O Brasil – sabe-se há tempos – é um país de 200 milhões de técnicos de futebol em época de Copa do Mundo. Com tamanha diversidade, é raro que a opinião pública convirja para a unanimidade, ou até mesmo para uma visão amplamente majoritária.

Tive a oportunidade de, neste mesmo espaço, elogiar a maneira pela qual Felipão conduziu o processo de montagem de sua equipe, incluindo aí os reservas, de modo a conseguir um apoio maciço da população e dos jornalistas esportivos. Aqui e ali, cada um poderia apontar uma ou duas posições em que sugeriria uma alternativa. O que é natural. Mas nenhum esquecido mereceu clamor público pelo seu nome, nenhum convocado provocou revolta popular. O nome mais “contestado”, se é que se pode chamar assim, foi o de Henrique, o último zagueiro da lista, que dificilmente pisará no gramado. Quem acompanha futebol há algumas Copas sabe o quanto isso é raro – eu diria, inédito.

Portanto, o que temos à disposição do técnico é, hoje, o que deveríamos ter. Qualquer que seja o resultado, não sentiremos a falta de ninguém. E, partindo de um cenário tão promissor, de um cacife tão alto junto à opinião geral, Felipão está conseguindo reverter contra si a boa vontade popular.

20140623_180946O primeiro jogo, contra a Croácia… Bem, era o primeiro jogo. Natural que o time demore a engrenar, ainda mais levando aquele gol contra logo de cara e tendo pela frente um adversário que de bobo não tem nada. E, ainda assim, sem jogar bem, com uma leve ajuda do apito, o Brasil reagiu e venceu com alguma folga. A equipe parecia ter evoluído ao longo do jogo.

Na segunda partida, tivemos pela frente um time bem fechado, com a proposta de não deixar jogar, ainda que não jogasse muito também. O México cumpriu bem seu papel, o que lhe premiou com a passagem de fase. Vimos nas oitavas, frente à Holanda, que era efetivamente um time difícil de ser batido. O Brasil ficou amarrado na armadilha mexicana, mas o resultado pode ser justificado pelo ferrolho imposto.

Na terceira partida, contra um adversário visivelmente mais fraco e desmotivado, o time cresceu um pouco, apesar de não ter dado show. Mas o que impressionou foi que, no segundo tempo, Felipão finalmente saiu de seu desenho tático inicial, povoou o meio de campo e a performance cresceu, além de ficar notavelmente mais parecido com aquilo que, pelo menos no Brasil, a gente se acostumou a chamar de futebol.

Ficou-se discutindo se foi a entrada do Fernandinho que teria dado outra cara ao meio de campo, mas já ali alguns comentaristas perceberam que a diferença foi numérica. Tirar um atacante e colocar mais um meia, este seria o caminho. Ou não?

Felipão achou que não. Começou a quarta partida, contra o Chile, com a formação que havia consagrado seu esquadrão como campeão da Copa das Confederações: o 4-3-3. Com Fernandinho no lugar de Paulinho, é certo, mas ainda com apenas um armador de ofício, o isolado e solitário Oscar. Pior ainda, manteve o padrão de saída de bola com ligação direta entre os zagueiros e os atacantes, rifando a bola com facilidade, abrindo mão da pose de bola, do controle das ações, de ditar o ritmo de jogo, de cadenciar, de procurar as brechas, de se valer da criatividade.

O resultado foi ter sido dominado pelo Chile durante 90 minutos, mais 30 de prorrogação. Pode-se até dizer que, até a bobeira de saída de bola errada que resultou no gol de empate chileno, o Brasil parecia dar conta do recado. Mas uma coisa é estar à frente do placar, outra coisa é ditar o ritmo e controlar uma partida. E aquela partida, tivesse o placar que tivesse, era controlada pelo Chile. Eu arrisco dizer que, naquelas condições, se o Chile dispusesse de um jogador decisivo no setor criativo, um craque indiscutível na armação, teria matado o jogo no tempo regulamentar. E que a nossa sorte foi ter pela frente um adversário muito bem armado taticamente, com ótimos jogadores, com um jogo coletivo eficiente, mas sem um craque extra-classe.

20130622_170907E, ainda assim, o setor mais decisivo para o domínio territorial do jogo, o meio de campo, foi totalmente entregue à seleção chilena. Isso é um risco absoluto no futebol. Um risco ao qual Felipão se lançou, aparentemente de modo consciente. E por que, afinal?

Nosso técnico apegou-se ao pior tipo de teimosia: a dependência de seu sucesso anterior. Explica-se: na campanha vitoriosa da Copa das Confederações, a equipe a ser batida, aquele que jogava o futebol a ser copiado e, se possível, aprimorado e superado, era a Espanha. Qual era a proposta espanhola? Abafar a saída de bola do adversário, tomar a posse nos últimos trinta metros do campo e ser rápida, aguda e mortal na conclusão. Durante todo o resto do tempo, quando recuperava a bola em seu próprio campo, a Espanha gastava o tempo tocando a bola e administrando o ritmo, até ter uma nova chance a partir do erro do oponente. Jogaram assim por cerca de oito anos, com auge entre a Euro-2008 e a Copa 2010.

Jogando a Copa das Confederações em casa, contando com a força da torcida, Felipão montou uma versão, digamos, “pragmática” do estilo espanhol. Passou a abrir mão da posse de bola, empurrando a responsabilidade da saída para o jogo constantemente para o adversário, pressionado no campo de defesa 90% do tempo, usando de força e velocidade para dar o bote e concluir em gol. Deu certo. Ele fechou o grupo naqueles nomes e naquele modelo de jogo. Tinha tudo para funcionar de novo.

E por que não funciona?

Por três motivos principais. O primeiro, e mais visível, é que a repetição de uma mesma maneira de jogar perde seu efeito surpresa. As demais seleções vieram, desta vez, preparadas para a proposta de jogo do Brasil. Some-se a isso que, há um ano, o Brasil era uma equipe em formação e em busca da reconquista da hegemonia perdida. Hoje, é o adversário a ser batido. E isso muda tudo.

O segundo motivo é de base psicológica. É mais fácil jogar marcando pressão em campo inteiro com uma torcida envolvida em ajudar a abafar o adversário, empurrar o time o tempo todo e quando se joga sem o peso do favoritismo. Porque a proposta de marcação adiantada expõe flancos na retaguarda, e quem joga assim assume um certo risco e uma irresponsabilidade medida e prevista. O momento é outro agora. A pressão pela Copa deixa a equipe nacional insegura em pressionar para valer a saída de bola do oponente. A torcida, ainda mais elitizada graças aos preços dos ingressos para a Copa, mais envolvida com o evento do que com o time, já não ajuda a abafar ninguém.

20130630_201030O terceiro motivo é o mais importante, porém o mais sutil. A proposta de jogo da seleção brasileira necessita, para funcionar, de um estado atlético dos jogadores que não se apresenta este ano. A diferença se dá por muitas vias. Numa Copa, a maioria dos jogadores de todos os times vem do final de temporada europeia, em péssimas condições físicas. O Brasil de 2013 tinha, com a mesma base de hoje, mais jogadores domésticos, que estavam em meio de temporada. Peças fundamentais como Paulinho e Bernard foram jogar na Europa também. Outros, ainda que não tivessem mudado de clube, vieram agora de uma temporada especialmente acidentada, como Oscar, Fred e Neymar. E, por fim, sendo a base idêntica há de um ano atrás, temos um elenco que já emenda a segunda temporada seguida sem férias, uma vez que no ano passado, estavam todos disputando a Copa das Confederações. E isso tem feito toda a diferença.

Restaria a Felipão reconhecer – ainda que tacitamente – que o planejamento falhou. Que, ao repetir sua formação tática em condições menos favoráveis, ele cometeu um erro estratégico. Ainda mais por não ter uma alternativa treinada e posta à prova. Restaria dar ouvidos a nove entre dez comentaristas e escalar quatro jogadores no meio de campo, em detrimento do atacante fixo. No caso, Fred, que vem sendo completamente inoperante.

A questão é, portanto, do posicionamento do time dentro de campo, de ocupação de espaços, de proposta de jogo. A questão é fazer a bola ser colocada de novo no chão, curar o torcicolo que o Oscar deve estar sentindo ao ver a bola passar daqui para lá, e de lá para cá, por cima de sua cabeça, sem que ele tenha a possibilidade de armar alguma jogada, de articular uma tabela, de cadenciar o jogo. Para isso, seria preciso colocar outro meia em campo, parar de lançar a bola direto da defesa.

Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Por não contar com Luis Gustavo, suspenso, a imprensa dá conta de que Felipão pensa na hipótese de escalar um terceiro zagueiro. É a clara sinalização de que assumiremos de vez o padrão de bolas longas diretas entre zaga e ataque, sem necessidade de meias.

Há várias maneiras possíveis de ganhar ou perder. Felipão parece estar optando pela pior maneira de fazer qualquer uma das duas coisas.

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