Há jogos com maus resultados. E há tragédias do futebol.

São coisas distintas. Vi muitas derrotas do meu Flamengo (e muito mais vitórias, claro), mas a perda daquela Copa do Brasil para o Santo André teve ares de tragédia. A seleção brasileira, ainda que maior vencedora de Copas, perdeu mais do que venceu os torneios que disputou. Mas há um consenso de que nada supera o Maracanazzo de 1950 como tragédia.

Não vivi a tragédia de 1950. Mas tenho uma tragédia pessoal em Copas do Mundo. Um jogo que é lembrado, especialmente por muita gente da minha geração (eu nasci em 1966): o Brasil x Itália da Copa de 1982, vulgo “A Tragédia do Sarriá”. E, como contarei, tenho mais razões e dores para considerar aquele o pior jogo de todos os (meus) tempos.

Eu era adolescente, tinha 16 anos. E como a maioria dos adolescentes, vivia em bando, cercado por uma turma imensa de amigos da Escola Técnica e agregados das mais diversas tribos. Todo mundo queria convidar o grupo inteiro para ver o jogo em suas casas. Então, combinamos um rodízio: cada jogo na casa de um. Adivinha onde foi Brasil x Itália?

O jogo foi em 5 de julho, dia de aniversário do meu pai. Aproveitaríamos para comemorar juntos a classificação para a semifinal e o aniversário. Minha mãe cozinhou uma panela de macarrão para um batalhão. Logo o italianíssimo espaguete à bolonhesa, o prato mais tradicional da minha família. Parte da turma seguiria direto, depois do jogo, para um acampamento na Serra dos Órgãos e era preciso alimentar toda aquela gente.

Claro que o clima do pré-jogo era de total animação e otimismo. A Itália havia feito uma primeira fase tecnicamente ruim, quase eliminada, e seus jogadores viviam em crise com torcida e imprensa. Com alguma surpresa, vimos a abertura daquela fase com uma vitória italiana sobre a Argentina. Mas nós também passaríamos pelos “hermanos” até com maior facilidade. O que viria a nos dar a vantagem do empate naquela fatídica partida contra a Itália.

Quanto ao Brasil, bem, o Brasil…

campinho_Italia_Brasil_1982_1Vivia uma lua de mel com a torcida, e até a imprensa esportiva, sempre pronta para todo tipo de crítica, estava num momento de total apoio. Como eu sempre gostei de andar na contramão do senso comum (raras vezes o senso comum diz algo que preste), eu tinha uma avaliação bastante crítica da seleção. Mas é verdade que aquela equipe tinha uma quantidade de talento rara na história do futebol, e eu sabia bem disso também.

Na zaga, Oscar sempre se destacou por ser um jogador talhado para a seleção, apesar de ser apenas um bom zagueiro em clubes. Em compensação, tinha a seu lado um dos defensores mais técnicos de sua época, o atleticano Luizinho, que estava jogando o fino. Os laterais eram os extraordinários Leandro e Junior, com grande potencial ofensivo. O quadrado do meio-campo se aproximava da perfeição, com Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico. No ataque, Éder vivia uma fase muito boa.

Tecnicamente, havia duas posições em que o técnico Telê Santana sofria críticas por suas escolhas: o goleiro Valdir Perez e o centroavante Serginho. Valdir era bom goleiro, experiente, mas não era o melhor do país naquele momento. Só que Leão e Raul Plassmann eram desafetos de Telê. O que nos leva a um problema mais grave: o técnico era dado a cismas, a rixas pessoais

Eu vi, poucos meses antes da Copa, o meu Flamengo ser campeão mundial com uma das equipes mais perfeitas e modernas da história do futebol. Telê, com fortes raízes no arqui-rival Atlético Mineiro preferiu dividir a base da seleção entre o time mineiro e o Flamengo. E deixou para trás jogadores da qualidade de Raul, Andrade, Tita e Adílio, além de um entrosado Nunes, já que era o caso de apostar num centroavante trombador. Um técnico menos afeito a rixas e picuinhas teria tomado o time campeão mundial como base da seleção, acrescentando a genialidade de Cerezo, Falcão e Sócrates.

Além disso, naquela época era costume transmitir toda a fase preparatória da seleção pela tevê. E podia-se constatar que Telê não dava treinos táticos, não ensaiava jogadas e situações de jogo. A “preparação” da equipe foi um sem-fim de treinos coletivos e recreativos. Tendo uma geração de jogadores especialmente técnicos, o treinador apostou em deixar seus craques se entrosando naturalmente, na esperança de que apenas a qualidade nata e a ofensividade natural do time fossem resolver qualquer situação. Uma visão romântica e ingênua do futebol que, infelizmente, até hoje encontra admiradores no jornalismo esportivo. Daí Telê ser idolatrado por alguns até hoje, mesmo tendo sido o grande perdedor de uma geração de ouro.

Outro defeito grave daquele time era o desequilíbrio entre poder ofensivo e negligência em recompor seu sistema defensivo. Eram dois laterais que subiam ao mesmo tempo sem um único volante firme na marcação, nem sistema de cobertura. Este improviso gerava momentos de brilho ofensivo inacreditável, com deslocamentos intuitivos de grandes craques.

campinho_Italia_Brasil_1982_2Ou situações bizarras em que Zico fixava-se durante longos minutos como um ponta-direita, para equilibrar uma equipe torta, que tinha um ponta especialista pelo outro lado. Ou a bobagem, repetida durante toda a Copa, de ter um jogador como Sócrates na linha de mais retaguarda do meio-campo, já que Falcão e Cerezo subiam desordenadamente.

Logo Sócrates, que até poucos anos antes atuava como centroavante no Botafogo de Ribeirão Preto, e poderia ter solucionado a falta de um atacante de área igualmente técnico, que “falasse a língua” de um time que tocava tão bem a bola. Este atacante, que a fragilidade física de Reinaldo e Careca haviam roubado como opção para Telê. Se Sócrates tivesse ocupado este espaço – tal qual Tostão fizera em 1970 – haveria uma vaga para um jogador mais afeito à marcação (com qualidade de saída de bola) como Andrade ou – já que Telê tinha problemas pessoais com ele – Batista (que fosse).

Eu, chato que sou, detalhista que sou, pouco chegado a análises superficiais que sou, sabia que o time de Telê tinha estes defeitos graves. Mas também sabia que poucas equipes da história reuniram tanto talento ao mesmo tempo. Sendo assim, minhas dúvidas eram quanto ao título, eram para as fases posteriores, quando a qualidade dos adversários inevitavelmente subiria. Mas não contra a Itália, logo a Itália, a fraca Itália, em crise desde antes da Copa [1].

O jogo começou e a Itália deixou a crise no vestiário (para nunca mais voltar – a Itália foi a campeã). Jogava forte, com uma marcação implacável, ditando o ritmo do jogo, sempre mais perigosa. Antes mesmo de abrir o placar, levou pressão à defesa do Brasil. Todo mundo – eu, amigos em volta, Telê, seus jogadores, o Brasil inteiro – parecia pensar igual: uma hora dessas, o talento falará mais alto e a gente resolve a parada. Mas o jogo foi ficando nervoso, e junto com ele, os brasileiros, dentro e fora de campo.

A Itália abriu o placar, o Brasil correu atrás e justificou as esperanças de que o talento resolveria sozinho. No caso, a soma de dois talentos excepcionais: Zico, com um passe genial, e Sócrates, com antevisão e precisão.

Cerezo cometeu o erro infantil de cruzar uma bola lateralmente na saída para o jogo, Paolo Rossi aproveitou e a Itália passou à frente de novo. Cerezo chorou e despencou emocionalmente. Junior tentou trazê-lo à razão, mas ali o time começou a “acreditar” na derrota. Ainda assim, mais uma vez, o talento soube reagir. Falcão, num gol espetacular.

A sala da minha casa virou arquibancada, de vez. Abracei um amigo, pulamos juntos, outro agregou-se ao abraço e perdemos todos o apoio. Caímos juntos sobre a mesa de centro cheia de salgadinhos, copos e garrafas. Eu fiquei por debaixo. Tudo voou, a mesa de mármore partiu-se, copos se estilhaçaram por baixo de mim. Os amigos se levantaram, a comemoração ficou em suspenso. Eu, deitado, pálido, parecia morto. Daí, eu gemi que estava bem, apenas doía a costela. Alívio geral, pelo jogo e pela minha “sobrevivência”.

Fui para o banheiro, reparar os arranhões, recuperar-me do susto e agradecer pelo milagre duplo. Estava por lá, ainda, quando a Itália fez o terceiro gol. Eu só vi no replay.

Vi o restante do jogo com muita dor nas costas e na cabeça. Mas não eram mais fortes que as dores nas almas de todos os presentes. Havia também uma amiga com quem eu havia “ficado” (isso já existia) numa festa há menos de uma semana. Eu previra um final de jogo menos traumático, com grandes possibilidades românticas, com festa, com macarronada geral, com bolo pelo aniversário do meu pai.

A soma de quatro craques extraordinários no mesmo meio-de-campo da seleção, nunca mais. Um beijo na bela “ficante”, nunca mais. Um aniversário do meu pai, ou aquele espaguete de família sem a lembrança amarga de 82, nunca mais. Minhas costas inteiras, nunca mais. E até o estádio de Sarriá, em Barcelona, foi demolido anos depois pelo Espanyol.

Sarriá, nunca mais.

[N.do.E.: curiosidade: aquelas quatro partidas vencidas pela Itália no caminho do título foram as únicas vitórias da Azzurra em um espaço de quatro anos, entre 1980 e 84. PM]

http://www.youtube.com/watch?v=RVxEWmDS4UY

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