No artigo de hoje o historiador Luiz Antonio Simas retoma a a serie sobre os sambas de enredo e faz um passeio relacionando a literatura brasileira e sua presença na avenida de desfiles.

Literatura na Avenida

O escritor Coelho Neto era entusiasmado adepto dos ranchos carnavalescos que marcaram o carnaval carioca no início do século XX. Torcedor do Ameno Resedá, o literato defendeu em mais de um artigo o papel dos ranchos como instrumentos de divulgação, através de seus enredos, de episódios da história do Brasil, feitos de seus heróis e poesia de suas lendas. Os ranchos seriam instrumentos de certa pedagogia popular; capazes de educar no amor aos valores da pátria uma população sem acesso à educação formal.

Esse papel que Coelho Neto atribuía aos ranchos foi desempenhado pelas escolas de samba, agremiações moldadas nos anos 30, que se afirmaram como principais representantes do carnaval carioca a partir da década de 1940. Desde então, e por força de regulamentos que visavam disciplinar os desfiles, as escolas eram obrigadas a apresentar em seus cortejos temas com motivos nacionalistas.

Dentro dessa perspectiva, as escolas de samba começaram a adotar enredos que, em geral, versavam sobre episódios e heróis da história brasileira e a exuberante natureza do país. Outra vertente dessa perspectiva nacionalista se transformou em um prato cheio para as agremiações se apresentarem no carnaval: a literatura brasileira, incluindo aí escritores e suas obras.

Os exemplos são numerosos e mostram como o carnaval carioca – predominantemente popular e marcado pela perspectiva da oralidade – enxergou e transformou a manifestação por excelência da cultura escrita, a literatura, em matéria de samba.

Do indianismo de Gonçalves Dias (enredo da Mangueira em 1952, com belíssimo samba de Cícero e Pelado) , ao modernismo de Ascêncio Ferreira (Oropa, França e Bahia foi o tema da Imperatriz Leopoldinense em 1970) e Cassiano Ricardo (Martin Cererê, da mesma Imperatriz, deu um sambaço de Zé Catimba e Gibi, em 1972), é possível passear pela história das letras no Brasil ao som dos tamborins e surdos de marcação.

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É curioso saber, por exemplo, que viraram sambas obras como Invenção de Orfeu (o hermético poema de Jorge de Lima resultou no belo samba de Paulo Brasão, baluarte da Unidos de Vila Isabel, em 1976); Os Sertões (Edeor de Paula, da Em Cima da Hora, sintetizou em poucos versos o calhamaço de quinhentas páginas de Euclides da Cunha e fez um dos maiores sambas de enredo de todos os tempos); O Manuscrito Holandês (a peleja entre o caboclo Mitavaí e o monstro Macobeba, de M. Cavalcanti Proença, embalou a Unidos da Tijuca em 1981, acima); Memórias de um sargento de milícias (único samba vitorioso de Paulinho da Viola para a Portela, em 1966, que em dezenas de versos contava as peraltices de Leonardo Pataca nos tempos do Rei); e Macunaíma (obra-prima de David Correia e Norival Reis, com um refrão – Vou-me embora/vou-me embora/eu aqui volto mais não/vou morar no infinito/e virar constelação – que embalou as tardes de futebol do Maracanã, em 1975). A própria Academia Brasileira de Letras foi enredo da Vila Isabel, em 1983.

Quero, porém, me ater rapidamente a um caso exemplar, que mostra como o carnaval é uma excelente oportunidade para se falar de literatura de forma original e atraente, sobretudo para estudantes do ensino médio, que em geral se aproximam das obras literárias com uma espécie de horror absoluto. O samba de enredo pode ser, como acontece frequentemente com a história do Brasil, uma porta de entrada afetuosa para o estudo mais sistemático e aprofundado dos livros e autores.

Em 1989, o Império Serrano, que em seu primeiro carnaval, o de 1948, homenageou Castro Alves, apresentou o enredo ‘Jorge Amado, Axé Brasil’. O samba, de autoria de Beto Sem Braço, Aluísio Machado, Bicalho e Arlindo Cruz, descreve uma grande festa ocorrida na tenda dos milagres, em que os personagens do baiano se encontram para um furdunço dos bons. Não imagino uma aula sobre Jorge Amado que introduza melhor o aluno adolescente ao universo do autor que esse samba da agremiação da Serrinha.

Protegendo o portão da tenda, está o pai-de-santo Jubiabá (Jubiabá tá no portão/e as iaôs jogam pitangas pelo chão). Aos poucos começam a chegar, de todos os cantos da Bahia, os personagens de Amado, que logo se entrosam perfeitamente (Com os pastores da noite/Vem gente lá das terras do sem fim … Olha que papo maneiro/Entre os velhos marinheiros/E os novos capitães … Vem gente que sofreu demais/Lá do sertão e da beira do cais).

No auge da festa, Teresa Batista dança um samba de roda com Tieta e o cambaleante Quincas Berro D Água, enquanto Gabriela e Dona Flor dividem as panelas preparando o vatapá que vai alimentar aquela gente toda. O desfecho do samba é apoteótico. Jorge Amado é homenageado no refrão com a saudação que o povo do candomblé faz ao orixá Obtalá, considerado o pai maior pelos adeptos do culto :

“Echeuêpa Babá
Echeuêpa Babá
Axé Brasil
Pai Amado Saravá.”

Comovido com a homenagem, não é todo dia que alguém vira orixá, o mestre baiano compareceu ao desfile, apresentando-se em um carro alegórico cercado de amigos e mães de santo e escoltado por Zélia Gattai, que desfilou com os trajes típicos da boa terra.

Anos depois, o mesmo Império Serrano conseguiu levar Ariano Suassuna para a Marquês de Sapucaí – devidamente consagrado pelas arquibancadas da Praça da Apoteose como o legítimo Imperador da Pedra do Reino.

Mesma sorte não teve a Mangueira, que em 1987 homenageou Carlos Drummond de Andrade. A verde e rosa ganhou o carnaval, mas não conseguiu de forma alguma arrastar para a folia o poeta de Itabira – já adoentado e pouco afeito ao surdo sem resposta da Estação Primeira. A Vila Isabel, que em 1980 transformou o poema de Drummond Sonho de um Sonho em enredo, com belo samba de Martinho, já não havia conseguido tirar o mineiro da reclusão em Copacabana.

Há, evidentemente, casos pitorescos. Em 1982, um repórter que cobria os desfiles para uma rádio perguntou a um diretor da Unidos da Tijuca se o escritor homenageado desfilaria na escola em algum carro alegórico. O enredo da agremiação tijucana era Lima Barreto, falecido quando Ismael Silva era só um adolescente do Estácio.

Como nem tudo é perfeito, vez por outra alguma escola assassina a literatura, como foi o caso do desastroso desfile de 2009 da Mocidade Independente de Padre Miguel, que promoveu o encontro entre os legados de Machado de Assis e Guimarães Rosa na avenida. O desfile, um dos piores da escola da Zona Oeste, não honrou os dois gigantes das letras nacionais.

Mas é melhor ficar mesmo nos exemplos felizes. A literatura brasileira, enfim, deu muito samba dos bons. Vai abaixo a minha lista, absolutamente pessoal, dos cinco melhores:

– Gonçalves Dias (Mangueira, 1952) / Os Sertões (Em Cima da Hora, 1976) / Oropa, França e Bahia (Imperatriz, 1970) / O mundo encantado de Monteiro Lobato (Mangueira,1967) / Macunaíma (Portela, 1975)

One Reply to “Histórias Brasileiras: “Literatura na Avenida””

  1. Os momentos em que o Carnaval se une à Literatura, geralmente, são muito felizes para o quesito Enredo. Da mesma forma que o cinema, antes de se tornar autônomo no ato de contar histórias se apoiava na Literatura, as escolas de samba deveriam se apoiar nela, também. Não, apenas, para recontar histórias, mas para redescobrir modos narrativos mais interessantes do que os atuais modos de “lista” e “livro de História”. Ainda não compreendi o porquê de se fixar apenas nesses dois modos, pois mesmo os enredos patrocinados podem ser contados por outros modelos narrativos que tornariam o assunto mais rico e menos enfadonho.

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