Temos uma nova série no Ouro de Blog a partir de hoje. A “Escola do Meu Coração”. Ela vai englobar a paixão de autores convidados ou colunistas do blog pelas 12 escolas do Grupo Especial, além de Império Serrano e Viradouro. Serão um ou dois textos semanais, até o carnaval.

Abrimos a série com a atual campeã do carnaval, a Unidos de Vila Isabel. O autor convidado é o professor Cláudio Francioni, que já fez de tudo um pouco na escola de Noel. Vila, aliás, onde desfilei em 2004, ano em que a escola venceu o Grupo de Acesso e voltou ao Especial.

“Sou da Vila, Não Tem Jeito”

Vila dos boêmios e poetas / dos pagodes e serestas e do Boulevard
Vila das calçadas musicais / Onde dormem imortais lindas canções
Vila dos sabores variados / Dos amores e pecados e das ilusões
Vila, quero vê-la linda / Quero vê-la ainda muito mais feliz / Só porquê
O sol pintado de ouro / Contendo o tesouro que queimou vosso chão
Descera pra morar lá no poente / E o luar que esteve ausente
Já fez menção de uma Vila tão bonita
Verdes arvoredos prateados / Em suas vendas, em suas vidas
Em suas lidas / A cantarolar no seu pomar”

Sempre tive o sonho de escrever algumas linhas que pudessem dimensionar o amor que guardo por minha terra e por minha escola. Queria ter escrito algo como “Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida” para a Vila.

Confesso que ainda quero. Às vezes tenho algumas ideias, porém sinto-me dissuadido quando recordo alguns versos, ou até letras inteiras, que parecem ser declarações definitivas, de tão profundas e bem escritas. Gente como Paulo Brazão, Seu Rodolpho, Martinho e Jorge Tropical, entre outros, chegaram antes de mim. Resta-me uma mistura de orgulho, por cantar tais canções como se minhas fossem, com uma inveja branca do tipo “eu podia ter escrito isso”.

“Santo Antônio Padroeiro / Somente agora alguém lembrou
Que do alto da colina / É você que ilumina o meu amor
Isabel é o nome dela / Minha doce Cinderela / Que ganhou meu coração
Hoje sou o seu guerreiro / Minha arma é um pandeiro / Minha reza é uma canção/
Sabiá cantou / Nos oitis do Boulevard
Desce do morro, menino / Menino, vem vadiar”

Foi nesse Boulevard que nasci. No coração de Vila Isabel, onde hoje se estende ao céu um enorme edifício, havia a Casa de Saúde Nossa Senhora de Lourdes. Não sei bem o porquê, mas tudo aqui remete a esta santa: igreja, colégio, o extinto hospital e até farmácia. Em Vila absorvi tudo de bom e de ruim que a vida oferece. Fiz minhas maiores amizades, vivi grandes alegrias e aproveitei cada presente que o bairro me deu. Aqui passei a maior parte de meus 44 anos, sequência quebrada apenas pelos sete anos de exílio forçado pela transferência de meu padrasto militar.

E foi durante este exílio, no interior do Paraná, que fui apresentado às escolas de samba, através do LP de 1980, presente dado por minha avó. Do alto de meus dez anos, decorei todas as obras e cantava com autoridade pela casa. O disco furou. Não tive chances de sequer cogitar para qual escola eu torceria. Apesar da mãe salgueirense, a soma de um possível banzo mirim com a obra prima “Sonho De Um Sonho” era arrebatadora. Dali em diante, o disco virou meu presente obrigatório de Natal.

“Sonhei que eu era um rei que reinava como um ser comum
Era um por milhares / Milhares por um”

O desfile era, para mim, uma coisa distante. Ninguém da minha família era envolvido com carnaval, exceto dois primos de minha mãe que pagavam suas fantasias e desfilavam cada ano em uma escola diferente, sem nenhum envolvimento maior. Meu primeiro contato real com a minha paixão até então platônica se deu pouco mais de um ano após ter voltado a morar no Rio.

Era uma tarde de domingo e me dirigi ao extinto campo do América, como fazia tantas vezes para ver os jogos do querido Mequinha. Mas dessa vez não havia futebol. Era ensaio técnico da Vila Isabel. Sentei no alto da arquibancada e pus-me a contemplar cerca de 200 pessoas rodando em volta do campo e cantando o belíssimo samba:

“Oh minha Vila / Contigo de braço rodei
Dançando no azul do horizonte
Eu e ela, parece até que foi ontem”

Parece mesmo. A partir dali, a Vila começava a ser minha também. Não. Não desfilei em 1985. Na verdade, só debutaria pela minha escola em 1991. Minha estreia na avenida foi em 1986 com a então campeã Mocidade, carregado pelos já citados primos de minha mãe. Mas a partir daquele dia, a Vila Isabel passou a ser real em minha vida.

Já frequentava alguns ensaios quando, em meados de 1990, convencido por um amigo enfim resolvi encarar as longas madrugadas em busca de meu lugar. Não era simples. A Vila Isabel e a Mangueira eram as últimas escolas a aceitar com naturalidade gente do “asfalto” em suas baterias. Seus contingentes eram quase integralmente oriundos de suas comunidades e éramos vistos como gringos no samba. E éramos.

Ali era o espaço deles. “Quem é esse branco que quer tomar nosso espaço?”. Levou um certo tempo para que percebessem que eu podia tocar como eles e que não estava ali para tirar o espaço de ninguém. Queria apenas ser um deles.

A ala de tamborins era formada por senhores de idade e precisava urgentemente de uma renovação.  Assim como eu, outros amigos “playboys” resolveram encarar o desafio com o tamborim nas mãos, entre eles Duda e André. O primeiro moleque devaneava em sua paixão pela escola: “um dia eu ainda ganho na loteria, compro o terreno da CTC e construo uma quadra pra Vila”. Lindo, não? Um visionário!

Para os mais novos, o tal terreno é exatamente o local da atual quadra da escola. O segundo, um menino, irmão de um ex-colega de turma, transformou-se no maior compositor de samba-enredo de sua geração. Conseguimos nossas vagas.

“Sambar na Avenida de azul e branco é o nosso papel / Mostrando pro povo que o berço do samba é em Vila Isabel”

Hoje em dia é fácil ser Vila Isabel. Mas nem sempre foi assim, amigos leitores. Tirando a glória de fazer o trajeto Maracanãzinho/Petisco da Vila no teto de um carro de som aos berros em 88, minhas lembranças são muito duras. Tudo conspirava contra.

Não tínhamos quadra, não tínhamos dinheiro, não tínhamos torcida. Na frente das outras escolas, nossos ensaios pareciam uma pequena reunião de amigos aficionados. Não havia azaração, não havia farra. Toda a minha geração frequentava o Salgueiro ou a Estácio. Eram os ensaios da moda, mas resistíamos bravamente aos convites da galera. Tinha todos os motivos para não torcer para a Vila. Mesmo assim, me recordo perfeitamente da ansiedade que eu vivia às quintas-feiras, dia do ensaio de rua, quando eu podia, na frente de todo o bairro, dar vazão ao orgulho que sentia em fazer parte daquilo, de defender a escola que representava a minha terra.

Nas visitas prévias ao barracão, tínhamos a certeza de que o que era pra acender não acenderia, o que era pra acoplar não acoplaria, o que era pra ser uma cascata não jorraria uma gota sequer. Não dava outra. Nas tardes que antecediam os desfiles, passeávamos pela Presidente Vargas com um nó na garganta ao comparar nossas alegorias com as de Mocidade, Beija-Flor ou Imperatriz.

Pegar nossas fantasias era missão semi-hercúlea. Normalmente a entrega era feita no Morro dos Macacos sob um clima pra lá de tenso e não raramente roupas sumiam. Se fosse a sua, um abraço! No meu segundo ano, mantivemo-nos no Grupo Especial com as notas da bateria, no desempate contra a Leão de Nova Iguaçu. Até pouco tempo atrás, guardava uma carta de agradecimento que os ritmistas receberam da direção da escola.

Os anos passavam e os locais de ensaio mudavam a cada dois ou três anos: Clube Maxwel, Escola Equador, Vilinha. E o que parecia já estar traçado, aconteceu. O rebaixamento de 2000 doeu, mas serviu para que eu entendesse que o meu amor pela Vila era muito maior do que qualquer resultado ou julgamento. Ali eu percebi que quanto menor ela fosse, mais forte eu a amaria.

O que já era ruim, conseguiu ficar pior. O terreno nos foi cedido, mas não havia dinheiro para construir nada. Ensaios vazios, na chuva, com mais cachorros do que gente na quadra. Mesmo assim poderíamos ter voltado de primeira, não fosse um erro na escolha do samba-enredo, o que nos tirou dois pontos na apuração. Seria injusto e provavelmente cairíamos de novo no ano seguinte.??????????? Fui aprendendo aos poucos que ser Vila e que desfilar por ela me bastava. Nem precisava mais subir. Minha emoção na Avenida não era menor por estarmos no segundo grupo e não seria jamais, nem se caíssemos para o último. Ser campeão, então, era utopia. Jamais pensei nisso. Mas subimos com um desfile épico. “Paraty” não aconteceu plasticamente, mas mostrou uma escola linda em sua essência, de pé no chão e samba no gogó. Ali a escola começava a se reestruturar.

“Arriba, Vila / Forte e unida
Feito o sonho do Libertador”

Dois anos depois, o impensável acontece. Pouco tempo depois de se livrar do Grupo de Acesso, o título cai no nosso colo. Me recordo perfeitamente a sensação de cair no chão da sala aos prantos depois da última nota. Eu era pequeno pra tanta emoção. O telefone não parava. Parecia que eu era o presidente da escola. Sem saber o que fazer, como aquele zagueiro que mal sabe comemorar um gol, corri para a quadra e fiquei inerte durante uns 30 minutos encostado nos fundos do palco, chorando copiosamente e não acreditando no que estava vendo.

Me lembro que eu repetia diversas vezes em voz baixa para mim mesmo “eu não acredito, eu não acredito”. Contemplei no rosto de cada amigo que entrava um misto de felicidade com incredulidade. Eram milhares de cópias de mim mesmo. Nos longos abraços que eu recebia, sentia que a frase não dita era a mesma que eu queria dizer: parabéns! Só nós sabemos o quanto merecemos isso tudo.

A Vila cresceu. Ganhou uma administração eficiente e hoje é uma das principais escolas do Rio. Agora sabemos que o que é para acender, vai acender. Outros grandes desfiles vieram. Fomos campeões de novo. Para quem tem uma história pautada pelo sofrimento, as pequenas coisas se tornam gigantescas: a capa no CD do ano seguinte, o teste de som e luz na Avenida, a faixa número um do disco. Tudo isso me surpreende e me emociona.

Mas juro que não precisava. Só quero que a Vila exista e ponto. E existindo, que me deixe desfilar por ela. Na bateria, na comissão de frente, na harmonia ou em ala, mais de metade da minha vida eu passei dentro dessa escola. E é nela que eu pretendo viver até o fim dos meus dias. O sangue azul tá na veia com certeza. O samba é a minha natureza, é bom lembrar: tem que respeitar!

“Enquanto existiir a Vila Isabel, eu lá estarei
E se um dia eu não estiver
É porque quem não existe mais sou eu”

(estes humildes versos, finalmente, são meus)

Esse texto é dedicado aos amigos Eduardo Thiago , André e Roberto Diniz, Mestre Mug, João Paulo Alves, Guilherme Salgueiro,  Carlos Henrique Cabral, Erick Cardoso, Ricardo e José Sobral, Jorge Grande, Luiz Henrique,  Carlos Fernando Cunha, Ricardinho Pereira, Fabiano e Iramar Sant’anna, Mart’nália, Tunico Ferreira, Anderson “Macaco Branco”, Walan, Mangueirinha, Rafael Tarol, Evandro Bocão, Antonio Castro Neves, Alcy Plaisant, Raphael Bremenkamp, Wagner Blanco, Eduardo Hang, Fabio Aguiar, Walace Cestari e tantos outros que durante estes anos dividiram comigo toda a dor e a delícia de ser Vila Isabel.

Agradecimento mais do que especial a Ricardo Toscano, que 23 anos atrás não mediu esforços em me levar para a escola e a Seu China, por ter criado um dos maiores amores de minha vida.

12 Replies to “Escola do Meu Coração: “Sou da Vila, Não Tem Jeito””

  1. Ah os cachorros na quadra! Que quadra? Aquele espaço destelhado, com uma pequena arquibancada de compensado.
    Muitas dessas coisas me dão saudade, pois era um tempo em que eu via de fato pessoas de sangue azul dando seu máximo pela escola, pelo simples fato de serem escola. A escola somos nós, é o empurrador, é a moça que lava o banheiro, é o ritmista que toca da abertura ao encerramento. Quantos de nós nos afastamos por não concordar com coisas que vimos e vivenciamos?!
    Cicatrizes são só a prova do quanto vivemos e nos dedicamos. Infelizmente chega um momento em que temos de nos afastar para esse amor não se transformar em algo maléfico. A distância não irá nos fazer menos Vila Isabel, mas irá mostrar que somos tão importantes quanto a própria escola.

  2. Cláudio, parabéns pelo texto e obrigado pela lembrança.
    Lembro-me perfeitamente, no ano do improvável título, quando encontrei com você em cima do palco, chorando e sem acreditar no que via.
    Foi sensacional!

  3. Gostaria de ter o dom de colocar no papel todo o meu amor pela nossa “Vila”. Parabéns pela belíssima declaração de amor pela nossa Vila. Teu amor pela Escola só não é maior que o meu…rsrsr..afinal desfilo a mais tempo, desde 1970. Pena que hoje em dia algumas pessoas não tem respeito pelas memórias vivas da Escola ( nós componentes)mas…são coisas da vida….esqueçamos isso e celebremos o nosso amor pela Vila. Orgulho em ter vc como amigo e em suas lembranças.

  4. Parabéns garoto! Fiquei arrepiado! Emocionante declaração!
    Você é um dos meus maiores grandes amigos de todos os tempos!

  5. Me emocionei com suas palavras. Apesar da minha relação direta com a escola ser recente, pois só desfilo tem 2 anos (um terceiro lugar e um titulo), fui apresentado a Vila ainda muito pequeno através dos sambas de Martinho da Vila. Não se isso teve influência, mas me apaixonei por essa escola, por essa terra e essa gente. E quando estou nos ensaios e na avenida dou todo o meu suor pelo sucesso da escola. Não tenho a menor vontade de desfilar por nenhuma outra escola no grupo especial…… eu brinco o carnaval mas levo a sério o meu papel! Obrigado por você ter me proporcionado todas essas emoções indescritíveis já aos 41 anos de idade. Um grande abraço! Em 2014 estaremos aí dando o máximo pelo Bi!

  6. Texto histórico! Parabéns!
    Lembro das quintas feiras de janeiro, quando tinha meus 8 anos e aguardava ansioso a chegada da minha mãe do trabalho para que me levasse ao ensaio. Meus olhos brilhavam com aquilo tudo e o desejo de fazer parte parecia impossível de conter.Inesquecível!

  7. Fantástico, emocionante! Faz a gente dar mais valor ainda à nossa escola de Samba e ao nosso bairro!

  8. Olha Claudio estou aqui chorando de alegria, por ter lido este texto tão bonito e sincero, pena que não faço parte deste amigos. Claudio, por isso , costumo dizer, que Vila Isabel é uma família. Claudio, concordo com você quando falar, o titulo é uma consequência, o importante e o grande família Vila Isabelense. Claudio o nosso amigo André Diniz, colocou na samba deste ano um refrão “O coração vem na marcação, e o sangue azul tá na veia com certeza, o samba é a minha natureza, é bom lembrar, tem que respeita! Claudio um beijo no seu coração que tem sangue azul na veia com certeza. lenilson da velha guarda da Vila Isabel com muito prazer.

  9. Claudio Toscano, valeu companheiro. Você não pode ficar fora do carnaval. Toca muito, também com um professor desse, até eu. kkkkkkkkkkkkkk

Comments are closed.