Neste sábado, mais um conto do compositor Aloísio Villar.

A volta

Próximo ao fim do ano, uma chuva torrencial caía sobre a cidade do Rio de Janeiro. As pessoas trancaram-se em casa sabendo que sempre com essa chuva vem o caos, mas nem todo mundo tem a sorte de ter uma casa.

Um casal não tinha essa sorte e, pior, a mulher estava grávida. O casal andava pelas ruas da cidade encharcada, com o marido tentando proteger a esposa daquele temporal.

Andaram por várias ruas da cidade pedindo ajuda nas casas, mas ninguém abriu as portas para receber o casal. Medo da violência, de ser um truque, ou mesmo falta de compaixão impediam a ajuda.

A mulher, desesperada, entrava em trabalho de parto e o marido pediu que se acalmasse. Foram para debaixo de uma marquise úmida e mofada e o homem, sem jeito e com o instinto de pai, pediu que a esposa relaxasse e começou o parto.

Parece que sob uma luz divina o homem conseguiu fazer o parto como se fosse um médico experiente e a mulher, mais calma, pariu um lindo menino.

Como por encanto, a chuva parou quando o menino nasceu e imediatamente a noite ficou estrelada com uma delas, mais forte, parecendo querer sinalizar a presença do menino. Um arco íris surgiu no céu enquanto as pessoas saíam de casa para acompanhar aquele estranho fenômeno de um arcoíris à noite.

O homem enrolou seu menino em um pano encontrado no local, fazendo deste um manto, e o entregou nos braços da mãe, que, molhada de suor e chuva, deu um beijo em sua testa dizendo “meu menino”.

Guiados pela estrela mais forte do céu, três mendigos chegaram embaixo da marquise e perguntaram se ali que acontecera um nascimento. O pai respondeu que sim e os três se apresentaram como Belchior, Baltasar e Gaspar e que viviam próximos dali. Contaram também que tinham presentes para a criança e ofereceram umas notas amassadas de real, um maço de cigarros e uma lata de leite em pó.

O homem agradeceu e Belchior perguntou seu nome. Ele respondeu que era José e sua esposa Maria. Baltasar comentou que era muita coincidência e só faltava o menino se chamar Jesus. José respondeu que sim, ele se chamava Jesus e Gaspar, ironizando, perguntou se era a volta do Messias.

Maria, cansada do parto e deitada em um papelão com o menino, respondeu que sim, seu filho era Jesus Cristo e voltava à Terra para novamente nos salvar. Os três mendigos começaram a rir e José pediu paciência à esposa, que passaria muito por isso.

José e Maria, católicos fervorosos, se conheceram no interior do Nordeste e combinaram se casar. Ainda noiva, Maria contou a José que um anjo aparecera e contara que ela viria a conceber do Espírito Santo. O homem de início não aceitou a gravidez e afastou-se da noiva, mas, tenente a Deus, José sonhou com o anjo e o mesmo lhe contou toda a situação, com ele aceitando.

Dessa forma se casaram.

Familiares e amigos achavam os dois loucos e aos poucos se afastaram do casal, depois, com a gravidez de Maria, passaram a hostilizá-los e José, pensando no menino, propôs à esposa que vendessem tudo e fossem para o Rio de Janeiro.

Chegando na rodoviária carioca foram assaltados e ficaram sem nada, acabando naquela situação relatada no parto.

Sem dinheiro e sem conhecer ninguém na cidade, tiveram de ficar pelas ruas. Vagavam de rua em rua, marquise em marquise, papelão em papelão e o menino ia crescendo nessa situação. José trabalhava catando latinhas para vender enquanto Maria tomava conta do filho.

Antes de fazer dois anos, Jesus e seus pais viviam com outros moradores de rua debaixo de um prédio desativado no centro da cidade quando uma das crianças roubou no trânsito a bolsa de um oficial do BOPE. A vingança veio de madrugada quando policiais fortemente armados e com toucas ninjas para não serem reconhecidos apareceram no local e metralharam todas as pessoas que encontravam pela frente, principalmente as crianças.

José e Maria esconderam-se com Jesus dentro de uma caçamba que recolhia lixo e a mulher desesperada pedia para o filho ficar em silêncio. De dentro da caçamba viram o tenente Herodes comandar a chacina e no final revistar e chutar cada corpo procurando pelo relógio até que encontrou e chamou os comparsas para irem embora e voltarem depois pra eliminar quem sobrou vivo.

José e Maria, sabendo que corriam riscos, foram embora e continuaram vagando pela cidade até que José conseguiu um emprego como carpinteiro. Com o tempo conseguiram dinheiro para alugar um barraco na favela Nova Jerusalém onde, finalmente, estabeleceram moradia.

Ali, Jesus cresceu e tornou-se adulto, um adulto especial, diga-se de passagem. Culto, sério, sem cair na tentação da promiscuidade ou do ilícito Jesus, se tornou uma referência a todos na comunidade sendo respeitado até pelos traficantes.

Com poderes de cura, Jesus atendia a todos em sua casa que sofriam de algum mal sem distinguir branco de preto, pobre de rico. Todos esperavam em fila, não importando se chegassem na favela de carro do ano ou se viessem debaixo de uma marquise como foi com ele no início da vida.

E curava todos os tipos de enfermidade, até mesmo as piores. Andou sobre as águas para salvar uma criança que era levada pela enchente numa terrível chuva que caiu sobre o Rio e dizem até que ressuscitou um morador da favela que morreu debaixo dos escombros de seu barraco que desabou nessa mesma chuva.

Os seus feitos e suas palavras que cada vez alcançavam mais adeptos começou a chamar atenção fora da favela. O governador pedia para que o secretário de segurança ficasse atento para ver se aquele homem não lhe traria problemas e a imprensa ávida quis saber informações daquele homem.

Foi convidado a participar de um programa do tipo “mundo cão” que passa de tarde na TV e mal deixaram o Messias falar. Toda hora Jesus era interrompido para falarem do ator da novela das oito que foi flagrado traindo a esposa em um show e por uma mulher com voz de taquara rachada que vendia câmera digital que custava um real por dia.

Um jornalista em especial assistia a tudo pela TV entediado esperando começar o jogo do seu time. O nome dele era Franco Barroso e trabalhava em um jornal chamado “Quinze minutos”, que o povo falava “carinhosamente” que se “espremesse saía sangue”.

Além de entediado, Franco estava enjoado, acabara de chegar do médico e sua empregada perguntou se estava tudo bem, Franco respondeu que sim e qualquer coisa lhe chamaria.

O homem se interessou por aquele personagem na televisão e ligou para o diretor do jornal perguntando se ele via aquela cena. O homem respondeu que não e Franco mandou que colocasse na emissora. Depois de um tempo, o diretor falou “ele é um farsante” e Franco sem tirar os olhos da TV pediu “me deixe entrevistá-lo, me deixe desmascará-lo”.

Franco subiu a favela e foi até a casa de Jesus. Viu o homem atendendo os doentes, orando sobre seus corpos para curá-los e a todo tempo falando frases que pregavam o amor e a paz aos homens de boa vontade. Franco ria e falava baixinho que aquilo era quase um livro de auto ajuda quando Jesus lhe chamou e disse “é sua vez”.

Franco sentou à sua frente e respondeu que foi ali entrevistá-lo, não se consultar, e Jesus perguntou há quanto tempo ele tinha câncer.

O repórter se assustou, pois, pouquíssimas pessoas sabiam de sua doença e perguntou quem havia lhe contado. Jesus colocou sua mão sobre o estômago de Franco, o local que estava doente e rezou um “Pai Nosso”.

Franco, assustado, assistia à cena de Jesus concentrado, encostado em seu estômago, e, depois de um tempo, o santo homem virou para Franco e contou que ele estava curado.

O homem imediatamente foi embora e furioso por achar que Jesus brincou com sua doença. Foi à redação do jornal e escreveu uma matéria arrasando o Cristo e no dia seguinte o jornal bateu recordes de venda.

De tarde, Franco foi ao médico fazer exames de rotina e em alguns dias voltou ao local para pegá-los. Encontrou o médico espantado e Franco assustado perguntou qual era o problema.

O médico pediu que ele se sentasse e, sentando lentamente, como se recebera um baque, o médico contou que Franco estava curado. O repórter boquiaberto pediu que o médico repetisse e o doutor contou que não existia nenhum resquício de câncer em seu organismo, era um milagre.

Franco, zonzo, lembrou de Jesus e subiu a favela atrás do Messias. Entrou na casa que ele atendia e emocionado andou devagar até o homem e ajoelhou-se a sua frente. Jesus pediu que ele levantasse, limpou as lágrimas de Franco com as mãos e com sorriso largo falou “sabia que você voltaria”.

Franco quis escrever nova matéria no jornal sobre Jesus, mas a direção não deixou. Escreveu então em seu blog mostrando com mais seriedade o trabalho do homem, revelando que fora curado de um câncer por ele e admitindo no fim que ele era Jesus Cristo.

A reportagem caiu como uma bomba no país, o blog teve recorde de acessos e a mídia do Brasil inteiro foi atrás de Jesus querendo saber mais quem era esse homem.

Jesus aproveitou para passar suas palavras, o que incomodou muito o governo. O homem pregou contra os governantes e a forma que esses tratavam o povo e, como era época de eleição, o governador ficou prestes a “ter um filho” gritando que aquele homem tinha que calar a boca.

Ao mesmo tempo Jesus desafiava os traficantes expulsando os mesmos de sua casa quando percebeu que alguns deles tentavam vender drogas na fila do atendimento. Os dois lados “queriam” sua cabeça e se uniram para eliminar o inimigo.

Através de um de seus doze auxiliares nos atendimentos, descobriram todos os hábitos de Jesus e não foi difícil que em uma noite traficantes lhe pegassem sozinho entrando em casa e dizendo que precisavam ter uma conversa.

Deram uma surra no homem e fizeram com que ele carregasse um tonel até o alto da favela. Jesus todo machucado carregava o tonel nas costas enquanto os moradores da favela pediam piedade a Pilatos, o dono do tráfico. Maria, com um pano, limpou o rosto do filho e implorou por sua vida, com Pilatos mandando que tirassem a mulher do caminho.

Chegaram com Jesus no alto da favela e mandaram que ele colocasse o tonel no chão. No local tinha um ouro bandido. Um estuprador de crianças e Pilatos mandou que seus comparsas escolhessem um pra matar e outro pra soltar. Eles escolheram soltar o estuprador e Pilatos virou para Jesus dizendo “lavo minhas mãos, ta ligado?”.

Gritou “rala peito” pro estuprador, que desceu correndo e colocaram Jesus dentro do tonel. Encharcaram seu corpo com gasolina e Pilatos acendeu o fósforo para jogar. Jesus gritou “Pai, por que me abandonaste?” e Pilatos jogou o fósforo ateando fogo no Cristo.

Passado um tempo apagaram o fogo e jogaram o corpo de Jesus em um matagal usado para desova dando o serviço como feito.

Mas não foi bem assim. A mídia deu grande importância ao fato e os dois dias seguintes foram de terror na cidade. As revistas e jornais escancararam as ligações do governador com o crime e com outros crimes e ele não aguentou a pressão, se enforcando em seu gabinete. O povo revoltado enfrentou os traficantes e seus fuzis linchando os bandidos e matando Pilatos a pancadas.

A polícia tentou intervir tentando acabar com a fúria do povo e, debaixo de uma chuva torrencial, como no nascimento de Jesus, entraram em confronto, enquanto algumas pessoas tentavam achar seu corpo no matagal.

Tiros de borracha de um lado, paus e pedras no outro, enquanto os amigos de Jesus gritavam que seu corpo sumira. Era o caos misturado à chuva e à lama.

Até que de repente a chuva parou e a noite e suas estrelas apareceram.

Uma grande luz surgiu e todos abismados viram Jesus subindo ao céu naquele facho de luz. Ele subia com uma túnica branca no céu estrelado do Rio de Janeiro e com sorriso no rosto, enquanto a população olhava sem pronunciar uma palavra.

De repente, ele abriu os braços como se fosse o Cristo Redentor e desapareceu. Todos continuaram olhando até que um a um foram pra casa sem falar nada, apenas o silêncio acompanhava aquela noite.

Franco voltou para a casa, ligou o computador e ficou olhando para ele, pensando em tudo aquilo que presenciara e no que poderia escrever sobre aquela noite fantástica para o blog. Ficou um bom tempo olhando para a tela até que escreveu uma frase, desligou o computador e foi dormir.

A frase era..

…livrai-nos sempre do mal, amém.