Neste terceiro artigo da série sobre a ditadura, me proponho a abordar um tema clássico do estado de exceção: a censura – na época e hoje, no Brasil e no mundo. O assunto é dos mais importantes, porque ainda há quem diga que “quem só trabalhou e não se envolveu em política viveu bem na ditadura”. Os que compartilham dessa opinião ignoram os males do controle da informação, e imaginam que “viver bem” equivale a passar a vida cantando o hino nacional e assistindo a telenovelas assépticas. Pensar, nem pensar.

O tema ainda está longe de ser incontroverso. A liberdade de expressão deve ter limites? Quais? Em que medida é cerceada hoje em países avançados? A primeira tarefa consiste em classificar as diversas modalidades de censura: há censura à imprensa (que em nosso tempo inclui a internet); há censura à produção autoral, científica ou artística; há censura acadêmica; há censura ao debate público.

Também podemos classificar a censura pelos meios pelo qual se efetiva: censura prévia; sanções impostas a posteriori a quem divulga ideias “inconvenientes” (tanto com fins punitivos quanto de dissuasão); sabotagem e perseguição de pessoas e grupos que professem tais opiniões; sobretaxação e sobrepreço de materiais essenciais à divulgação de ideias; o próprio controle da produção, que pode se servir dos métodos mais simples aos mais complexos.

O modelo de censura à imprensa utilizado no Brasil foi muito eficiente: os bajuladores recebiam benesses e os veículos que se opunham ao regime foram estrangulados economicamente. Quando a censura prévia foi instituída, só foi necessário vigiar o conteúdo da Veja de Mino Carta e do teimoso Estado de S.Paulo, lacerdista. Os demais eram confiáveis. A autocensura é sempre o primeiro resultado das táticas mais sutis de censura externa.

paginapublicada_ok(1)A efêmera história das receitas de bolo no Estadão ainda é repetida ad infinitum como se fosse um grito de rebeldia dos jornais (todos eles) contra os censores. Muitos preferem esquecer que o grupo Estado foi entusiasta de primeira hora do golpe e seu defensor até o fim, a ponto de criticar abertamente a campanha das diretas. Também não gostam de lembrar que Folha, Globo e JB não precisavam publicar receitas nem poemas porque com estes os censores não perdiam tempo: sabiam que eles sequer cogitavam morder a mão que os alimentava.

Em sua superestimada tetralogia sobre a ditadura brasileira, Elio Gaspari observa: “Atribuir o fim da censura a qualquer tipo de pressão direta sobre o regime seria um exagero… Atribuí-lo a um movimento dos proprietários de jornais, revistas e emissoras, um despropósito. Devê-lo a uma resistência maciça dos jornalistas, uma cortesia impossível.” De forma um tanto simplória, Gaspari diz que “o fim da censura só se explica através do complexo mecanismo de uma decisão imperial do presidente Ernesto Geisel.”

A afirmação é simplória porque Gaspari, ao mesmo tempo em que conclui que, não apenas a censura, mas toda a ditadura foi desmontada segundo um plano preconcebido por Geisel e seu lugar-tenente Golbery, admite que o presidente da abertura não era um democrata, e só se convenceu da necessidade da “acabar” com a ditadura porque esta carecia de “estrutura e força para se perpetuar”.  Claro: o fim da ditadura foi resultado de arranjos sociais estruturais, que só uma simplificação grosseira pode atribuir aos desígnios de um ou dois indivíduos.

ernesto-geisel-vejaNo entanto, a seguinte declaração de Geisel é totalmente verossímil:  “Recebi no palácio todos os donos de órgãos de comunicação. Nenhum me pediu o fim da censura.” De fato, o fim do controle do governo ditatorial sobre a produção jornalística, artística e intelectual do país era de interesse do povo, não necessariamente de Roberto Marinho, que se tornou o homem mais rico do país graças a uma estrutura de poder autoritária.

Não é provável que barões da mídia se incomodem sinceramente com a censura, exceto na medida em que isso os afeta pessoalmente. Na balança de poder, a censura é, afinal, uma forma de coagir os mais fracos, e os magnatas das comunicações nunca deixaram de ser fortes no Brasil.

É quase certo que, se recebesse no palácio artistas e acadêmicos censurados, Geisel ouviria pedidos pelo fim da censura (desde que aqueles se sentissem à vontade para falar). Mas a ideia que o ditador fazia de política era conversar com empresários, não com intelectuais críticos, muito menos com o povo.

O Brasil de hoje ocupa o 111º lugar, entre 180 países, no índice de liberdade de imprensa da ONG francesa Repórteres sem Fronteiras. Esta organização é frequentemente criticada pela esquerda por partir de um ponto de vista pró-americano e preconceituoso contra os países ditos “bolivarianos”. De qualquer modo, a Venezuela (116º do mundo) tem só 0,62 pontos a menos que o Brasil. Bolívia, Equador e Nicarágua aparecem à nossa frente, e também de Israel e Grécia.

O melhor sul-americano na lista é o Uruguai de Pepe Mujica (26º), à frente dos EUA, Grã Bretanha e França. O pior é a Colômbia (126º), atrás dos Emirados Árabes, Mali e Sudão do Sul. A Argentina (55º) aparece um pouco à frente do Chile, do Japão e da Coreia do Sul. O pior de toda a América Latina é Cuba (170º), ainda à frente da China, e o segundo pior é o México (152º), pouco atrás da Rússia, do Myanmar e da República Democrática do Congo. O melhor é a Costa Rica (21º), logo à frente da Bélgica.

Um problema deste ranking é que ele considera igualmente atentatório à liberdade de imprensa o controle governamental e a violência sofrida diariamente por jornalistas no exercício de suas atividades. Isso pesa contra países cronicamente violentos como o Brasil, que, em número de jornalistas mortos em serviço até o momento em 2014, só perde para a Síria. De toda sorte, seu relatório sobre o Brasil dificilmente seria endossado por nossa mídia tradicional.

Começa dizendo que a liberdade de informação teve grandes avanços no Brasil sob o governo Lula, mas que o jornalismo ainda sofre com a violência e com indenizações judiciais exorbitantes e censura prévia determinada pela Justiça, o que afeta principalmente a informação online.  Conclui dizendo que o nível de concentração da propriedade dos veículos de mídia continua a ser muito elevado, o que contrasta com a diversidade da sociedade brasileira. “Dez grandes grupos de mídia ainda controlam o mercado de impressos e as frequências radio-televisivas” (http://en.rsf.org/report-brazil,169.html).

O que dizer, agora, de países que não estão, nem estiveram no passado recente, sob o jugo de uma ditadura? Os Versos Satânicos, livro que rendeu a Salman Rushdie uma infame fatwa em 1989, não foi banido apenas em países islâmicos, mas também, ainda que temporariamente, em algumas democracias liberais. À distância de duas décadas ficou fácil criticar o fanatismo do Aiatolá Khomeini, mas na época o furor foi tal que a megarrede de livrarias Barnes & Noble suspendeu a venda do romance, e até políticos conservadores como Margareth Thatcher foram a público condená-lo.

A censura da “obscenidade” era comum até pouco tempo atrás inclusive em nações liberais, e a do excesso de violência ainda é. Nos EUA, o puritanismo levou à proibição de livros como Ulisses, de Joyce, e Trópico de Câncer, de H. Miller, nos anos 1930, e dificultou a circulação de clássicos como o Decamerão, de Boccaccio, e Os Contos de Canterbury, de Chaucer. Na Inglaterra, a primeira edição de Moby Dick recebeu mais de mil emendas, por palavras “sacrílegas”, pela menção a uma cueca, por referências a esperma de baleia e por outras passagens igualmente escandalosas.

Filmes de horror de mau gosto como Terror sem Limites e A Centopeia Humana ainda são vetados em países de indiscutível credencial democrática, mas, devido à facilidade com que o público desse tipo de película consegue obter cópias na internet, a censura acaba funcionando mais como marketing do próprio filme, a ponto dos produtores se gabarem da proibição.

E há obras que, ainda na segunda metade do século XX, foram vítimas de veto por razões políticas, como A Batalha de Argel (França), O Encouraçado Potemkin (Grã Bretanha) e Sem Novidade no Front (Itália). Recordar estes casos nos ajuda a ter em mente o quanto a liberdade de expressão é um direito recente e frágil.

A Blasphemy Law do Reino Unido, que teve origem no direito canônico e previa a condenação de qualquer um que duvidasse da existência de Deus ou criticasse a fé cristã, só foi formalmente revogada em 2008 (a última condenação, já um tanto surpreendente pelo anacronismo, fora em 1977, e um filme fora banido com base nessa lei ainda em 1989). A legislação contra blasfêmia da Holanda, país com longa tradição de liberdade de expressão e de religião, foi revogada há meros seis meses. O fato é que hoje se costuma utilizar este tipo de lei principalmente para reprimir manifestações de intolerância contra as religiões. A partir de determinado ponto, fica difícil traçar a linha entre a liberdade de expressão e a violação de outras liberdades, como a de crença.

200px-John_D._Rockefeller_1885Nos EUA (país da Primeira Emenda) dos anos 1920, Bertrand Russell (“Free Thought and Official Propaganda”) notou que dificilmente um professor universitário que criticasse a Standard Oil obteria uma cátedra, pois todas as universidades já receberam ou esperavam receber doações de Mr. Rockefeller. Notou ainda que os americanos que se assumissem como socialistas ficavam marcados na sociedade, e tinham grande dificuldade de conseguir qualquer emprego. A seu ver, a formação de monopólios e oligopólios ameaçava a liberdade de opinião do mesmo modo que o estatismo soviético.

Hoje a realidade é um pouco mais flexível, e foi uma bênção para a tolerância que a Europa tenha percebido, após 1945, que os conflitos ideológicos radicais precisavam ser relaxados. Mas o tipo de controle denunciado por Russell sobrevive em muitos lugares, de forma modificada. Paradoxalmente, métodos toscos de censura podem ser combatidos com mais facilidade. Ainda não há uma forma infalível de proteger o direito de opinião dos poderes estabelecidos, sejam estes políticos, sejam econômicos.