Neste domingo a coluna do compositor Aloisio Villar aborda o sumiço do ajudante de pedreiro Amarildo pelas forças policiais.

Amarildo

Eu evitei falar desse assunto por essas semanas, assunto tão importante e que tomou conta dos noticiários. Sinceramente não sei porquê não falei nele antes aqui, no meu blog ou mesmo em redes sociais; alguma coisa travou.

Mas não posso deixar passar. Uma pessoa que escreve para um público (não importa o tamanho do público, quem faz isso tem responsabilidades) não pode passar em branco por algo tão sério assim e como todas as pessoas me junto ao coro e pergunto.

Cadê o Amarildo?

Acredito que todos já tenham conhecimento do caso, mas assim mesmo eu explico. Amarildo é (ou provavelmente era) um cara como outro qualquer. Pessoa comum, desconhecida como você e eu. Amarildo Dias de Souza, 47 anos, ajudante de pedreiro, tinha acabado de voltar de uma pescaria quando quatro policiais militares o pegaram na frente de casa e levaram até a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha.

Conhecido como “boi” devido a sua força o pedreiro garantia o sustento de seis filhos. Bete, sua esposa, tinha parado de fazer faxinas e lavar roupas para fora e assim ficar com as crianças. Amarildo fazia bicos pela comunidade e por último estava trabalhando em Copacabana. Saía cedo e voltava apenas à noite. Comprava aos poucos material de construção para reformar a própria casa. Sem o provedor a obra ficou inacabada e a família foi morar na casa de uma irmã de Amarildo.

Desde que o pai da família, Amarildo Dias de Souza, 47 anos, ajudante de pedreiro sumiu nas mãos das forças policiais. Aquelas que são pagas por nós através de nossos impostos para nos proteger.

E que sumiu após ser confundido com um traficante.

Amarildo não foi o primeiro, nem será o último a sumir depois de passar pelo azar de ter contato com a polícia sendo considerado suspeito. Suspeito para a Polícia Militar do Rio de Janeiro sempre é culpado: ainda mais se for pobre, pior ainda se for negro.

Virou símbolo de uma luta. Motivo de protestos pela cidade unindo todas as classes sociais que não aguentam mais desmandos, corrupção, truculência e falta de segurança. Não saber em quem pode confiar, não saber quem é o mocinho e o bandido, se é que existe mocinho. Amarildo sumiu. Provavelmente foi executado e enterrado como indigente. Muitos são os “Amarildos” dessa cidade. De acordo com a Ong Rio de Paz 35 mil desapareceram desde 2007.

Como eu disse acima Amarildo foi confundido com um traficante. O traficante se chama Guinho e o trabalhador não tinha antecedentes criminais. O comandante da UPP da Rocinha alega que soltaram Amarildo assim que descobriram o erro, mas ele nunca voltou pra casa.

Eu já disse algumas vezes que sou a favor das UPPs. Tenho conhecidos que moram em comunidades com as unidades que dizem que a situação melhorou muito depois das instalações, quem mora na redondeza de alguma dessas comunidades diz o mesmo, mas têm falhas.

Falhas como não prender ninguém, avisar com antecedência e assim deixar que os bandidos fujam. Alegam que dessa forma evitam banho de sangue e morte de inocentes. Falhas como não acabar com o tráfico de drogas no local: a venda continua. Alegam que a maior missão da UPP não é acabar com o tráfico; isso seria impossível, a missão é a retomada de território.

Por fim para mim a maior das falhas, o que tem de mais grave. A corrupção que já está inserida na alma da Polícia Militar. A corrupção, a falta de preparo como policial e no trato com o cidadão, a truculência de se achar acima do bem e do mal. A imposição pelo medo, não pelo respeito.

Eu tenho 37 anos, sou um cidadão de bem que nunca cometeu crimes, sempre andou na linha – e tenho medo da polícia. Quando eu fazia caminhadas e algumas vezes fazia de madrugada por ser uma pessoa notívaga me preocupava quando um carro da polícia se aproximava. Algumas vezes fui parado e tomei a chamada “dura”. Nunca fui desrespeitado, mas ficava no ar a sensação de medo. Tomei mais “duras” de polícia até hoje que fui assaltado e olha que sou branco e tenho aspecto de “bonzinho e honesto” para a polícia. Imagine se eu fosse negro.

Sei de casos de amigos que parados nessas situações foram ameaçados, tiveram armas apontadas e tomaram tapa na cara. Ninguém me contou, eu vi 10 dias atrás no fim de uma madrugada quando esperava ônibus para voltar pra casa um homem negro e com uma mochila nas costas do outro lado da rua ter fuzil apontado pra si pela polícia a ser empurrado violentamente na frente de todo mundo até uma parede pra ser revistado.

Eu vi tudo aquilo. O rapaz sendo revistado e durante minutos conversando com os policiais até que foi liberado e eles foram embora. Depois fiquei olhando para ele até que seu ônibus chegou.

Eu fiquei com muita raiva, imagino como ele ficou. O ódio, a vergonha de ter passado por isso na frente de todo mundo. A vontade era de ter atravessado a rua e falar com os policiais que eles deviam respeito aquele cidadão. Que não era por ser negro que podia ser tratado daquela forma e que eles deviam subir o Dendê atrás de traficantes, os mesmos que lhes pagam “arrego”, não ameaçar gente de bem. Podia ter feito isso. Certamente tomaria uns tapas na cara, provavelmente eu viraria um Amarildo.

Amarildo.

Apenas o nome dele ser o título da coluna é de propósito porque é um símbolo. Andei muito de madrugada não só em minhas caminhadas como ando até hoje por causa de samba. O título é Amarildo, mas podia ser Aloisio, Pedro…

Ninguém está livre disso. Ninguém está livre de ser um Amarildo, ser levado e nunca mais ser encontrado. Basta que a PM cisme com você. A gente pensa que uma história dessas tem nada a ver conosco – mas tem sim.

O Estado que tem obrigação de nos proteger continua sumindo com as pessoas desde os tempos ditatoriais e não deixando o mínimo, que as pessoas deem um enterro aos entes queridos. Acho que é por isso que não falei nesse assunto antes. O medo escondido de um dia virar Amarildo.

Amarildo é o Wladimir Herzog do século XXI. Provavelmente daqui a algum tempo aparece “suicidado”. Como disse o Coronel Nascimento em Tropa de Elite 2, “a Polícia Militar do Rio de Janeiro tem que acabar”.

Cadê o Amarildo?

Cadê a nossa paz?

Paz sem voz não é paz, é medo.

(Charge: Carlos Latuff)