Bem se sabe que Nelson Rodrigues tem uma rica produção, considerando seu trabalho, em diferentes campos de atuação, como escritor, dramaturgo e jornalista. Atendo-se às suas crônicas, por exemplo, ele constrói, por meio do envolvimento entre os fatos jornalísticos e a recriação do real – aspecto marcadamente literário –, personagens que se tornam próprios de sua criação textual. A partir disso, podem ser feitas muitas análises interessantes sobre os escritos do anjo pornográfico, sendo uma delas a relação que ele possui com o esporte e, em especial, com o futebol.

No que se refere a essa temática, temos diversas denominações, que são codinomes ou epítetos, criadas por Nelson para aludir a seus protagonistas. É o caso, por exemplo, de Didi, jogador do Botafogo, que é tratado como “príncipe etíope do rancho” ou “imperador Jones”, e de Zagalo, chamado “Coração de Leão”. Além disso, há também os personagens inventados pelo cronista, a exemplo do Gravatinha, da grã-fina das narinas de cadáver e do Ceguinho.

 A crônica esportiva começou a ser por ele escrita a partir da década 50 no jornal Última Hora e, posteriormente, na revista Manchete Esportiva, já apresentando um modo de narrar próprio de um relato subjetivo e de resgate de memória, tendo em vista suas impressões acerca de determinado fato ou a lembrança do passado como ponto de partida da construção do texto. Cabe dizer, porém, que os acontecimentos acabam não sendo o fator central explorado por Nelson, como se o texto fosse meramente informativo, porque ele imprime à crônica um teor crítico na medida em que divaga ou comenta sobre algum aspecto referente ao comportamento humano. Dessa forma, a crônica assume um caráter transtemporal, já que não se limita a ser simples relato de um episódio.

A maneira como o cronista narra remete a um conceito autobiográfico, como ocorre na crônica intitulada “Bocage no futebol”, publicada em 14 de janeiro de 1956 na Manchete Esportiva. Nela, ele aborda o “impacto criador e libertário” do palavrão, sobretudo no futebol. O viés autobiográfico é percebido logo no início da crônica, quando o escritor recorre à memória da infância para escrever sobre o jogador Jaguaré, que não se adapta ao futebol europeu por este não fazer uso de “nome feio” e volta a jogar no Brasil, ganhando pouco, “mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus últimos palavrões terrenos”.

Nesse sentido, o exemplo do jogador Jaguaré é usado como ilustração de um pensamento sobre o uso do palavrão, defendendo um comportamento que muitas vezes é moralmente condenado. Diga-se de passagem, essa concepção rodrigueana faz grande falta a quem tem de conviver com o moralismo chato que, naturalmente, está presente não só no futebol.

09042401_blog.uncovering.org_nelsonO método de utilizar um fato para concretizar o pensamento exposto no texto pode ser visto também em outra crônica publicada na Manchete Esportiva, referente à morte de Maneco, jogador do América, que cometeu suicídio – tomando formicida – por causa de problemas profissionais e financeiros.

Tendo tal episódio como ponto de partida de sua reflexão, Nelson diz o seguinte: “Cada um de nós é um suicida frustrado. E se ainda não estouramos os miolos, ou não pendemos de uma forca, ou não tomamos formicida, é que nos salva, sempre em cima da hora, a nossa incoercível pusilanimidade vital. Mas se cancelamos o nosso suicídio, admiramos e, mais do que isso, invejamos o alheio”. Sendo assim, o que se tem nessa passagem é uma divagação sobre certa temática humana, que demonstra, claramente, uma visão inversa àquela que a sociedade geralmente adota sobre o suicídio.

Por meio de exemplos como esse, portanto, pode-se confirmar o caráter de a crônica de Nelson Rodrigues não se limitar a um mero julgamento simplista de determinado acontecimento. Além disso, é uma grande contribuição histórica, sem dúvida, ter o futebol de sua época tão bem registrado para o leitor que é apaixonado pelo esporte.

P. S.: Como sugestão de leitura, segue o link para o PDF do livro À sombra das chuteiras imortais