nos vídeos tb dá pra ver o costeiro da Idely quebrado já no início de sua apresentação… Uma pena, pq foi uma apresentação maravilhosa da Gaviões!
    E Vai-Vai sobrou msm!

    Sobre outros desfiles:
    Eu gostei da Leandro, mas depois se perdeu, dizem que ao fim do desfile o pessoal da Bateria quis bater na Eliana de Lima, que atravessou no final…
    Gosto do samba do Camisa, mas de fato, se arrastou, e era tendência… rs
    Tb me surpreendi com a apresentação correta do Morro da Casa Verde!
    Ah, a Peruche não foi punida, a punição foi revogada… Só ver a pontuação final…
    Que bom que vc não é daqueles que acham o desfile da Nenê maravilhoso… Exatamente por essas críticas suas, eu não gosto tb, e achei a evolução da escola uma bagunça no início…
    Sobre essa questão de romantizar Getúlio Vargas, a Imperador do Ipiranga, corretamente, foi na contra-mão, pois encerra seu desfile com ele num tanque de guerra, anunciando a nova era que viria… Achei GENIAL, pois foi um tapa na cara das pretensões da Nenê…
    E, como vc msm mencionou, a Rosas tb trouxe esses tanques de guerra…
    Pra mim, foi a consagração do carnaval de SP, pois deram um desafio e tanto às escolas, e elas fizeram bonito, no geral!

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