Em 2 de julho de 2010, o Brasil entrou em campo para disputar uma vaga na semifinal da Copa do Mundo da África do Sul. Então com 11 anos, não me lembrava de nenhum jogo do Mundial de 2002 e havia ficado muito decepcionado no fracasso na Copa da Alemanha. Estava, portanto, confiante no “meu” primeiro título de Copa do Mundo.

Como se sabe, o Brasil saiu na frente, mas acabou levando a virada e foi eliminado novamente nas quartas de final. À época, meus pais já eram separados e eu assisti ao jogo com o meu pai, que, assim que o jogo acabou, me levou para a casa da minha mãe. Lá, encontrei o mesmo clima do qual havia me despedido em meu outro lar. Aquela decepção característica que quase todo o país tem quando o Brasil perde – até quem não sabe o que é bola.

Apesar da tristeza, minha Copa não terminava ali. No mesmo dia, um pouco mais tarde, aconteceria um dos confrontos mais interessantes daquele Mundial – e que se tornaria muito mais do que isso. Tratava-se da tradicionalíssima, mas adormecida, Seleção do Uruguai e da surpreendente Gana, última sobrevivente do continente-sede e que tentava levar a África pela primeira vez a uma semifinal.

uruguai e gana 1O Uruguai chegou à África do Sul carregado de desconfiança. Após um fiasco na Copa de 2002 e depois de ver a Copa da Alemanha pela TV, a Celeste suou sangue nas eliminatórias e só conseguiu avançar, com certo sofrimento, na repescagem contra a Costa Rica. O sorteio não foi muito amigável e colocou a bicampeã do Mundo no “grupo da morte sem grife”, o A, junto com a anfitriã África do Sul, a tradicional França e o sempre perigoso México.

Apesar de tudo, o Uruguai deu certo na Copa. Depois de um empate em zero a zero (em um jogo chato, bem chato) na estreia contra a França, os uruguaios bateram África do Sul e México, avançando em primeiro lugar. Já com certo favoritismo, a Celeste despachou a Coreia do Sul nas oitavas de final e passou a sonhar com o tri.

Já tida como maior esperança africana, ainda mais depois que Costa do Marfim foi colocada em uma chave com Brasil e Portugal, Gana entrou na Copa tentando a segunda vaga no Grupo D. Com a Alemanha muito favorita encabeçando o grupo, a briga era mesmo com Sérvia e Austrália.

A vitória sobre os sérvios na estreia com um gol de pênalti aos 39 do segundo tempo foi fundamental, porque, na sequência, os europeus bateram a favoritíssima Alemanha. Gana ainda bobeou ao empatar com a Austrália e, mesmo fazendo jogo duro com os alemães, foi derrotada. A classificação só veio porque a Austrália ganhou da Sérvia.

E a sorte estava ao lado dos ganeses. Se tudo saísse como planejado, o adversário nas oitavas seria o bom time da Inglaterra que, entretanto, perdeu o primeiro posto para os Estados Unidos. Aí, Gana ganhou um adversário bem mais acessível. Em um jogo bem interessante, venceu por 2 a 1. Agora, como zebra, tentaria superar a força de um Uruguai que tentava mostrar que ainda estava vivo.

Uruguai e Gana 3O jogo começou confirmando o favoritismo do Uruguai, que criou pelo menos quatro chances perigosas de gol nos 20 primeiros minutos. A partir da segunda metade do primeiro tempo, contudo, o time ganês se soltou e passou a assustar o Uruguai. A velocidade característica dos africanos, aliada a um sistema defensivo mais consistente que os de outros tempos e a um estádio totalmente aliado dos africanos, deixou o jogo totalmente em aberto.

No primeiro tempo, a Celeste foi mais perigosa, mas esteve longe de dominar o jogo. Isso até o último lance da primeira etapa, quando Suelly Muntari arriscou de fora da área e, contando com uma quicada da bola na frente do goleiro Muslera, a bola foi para o fundo das redes, abrindo o placar a favor dos africanos, que se aproximavam cada vez mais de um momento histórico em sua Copa mais especial.

Gana, afinal de contas, não jogava por um país, mas sim por todo o Continente. Vinte anos depois da primeira grande aparição dos africanos em uma Copa, o Camarões de Roger Milla, a África tinha novamente um grande momento, estava novamente brigando lá em cima. E, agora, em casa. Faltavam, porém, 45 minutos.

Ao contrário de Milla e companhia, Gana não era mais um time africano “de raiz”. Aquela coisa de fazer um gol e continuar atacando sem se importar com adversário, torneio ou fase, não existia mais. Gana, assim, começou o segundo tempo mais recuada. Não era exatamente uma retranca, mas era uma postura mais tímida.

O Uruguai também não começou a segunda etapa desesperado em busca de empate, mas viu brilhar a estrela daquele que seria o melhor jogador da Copa. Aos 10 minutos do segundo tempo, Diego Forlán enganou o goleiro ganês ao bater direto pro gol e empatar o jogo. Antes que o jogo virasse um drama, a Celeste chegou ao empate.

O gol foi capaz até de calar as infernais vuvuzelas que tocavam incessantemente no Soccer City, em Johannesburgo. Pelo menos por dois minutos, intervalo entre o gol e a primeira boa chance de Gana após o empate. É fato que os africanos não se abateram. O jogo era tenso. A diferença de camisa entre Uruguai e Gana não se fazia presente em campo e um desavisado que não soubesse os times envolvidos, pela tensão da partida, poderia dizer que se tratava de um Brasil x Itália ou um Alemanha x Argentina.

uruguai e gana 5Se Gana não era mais aquela África irresponsável, o Uruguai ainda tinha em seu DNA aquela característica inconfundível de abusar da vontade nas divididas. Cartões amarelos saíram a rodo e a cada escanteio eram vistos alguns empurrões e puxões dentro da grande área.

Para quem não era torcedor de nenhum dos dois times, o jogo ficou bem divertido. A partida ficou aberta, com boas chances para os dois lados e ninguém tinha medo de atacar. Em uma Copa que começou a consagrar o hoje louvado – pero no mucho – “tiki-taka” espanhol, é bacana lembrar uma partida como essa. Mais bacana ainda era, à época, saber que uma delas estaria na semifinal.

O Uruguai era superior tecnicamente. Era um time inteligente, de jogadas rápidas e de um ótimo toque de bola. Tinha um Forlán em grande fase, além de um goleador nato, Luis Suarez. Gana, investia na velocidade e em jogadas individuais, surpreendentes até. No fim das contas, uma coisa equilibrava a outra. O equilíbrio se manteve até o fim e o jogo terminou empatado, levando a disputa para a prorrogação.

O tempo extra não foi dos mais animados. Uruguai e Gana criaram uma chance de gol cada, mas o jogo rumava mesmo é para os pênaltis. Pelo menos até os 15 minutos do segundo tempo. Após um bate-rebate, o time ganês cabeceou uma bola que fatalmente entraria no gol. O goleiro Muslera já tinha ido e nenhum dos defensores posicionados sobre a linha conseguiria tirar a bola por vias normais.

Digo por vias normais porque aconteceu aí uma insanidade daquelas que transformam jogadores em heróis. O atacante Luis Suarez, em um impulso daqueles que talvez nem ele saiba explicar, fez uma defesa com as mãos e evitou o gol. O ato era plenamente justificável: evidentemente ele seria expulso, o pênalti seria marcado, mas e daí? O que ele e o Uruguai tinham a perder? Era o último lance do jogo, um gol significaria a eliminação. Fazendo o pênalti, a Celeste ganharia mais uma chance.

O atacante uruguaio ficou do lado de fora do campo, com as mãos na boca, esperando a cobrança de Asamoah Gyan. Ele já havia transformado aquela partida em algo especial, mas a mesma poderia se tornar histórica. E se tornou. Gyan bateu forte, alto, a bola explodiu no travessão e foi para fora. Fim de jogo, 1 a 1. O Uruguai continuava na briga.

Uruguai e Gana 4Forlán abriu a série e converteu o primeiro pênalti. Gyan não se abateu com a chance perdida no tempo extra e empatou. Victorino, Appiah e Scotti repetiram a dose e o Uruguai abriu 3 a 2. Na terceira cobrança dos africanos, o arqueiro Muslera defendeu o chute de Mensah e a Celeste se aproximou da semifinal, que não alcançava há 40 anos.

Mas nada deveria ser tão fácil assim para a primeira campeã do Mundo. Maxi Pereira chutou para fora e Gana teria a chance de empatar. Entretanto, Adiyah, em cobrança muito semelhante à desperdiçada pelo companheiro Mensah, também parou nas mãos de Muslera.

Era chegada a hora de decisão. Sebastán ‘El Loco’ Abreu, jogador do Botafogo, que havia começado no banco de reservas, poderia classificar o Uruguai. Quem acompanhava futebol brasileiro imediatamente se perguntou: vai ter cavadinha? Depois de bater assim em uma final de Campeonato Carioca no Maracanã, ele seria louco o suficiente para fazer isso em uma Copa do Mundo? Sim, seria. E foi. Com uma cavadinha, ele colocou o Uruguai na semifinal, pondo fim ao sonho africano e a esta partida histórica.

O Uruguai seria eliminado pela Holanda na semifinal e perderia para a Alemanha na disputa pelo terceiro lugar – ambos por 3 a 2 em outros dois grandes jogos -, mas provava, ali, que havia renascido. O auge seria atingido em 2011 com o título da Copa América, mas foi naquele 2 de julho que a Celeste deu o seu recado para o mundo e, por que não dizer?, o fantasma do Maracanazzo em 1950 voltou a assombrar os brasileiros. E, que ironia, contra um time africano, os uruguaios, acostumados a serem frios, tiveram atacantes fazendo defesas como goleiros, pênalti decisivo com cavadinha… Uma irresponsabilidade típica da África que encantou o Mundo em Copas como a de 1990 e a de 2002.

FICHA TÉCNICA
Uruguai 1 (4) x (2) 1 Gana
Gols
Uruguai: Forlán, aos 9min do 2º tempo
Gana: Muntari, aos 46min do 1º tempo
Árbitro
Olegário Benquerença (POR)
Local
Estádio Soccer City, Johannesburgo
 

Imagens: Terra

 

3 Replies to “Meu Jogo Inesquecível: “A Irresponsabilidade Africana e um Uruguai que renasceu””

  1. “Vinte anos depois da primeira grande aparição dos africanos em uma Copa, o Camarões de Roger Milla…”

    Um pouco mais: 28 anos. Em 1982, na Espanha, Camarões saiu invicta e só não tirou a Itália por causa de um gol. E a Argélia, mesmo caindo na primeira fase, venceu a Alemanha!!

    Mas é um belíssimo texto. Foi um jogaço!!!

    1. Argélia só foi eliminada porque Alemanha e Áustria combinaram resultado para classificar as duas

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