A coluna do advogado Gustavo Cardoso retoma o tema dos embargos infringentes no processo do Mensalão, além de analisar questões adjacentes.

Estranhas Controvérsias

Muita gente pensa que os primeiros cristãos viviam em uma comunidade idílica, na qual imperavam a concórdia e o amor ao próximo. Na verdade, os primórdios do cristianismo foram uma era de lutas fratricidas, mas o que surpreende, da perspectiva de hoje, é que as disputas costumavam travar-se em torno de abstrusos conceitos teológicos.

Houve brigas históricas, por exemplo, entre os que entendiam que a Virgem Maria seria a “Mãe de Deus” ou apenas mãe da “parte humana de Jesus”. Entre os que achavam que o Pai e o Filho seriam “pessoas distintas da mesma substância” ou que não seriam distintos, mas apenas dois aspectos do mesmo ser. Entre os que imaginavam que o Cristo teria apenas uma natureza, ou duas, ou que só teria adquirido a natureza divina após o batismo, ou que Sua natureza humana seria preexistente à Encarnação…

A controvérsia mais famosa foi a dos arianos, que acreditavam que o Deus Pai criou o Filho, diferente do primeiro em substância, e que ambos, juntos, criaram o Espírito Santo. Mas o que prevaleceu foi a doutrina da consubstanciação, que diz que o Filho é “gerado”, mas não “criado” pelo Pai (ou seja, não é uma “criatura”), ao passo que o Espírito Santo não é criado nem gerado, mas “procede” do Pai, sendo os três simultâneos e indivisos.

No século IV foi decretada a pena de morte para quem professasse ou mesmo guardasse livros que ensinassem o arianismo. O incrível é que a cizânia não se limitava aos teólogos. Como grande parte dos bárbaros recém-convertidos era ariana, o Império Romano esteve à beira de uma guerra entre as duas facções.

No século XVIII, Jonathan Swift satirizou as quizilas políticas e religiosas de seu tempo no romance “As Viagens de Gulliver”: Na terra de Lilliput, o partido dos que usavam sapatos de salto alto travava guerras ferozes contra o partido dos saltos baixos. Outro motivo de comoção era o lado da casca do ovo que se devia quebrar para comê-lo. Entre os liliputeanos, onze mil “ladograndenses” preferiram a morte, e outros tantos o exílio, a quebrar ovos pelo lado menor.

Quem acha que só na ficção e em tempos passados este tipo de controvérsia insólita era capaz de despertar paixões não deve ter reparado que o Brasil passou as duas últimas semanas em pé de guerra, debatendo a seguinte matéria relacionada ao processo do “Mensalão”: Cabe recurso de embargos infringentes contra decisão do plenário do STF em ação penal originária?

O regimento interno do tribunal diz que sim, mas uma parte dos ministros interpretou que o dispositivo teria sido revogado tacitamente pela Lei 8.038/90, que dispõe sobre normas procedimentais dos processos nos Tribunais Superiores. Caberia à maioria do plenário dar a palavra final, como acontece em qualquer outra questão técnica, mas o público saiu das arquibancadas e entrou em campo, decidido a empurrar a bola para o gol.

Foram editoriais, capas de revista, debates na televisão, discursos no Congresso, posts replicados aos milhares nas redes sociais, manifestações públicas em frente ao STF e até artifícios praticados pelos próprios ministros para estender o julgamento e alterar seu desfecho.

Atrizes de novela chegaram a posar para uma foto na qual expressavam seu “luto pelo Brasil” (http://diversao.terra.com.br/gente/atrizes-de-amor-a-vida-protestam-contra-decisao-do-stf-em-luto,6971759546831410VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html). A fotografia teve a virtude de evidenciar a diferença técnica de uma artista do porte de Nathalia Timberg para outras como Carol Castro e Barbara Paz, assim como os votos no Supremo expuseram a distância que separa um Celso de Mello de seus colegas Rosa Weber e Dias Toffoli. Mas ficou nisso. A expressão perturbadora de Nathalia não chegou a ser um argumento pela inadmissibilidade do recurso.

Leigos anônimos e na mídia não se acanharam de desqualificar sumariamente os votos que não lhes agradaram, menos ainda de atribuí-los a perversões morais dos ministros. Esta “futebolização” da atividade judiciária é recente, não menos que o próprio julgamento do “Mensalão”, que é decididamente político, no sentido de que representará vitória ou derrota política para partidos que disputam o poder. Outros julgamentos que também tiveram implicações do gênero, como o de Collor de Mello, nem de longe atraíram tanta atenção.

Há alguns meses um amigo me pediu esclarecimentos triviais sobre a sentença de um processo bem simples do qual ele era parte: “O que significa? Cabe recurso?” Curioso que o mesmo amigo havia publicado uns dias antes numa rede social considerações eruditas sobre a “Teoria do Domínio do Fato”, uma tese importada do direito penal alemão sobre a qual poucos jurisconsultos se atrevem a opinar. Se sabia discorrer sobre uma tal teoria, como podia ser incapaz de entender a sentença de um processo banal?

Não sou contrário à popularização do debate dos temas jurídicos, acho mesmo que o povo e a imprensa se importam pouco com o que acontece no Judiciário e no Ministério Público, e com o conteúdo das leis, para além dos jogos de poder no Congresso. Mas é necessário um pouco de bom senso. Em direito processual, assim como em outras matérias que demandem certo conhecimento técnico, é improvável que um leigo alcance, por seus próprios estudos, a certeza absoluta. Nada contra formar-se opinião, mas a dúvida é uma atitude prudente nesses assuntos.

Sabemos, de qualquer forma, que neste episódio a opinião dos leigos não se formou independentemente de sua orientação política. Se o julgamento em curso fosse de membros de outro partido, é provável que os mesmos opiniáticos invertessem suas “convicções”. Convém recordá-los que o ordenamento jurídico vale para todos os brasileiros. Após José Dirceu, a próxima pessoa a fazer uso de um recurso pode ser você – ou o seu adversário em um processo. Tanto melhor se deixarmos apenas a lei, e não as paixões, decidir as regras procedimentais.

Em tempo, eu entendo que os embargos infringentes na AP 470 são perfeitamente cabíveis, e me reporto aos votos dos Ministros Mello, Barroso e Zavascki. A Lei 8.038/90 não regulou todo o procedimento da ação penal originária, tanto é que no art. 12 dispõe que, após a instrução, o Tribunal passará ao julgamento “na forma determinada pelo regimento interno”. Ou seja, as normas regimentais complementares foram expressamente recepcionadas pela própria lei.

Mas é só minha opinião. Não estou dizendo com isso que os ministros que votaram de outra forma são corruptos nem idiotas. Devagar com o andor, que o santo é barro…

2 Replies to “Pitaco: “Estranhas Controvérsias””

  1. Gustavo, muito bem explicado. É o que eu mais sinto falta ultimamente neste tipo de discussão: equilíbrio, discernimento, racionalidade, fora ódio Amélia

  2. O ódio que estamos sentindo não é pelas pessoas, é pela impunidade. O voto do ministro Celso de Mello, ao acompanhar o voto daqueles ministros que foram nomeados para o fim específico de equipar o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de frustar o maior julgamento político da história deste país, não trouxe nenhuma contribuição ao estado de direito. Só nos trouxe a sensação de impunidade, que sempre tivemos, e que nos deixa com a impressão de que ainda vai demorar algum tempo para deixarmos de prender só ladrões de galinha. Nos entristesse saber que alguns poucos irão para a cadeia, mas os políticos que montaram e chefiaram o esquema para se beneficiarem, nenhum deles pagará pelo que fez.

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