Nesta quarta, o estudante Leonardo Dahi continua a análise dos sambas de enredo da Série A.

Os sambas de enredo da Série A – Parte II (Sábado)

Retomando a série sobre os sambas do grupo de Acesso do Rio de Janeiro, hoje as escolas de sábado, também na ordem de desfile.

Tradição

Enredo: “Sonhar com Rei dá Leão”

Compositor: Neguinho da Beija-Flor

Intérprete: Marquinho Silva (Part. Especial: Neguinho da Beija-Flor)

“Sonhar com Rei dá Leão” é o tipo de samba que me agrada. Divertido, melodia bem feita, letra muito clara, sem medo de contar o enredo. O refrão do meio é sensacional Nota 10.

Agora, é um completo absurdo o que a Tradição tem feito. Desde 2004, quando foram permitidas reedições, a escola só apresentou enredos inéditos cinco vezes – e quase sempre de outras escolas. Isso é inacreditável. É um desrespeito: 1) com os componentes da escola. 2) com a ala de compositores da escola. 3) com as coirmãs que se matam para permanecer no grupo com enredos inéditos. 4) com o público. Enfim a Lierj tomou providências e, a partir de 2015, novas regras entrarão em vigor para diminuir este artifício.

Agora, eu confesso que acho a Tradição candidatíssima a desfilar perto de sua casa, na Intendente, em 2015. É um ótimo samba, mas sem um grande apelo popular, um enredo que trata de um jogo hoje marginalizado e uma escola que ganhou a antipatia do público pelo excesso de reedições. Se cair, será um belo prêmio por cantar que “nesta festa de real valor, o palpite certo é Beija-Flor”.

Aliás, tudo bem que o Marquinho Silva não é o melhor intérprete do mundo, mas não precisava deixá-lo escondido atrás do Neguinho desse jeito (na foto, os dois com o presidente da Tradição)…

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 5,0. Nota: 10,0.

Alegria da Zona Sul

Enredo: “Sacopenapã”

Compositores: Edvander, Gabriel Fraga, Márcio André Filho, Adelson, Virgínia e Telmo Augusto

Intérprete: Edmilton di Bem

Na minha opinião, o melhor samba inédito do ano (áudio acima). Um dos poucos sambas que, da primeira vez que ouvi, assim que divulgado nas eliminatórias, me conquistou. Edmilton di Bem cantou com bastante qualidade, mas, na voz do Vaguinho, o samba era ainda melhor. Tem um refrão principal fortíssimo e uma melodia ousada, diferente. É um samba que não tem medo de ser diferente, mas, ao contrário da Renascer, tem um resultado muito positivo. Além do mais, ele respeita muito a sinopse, que primeiro conta a história do bairro de Copacabana e depois fala propriamente sobre ele.

Um outro destaque é o sensacional refrão do meio, que é longo, mas não é cansativo. Ainda há uma sacada interessante no verso “no teu centenário, nasce a Alegria”, já que a escola, situada no Cantagalo, nasceu em 1992, 100 anos depois de um dos mais famosos bairros do Brasil. Uma pena que, por ser muito longo e a direção do CD querer faixas com menos de cinco minutos, o samba ganhou apenas uma passada e meia no CD.

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 5,0. Nota: 10,0.

União do Parque Curicica

Enredo: “Na garrafa ou no barril, salve a cachaça! Patrimônio cultural do Brasil”

Compositores: Washington, Junior Bebezão, Thiago Silveira, Fael Cachinho, Vagner Silva, Bola, Pitimbu, Dudu, Zé Luís e Cláudio Russo

Intérprete: Ronaldo Yllê

A União do Parque Curicica vem falar da cachaça no Carnaval de 2014. E, com o perdão do trocadilho, o samba é um porre. Tem um refrão principal muito bacana, mas morre aí.

A primeira parte tem umas subidas de tom bem desagradáveis (ainda mais na voz do fraco Ronaldo Yllê). É um samba de letra muito bem construída, a exceção do sem sentido “quero beber Paraty / e misturar com limão”. A segunda parte, aliás, não é das piores, embora tenha sua melodia tenha ficado estranha nos primeiros versos.

Letra do Samba: 4,9. Melodia: 4,7. Nota: 9,6.

Caprichosos

Enredo: “Dos malandros e das madames. Lapa, a estrela da noite carioca”

Compositores: Jorginho Moreira, Frank, Rafael Gigante, Victor Rangel, Max Colonna e Edinho de Pilares

Intérprete: Thiago Brito

É impressionante como, ano após ano, a Caprichosos abandona suas raízes irreverentes e críticas. Isso talvez seja um caminho mais fácil para chegar ao Grupo Especial, mas será um mais fácil ainda para, quando chegar, cair de novo. A própria São Clemente só conseguiu se firmar no Especial quando resgatou suas origens (embora também esteja doida para abandoná-la).

Enfim, o samba deste ano é mais um daqueles que vão passar sem deixar saudades. Não que seja ruim: a letra é boa, mas é descartável. Acabou o desfile, joga fora. Tem alguns erros como o verso “é a tribo multicultral num só coração”, que arrebentou com a melodia da segunda parte. Além do mais, a segunda parte ficou bem maior que a primeira, o que deixou o samba meio arrastado. A escola errou ao alterar o refrão principal, que era o ponto alto da versão concorrente. O samba não casou na voz do Thiago Brito.

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 4,8. Nota: 9,8.

Viradouro

Enredo: “Sou a terra de Ismael, Guanabaran eu vou cruzar. Pra você tiro o chapéu, Rio eu vim te abraçar”

Compositores: Dudu Nobre, Diego Tavares,Zé Glória, Dilson Marimba, Paulo Oliveira e Junior Fragga

Intérprete: Zé Paulo Sierra (Part. Especial: Dudu Nobre)

Uma das maiores favoritas ao título da Série A, a Unidos do Viradouro tem um quesito a menos para se preocupar na tentativa de voltar ao Grupo das grandes escolas. Seu samba-enredo é um dos melhores inéditos do ano e vai ajudar muito a escola em seu desfile.

Ele é curto, relativamente simples, mas dá o seu recado. O refrão principal é forte com o “orgulho de ser Niterói / reluz no Rio, o meu tesouro”. O refrão do meio tem outra boa sacada e “pega” fácil: “tem a arte do samba no pé / nesse palco o artista quem é / pode apostar, sou eu”. Uma coisa que eu acho bacana nesse samba é que o primeiro verso da segunda parte é uma continuação do refrão. “sou eu, sou eu / que trago um sorriso no rosto…”. O trecho que fala da ponte Rio-Niterói também é excelente: “elo de amor, não se desfaz / ponte que une esperança e paz / me leva a grandes carnavais”.

Dudu Nobre foi muito bem cantando o alusivo, mas alguém tem que falar para o tal de Zé Paulo que cantar samba-enredo não é para ele…

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 5,0. Nota: 10,0.

Estácio de Sá

Enredo: “Um Rio à beira mar: ventos do passado em direção ao futuro”

Compositores: China do Estácio, Thiago Daniel, Jorge Lopa, Guto Smuk, Filipe Medrado, Renato Pinto, Eduardo Moreira e Ricardo Basile

Intérpretes: Leandro Santos e Dominguinhos do Estácio

O confuso enredo da Estácio de Sá sobre o Porto Maravilha ganhou um grande samba. Tem um refrão principal excelente, uma primeira parte muito legal (embora o verso “a cada história que essa brisa conta” me lembre outra coisa), com um conteúdo histórico de respeito. Gosto muito do trecho “entre becos e vielas, favela! Meu povo mais perto do céu / livre da chibata, orgulho da raça / afirmando seu papel”. O trecho que fala do bota-abaixo também é ótimo, embora a melodia seja quase idêntica a de um samba concorrente do Império da Tijuca – acho que o do Samir Trindade.

Uma coisa que eu não gosto desse samba é o verso falado e não cantado, “o vento a soprar”. Dominguinhos do Estácio já viveu dias melhores, enquanto Leandro Santos está cada vez melhor.

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 4,9. Nota: 9,9.

Santa Cruz

Enredo: “Do toque do criador à cidade saudável do Brasil. Jundiaí, uma referência nacional”

Compositores: Preguinho, Robinho do Cavaco, Léo do Tamborim, Rodolfo Frez e Douglas Ramos

Intérprete: Paulinho Mocidade

Ontem, quando eu falei sobre o samba da União de Jacarepaguá, eu disse que clichês nem sempre são ruins. Pois agora, para falar de Santa Cruz e seu enredo sobre a “referência nacional” Jundiaí, conhecida por 99% dos brasileiros por ser a terra do Paulista, campeão da Copa do Brasil de 2005 em cima do Fluminense, devo dizer que, em certos casos, são sim.

Vamos por partes: após 74 anos, Fernando de Lima perdeu na Santa Cruz. E perdeu quando tinha um grande samba. A escola do Presidente Zezo – e suas declarações homéricas como a de que “não recebeu nem uma bala Juquinha do Governo do Ceará”, estado homenageado em 2013 – escolheu um samba de melodia agradável, mas que pode ser aplicado a qualquer outro lugar do Estado de São Paulo.

Quem não acompanha o carnaval paulistano não sabe, mas o samba da Santa Cruz é praticamente idêntico ao de 95% dos enredos sobre cidades do interior paulista, muito comuns por aqui. Tem índios, bandeirantes, colonizador, café, exploração, imigrantes, belezas naturais, parque industrial, algum festival local (no caso a festa das frutas), uma comida/bebida típica (no caso o vinho) e algum verso bem clichê no refrão, como “pra bater mais forte o meu coração”. Nada se salva nessa letra, que ainda ganhou um trocadilho com “um dia” e “Yundiá”, primeiro nome de Jundiaí – ou marca de um sorvete conhecido na região. Paulinho Mocidade, para variar, deu show.

Letra do Samba: 4,5. Melodia: 5,0. Nota: 9,5.

Unidos de Padre Miguel

Enredo: “Decifra-me ou te devoro: enigmas – chaves da vida”

Compositores: Arlindo Neto, Pedrinho da Flor, Jefinho Rodrigues, Jorginho Medeiros, Lauro Silva e Fernando Piá

Intérprete: Marquinhos Art’Samba

Outro dos grandes sambas da safra 2014 da Série A. A Unidos de Padre Miguel, escola do antigo Grupo B de maior êxito em 2013 (caso se considere que o rebaixamento da Rocinha em 2012 não seria consolidado), vem com tudo para se aproximar ainda mais do acesso ao Grupo Especial que, se não acontecerá agora, pode acontecer em breve.

O excelente enredo sobre os enigmas ganhou um sambaço. O refrão principal é o melhor dos inéditos com as suas perguntas respondidas no verso final: “é a Unidos de Padre Miguel”. O refrão do meio também é brilhante, mas o samba cresce mesmo é na segunda parte. Destaque para os versos: “vem brincar, adivinhar / o personagem no jogo da vida / tá na mente, é só resolver / curtir o prazer de aprender / cigana… meu destino já leu no tarô / ifá… revelou o caminho que eu vou”. Senti falta de algumas bossas presentes na versão concorrente e na versão não-oficial divulgada logo depois da final, onde Marquinhos Art’Samba foi bem melhor que no CD.

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 5,0. Nota: 10,0.

Cubango

Enredo: “Continente Negro – uma epopeia africana”

Compositores: Sardinha, Diego Moura, Wagner Medeiros, Deigre Silva, Junior Fionda, Igor Leal e Lequinho

Intérprete: Marcelo Rodrigues

Para encerrar os desfiles da Série A em 2014, um samba a altura da safra. A Acadêmicos do Cubango vem com um enredo batido – falar da África – mas que ganhou um grande samba. Um pouco superestimado, é verdade. Mas é um grande samba.

Tem um refrão principal muito bom e uma primeira parte agradável, que até lembra um pouco a da União de Jacarepaguá. O ponto alto do samba é no refrão do meio com o “a demanda da Cubango é vencer”. A segunda parte é fantástica e os versos que falam de Nelson Mandeladevem ganhar ainda mais força com a morte deste grande líder sul-africano. O trecho final tem uma sacada muito inteligente sobre os inúmeros carnavais que falam da África: “sou a pele negra / portal de tantos carnavais / eternizando o legado dos meus ancestrais”.

Para mim, fica um pouco atrás de Alegria e Unidos de Padre Miguel, mais ousados em letra e melodia, mas, sem dúvida alguma, é um samba que vai segurar muita gente até o fim na Sapucaí.

Letra do Samba: 5,0. Melodia: 5,0. Nota: 10,0.

Considerações finais: safra de altíssimo nível, com mais da metade dos sambas em plenas condições de passarem muito bem pela Sapucaí. Em seu segundo ano no sistema de dois dias de desfile, o Grupo de Acesso, agora Série A vai se consolidando como a segunda força do carnaval brasileiro, ao lado do Grupo Especial de São Paulo e atrás, claro, do Grupo Especial do Rio. Pena que o alto número de escolas comprometa a qualidade do CD, com faixas limitadas a 4:50. Do melhor para o pior, eis minha avaliação dos sambas.

  1. Em Cima da Hora
  2. Tuiuti
  3. Tradição
  4. Alegria
  5. Padre Miguel
  6. Cubango
  7. Viradouro
  8. U. de Jacarepaguá
  9. Estácio de Sá
  10. Inocentes
  11. Império
  12. Renascer
  13. Caprichosos
  14. P. da Pedra
  15. Curicica
  16. Santa Cruz
  17. Rocinha

Na próxima coluna, os sambas enredo de São Paulo.