Abrir um livro para ler e se surpreender. Não tem nada dentro do livro, o livro está em branco, o livro está vazio.

Virar páginas e mais páginas procurando por algo escrito. Alguma história, alguma linha. Um romance, conto, poesia, um pobre nordestino sendo protegido por Nossa Senhora e voltando para ter uma segunda chance ou um candidato a Santo tirando Deus do sério por ser ateu.

Nada. Não tem nada disso. O livro está vazio.

Apenas nas últimas páginas se observam algumas frases, mas mal dá pra enxergar, identificar o que está escrito. As frases estão se apagando. Se apagam a cada segundo sem que a gente possa fazer nada e daqui a pouco o livro estará completamente vazio.

O livro estará vazio, a cultura também e a arte assim vai se perdendo.

É isso que vem ocorrendo. Não com um livro, mas com a nossa cultura.

Passamos um mês inteiro lamentando a entressafra do futebol brasileiro, a falta de surgimento de grandes craques com os quais sempre fomos acostumados. O único craque surgido no país nesses últimos anos foi o Neymar e na sua ausência vimos o quanto é grave a crise técnica e criativa do futebol brasileiro.

Mas a coisa é muito pior. A crise é mais ampla.

Jorge Amado morreu, Nelson Rodrigues morreu, Millor Fernandes morreu, Dias Gomes morreu, Plínio Marcos morreu, Gianfrancesco Guarnieri morreu, Augusto Boal morreu.

joaoubaldoJoão Ubaldo Ribeiro morreu.

Semana passada, na morte do grande escritor, autor de obras como “Sargento Getúlio”, “Viva o povo brasileiro”, “A casa dos budas ditosos” e “O sorriso do lagarto”, eu disse que só faltavam Ariano Suassuna e Luis Fernando Veríssimo morrerem pra gente poder fechar o Brasil de vez.

E logo depois o Suassuna morreu.

O paraibano/pernambucano Ariano Suassuna foi muito mais do que um grande autor regional. Se tivesse feito apenas “A pedra do reino” já seria considerado um dos grandes escritores da nossa história, mas ele também fez “O auto da compadecida”.

A hilariante e comovente história do sertanejo João Grilo é uma das coisas mais bonitas já escritas em qualquer língua do mundo. Como bem disseram no twitter essa semana se “O auto da compadecida” tivesse sido escrita em inglês seria um clássico mundial do nível das grandes obras de Shakespeare.

Mas Suassuna não era inglês. Era nordestino. Era brasileiro.

Graças a Deus.

Mortes como de João Ubaldo Ribeiro, Ariano Suassuna e também do professor Rubem Alves comovem, mas mais do que comover preocupam.

Como bem disse Suassuna, para se atingir todas as classes estão abaixando o nível da cultura feita. Tentam assim atingir o “gosto médio” sendo que nunca se viu um gênio que tivesse um “gosto médio”.

Uma nação é feita de homens e livros. É feita de educação, cultura e, nesse erro de abaixar o nível cultural para atingir uma cultura de massa, em vez de ensiná-la, acaba-se criando uma lacuna. Os grandes escritores nacionais, todos com mais de setenta anos, estão morrendo e nada surge.

Quem é o grande escritor brasileiro com menos de setenta anos?

Quem é o grande dramaturgo brasileiro com menos de setenta anos?

Pode-se apontar um nome ou outro de cenários alternativos, mas a maioria que ouvir esses nomes vai perguntar “Quem é?”. Nenhum chega ao grande público. Seja por preguiça desses artistas, do público ou de quem deveria fazer a ponte entre o artista e o público e está mais preocupada com a coisa comercial.

E é curioso porque isso ocorre em tempos de internet. Onde qualquer um pode criar um blog e escrever, lançar um e-book, gravar uma música a renovação não acontece. O grande escritor não surge.

Talvez porque essa ferramenta de ajuda não vem sendo bem utilizada. Não adianta ter a ferramenta se não existe o conhecimento. Saber escrever é um dom que muitos acham que tem, mas nem todos têm na verdade.

Você escreve um texto no Word e não precisa se preocupar com o português porque em caso de erro aparece uma linha vermelha abaixo corrigindo. Assim não se aprende a língua e quando tem que escrever num caderno ou papel se complica porque não há o corretor automático.

A internet difunde a ideia idiota que os textos tem que ser curtos, rápidos. Pra mim essa é a “cultura fast food”. Não se expressa um pensamento como se come um Big Mac. Cultura, pensamento, tem de ser saboreado, mastigado, apreciado como um prato fino. Um texto tem que ter o tamanho que ele pede. Onde todo o pensamento consegue ser passado.

Nem todo mundo que chuta uma bola é jogador de futebol, nem todo mundo que escreve é escritor. Não basta ter um blog. Tem que saber se expressar, saber o que contar. Não depender tanto de corretor ortográfico nem do Google.

Não adianta nada se declarar fã de João Ubaldo e Suassuna tendo que ir ao Google para saber o que escreveram.

A sorte é que escritores são imortais. Machado de Assis e Shakeaspeare morreram há muitos anos e estão aí presentes como João Ubaldo e Suassuna que partiram recentemente. Sempre existirão livros e peças. Mas o público muda, a linguagem se renova e cada geração necessita de seus escritores. Aqueles que vão expressar as vontades e os anseios de seu tempo como os pré-históricos faziam nas pedras.

E o meu medo é que nossa pedra, a de nosso tempo, fique vazia. O livro vazio.

E quando um jovem nos perguntar como foi nosso tempo a resposta seja.

Não sei, só sei que foi assim.